Senhora da letras

Ruth Rocha une técnica, sentimentos, humor e valores verdadeiros para criar suas histórias que conquistaram crianças de todo o mundo.
A escritora com a marca de 120 milhões de livros vendidos, recebeu o Pedaço da Vila em sua casa para recordar com saudades de sua
infância na Vila Mariana, entre ruas perfumadas e muitos livros!

A “vilamarianense” Ruth Rocha é certamente a maior escritora de literatura infantil do Brasil. Tem 130 livros publicados, foi traduzida em 20 línguas, vendeu mais de 120 milhões de exemplares e ganhou 29 prêmios, entre eles o da Academia Brasileira de Letras. Sua obra contempla todos os gêneros literários e une técnica, talento e humor, e trata a criança como um ser inteligente, dotado de espírito crítico: “Acho que eu entendo as crianças porque eu gosto delas, tenho uma cumplicidade. Eu pisco para elas!”

Ao conhecer Ruth Rocha pessoalmente entendemos por que conquistou tantas crianças e jovens de todo mundo: aos 78 anos tem cara de menina marota, alma de criança, olhos brilhantes e um amor que irradia em cada palavra, letra e sorriso: “Eu sei que criança é uma coisa maravilhosa, lembro de quando eu era criança e quanto fui tão feliz. Tive carinho, amor. Meus pais eram vocacionados pra pai e mãe. Ele era sério, responsável, trabalhador, muito inteligente, mas de vez em quando ele brincava, fazia graça. Minha mãe era teimosa, dedicada, adorava criança. Não enterrei minha infância, eu me lembro dela, de como me sentia desamparada, de como me sentia impotente. Fui feliz na infância, tive tudo que uma criança precisa”.

Todas essas lembranças têm como pano de fundo a Vila Mariana. Ela nasceu no dia 2 de março de 1931, em um grande casarão na rua Morgado de Mateus: “Meus pais eram cariocas e vieram para São Paulo para morar na Vila Mariana porque meu tio, irmão do meu pai, já morava no bairro e era o único parente que eles tinham aqui. Então, eles alugaram a casa em frente à casa do meu tio e foi ali que eu nasci”.

Ela viveu no belo casarão até os cinco anos, quando se mudou para a Alameda Santos: “Mas meus tios ficaram atrás da gente e acabamos voltando! Meu pai alugou outra casa na Morgado de Mateus, mais embaixo, entre Rio Grande e Áurea, onde moramos por algum tempo. Depois nasceu meu irmão, que é nove anos mais novo e nós mudamos para a casa pegada. Saímos do bairro, eu tinha 15 anos, em 1946”.

Ela fecha os olhos para lembrar com saudades que em frente a sua casa havia uma chácara enorme de flores muito cheirosas: “Hmmm… Que delícia! Eu vivia muito entre a minha casa e a casa do meu tio”. Brincava na rua com o primo, o irmão mais velho e seus amigos: “Corria para baixo e para cima”. Depois foi estudar no Colégio Bandeirantes: “Eu ia a pé. Do lado esquerdo da av. Cons. Rodrigues Alves, por onde a gente subia, era tudo de chácaras. Eu frequentemente entrava por dentro das chácaras para sair do outro lado, até a rua Cubatão. Interessante porque não tinha o menor perigo andar por ali… Eu era uma menina de oito, nove, dez anos, andava por ali tudo. Adorava fazer isso!”.

A imagem que Ruth conserva da Vila Mariana é de um bairro delicioso, perfumado: “Era incrível! Muita folia na rua, muita brincadeira. Meus pais eram muito democráticos, sabe? Ia todo mundo lá pra casa, minha mãe dava lanche, pagava cinema e condução para as crianças que não podiam. Nós íamos também a pé até a Cubatão tomar sorvete”, recorda. “Aprendi a andar de bicicleta no Parque Ibirapuera. Ai, que delícia, a gente brincava no Instituto Biológico…”.

Ruth Rocha mudou-se do bairro aos 15 anos, e aos 18 foi estudar Sociologia e Política na USP: “Não era bem aquilo que eu queria fazer. Eu entrei bem enganada, pelo Gilberto Freyre, sabe? E lá eu fui ficando… Gostava de História, da turma. Fui aluna do Sérgio Buarque de Holanda! Engraçado, eu era muito tonta, viu? Não sabia para onde eu ia, não sabia o que eu estava fazendo, não sabia como arranjar emprego…”.

Formada, Ruth passou pelas mesmas indagações de muitos jovens atualmente: “Eu fiquei assim meio perdida, fui trabalhar na biblioteca do Colégio Rio Branco porque tinha estudado lá.”. Foi quando o diretor notou que as crianças iam consultar a escritora para tudo: “Porque eu gostava muito de ler e orientava os alunos: ‘Lê esse, lê aquele! E venham conversar comigo!´ Aí a bibliotecária ficou danada porque os meninos ficavam tudo em cima de mim e desorganizavam o serviço”. O diretor então percebendo a admiração que as crianças sentiam pela jovem assistente, convidou Ruth para ser orientadora educacional: “Estavam começando a colocar orientadores nos colégios, ainda não existiam cursos universitários. Aí, regulamentaram a profissão e eu precisei fazer o curso. A escola de sociologia era bacharelado, não tinha licenciatura, mas depois abriu e eu cursei e fiz pós-graduação de orientação educacional. Trabalhei quinze anos como orientadora”.

Nesse tempo, pouco antes de sair do Rio Branco, Ruth foi convidada a fazer uma coluna sobre Educação na revista Cláudia: “Aí eu comecei a escrever também para a revista Recreio. Nesse tempo, nem achava que eu era escritora e fui trabalhar em outras coisas, voltei para o colégio e fiz mais um ano de orientação”.

Na revista Recreio teve suas primeiras histórias publicadas, em 1969: “Com 38 anos escrevi a primeira ‘Romeu e Julieta’. Eu nunca tinha escrito antes, ou melhor, escrevi sobre educação por anos na Cláudia. Mas é pouca coisa escrever sobre assuntos sérios, escrever ficção é muito diferente”. A história do ‘borboleto’ azul e da borboleta amarela que se tornam amigos e enfrentam preconceitos foi um sucesso! E assim vieram “Meu Amigo Ventinho”, “Catapimba e sua Turma”, “O Dono da Bola”, “Teresinha e Gabriela”, seus primeiros textos de ficção. Ainda na Editora Abril, foi editora, redatora e diretora da Divisão de Infanto-Juvenis: “Eles formaram uma diretoria editorial que abrangia a Recreio, mais as coisas do Maurício de Souza, entre outras publicações. Fiquei sendo diretora editorial de tudo!”.

Em 1974 Ruth foi para os Estados Unidos ser diretora de uma grande editora. E, em 1976, publicou o primeiro livro: “Sabe quando eu descobri que era escritora? Quando ‘Palavras, Muitas Palavras’ foi editado pela Abril, e ganhei o prêmio da Fundação Nacional do Livro infanto-juvenil”, confessa. A Abril publicou treze de seus livros: O “Marcelo, Marmelo, Martelo” logo fez sucesso. Foi parar no Círculo do Livro e vendeu 450 mil exemplares em seis meses. Foi um estouro!”.

Suas histórias vêm da vivência com as crianças que conheceu durante toda a vida: “É uma coisa que vai somando, sabe? Você tem uma idéia, por exemplo, de que deveria escrever sobre um menino egoísta que é filho único. Eu via muito esse tipo de criança quando era orientadora: menino que é filho único e que faz tudo o que quer. É engraçado porque eu tinha um amigo que chamava Caloca. Ele é um grande amigo meu até hoje, mas agora mora na Bahia. A gente saía muito com o Caloca e ele tinha umas coisas … Quando a não fazíamos o que ele queria, ficava com muita raiva. Eu achava aquilo muito engraçado. Um dia, lembrei dessa frase ‘o dono da bola’.E aí  lembrei de histórias que o dono da bola vai embora com a bola e deixa os outros sem jogar. E como nesse tempo eu ainda estava com cabeça de orientadora educacional, queria contar isso de um jeito engraçado. Qual é o castigo do egoísta? É ficar sozinho, né?”. Publicou então “O Dono da Bola”: “Uma vez Caloca levou a bola embora e os outros meninos não quiseram mais brincar com ele. Até que um dia ele voltou a brincar com os outros e ficou muito feliz. Então, é uma coisa que vai formando na cabeça: um pouquinho de um amigo, um pouquinho de uma criança, um pouco de uma ideia que a gente quer ventilar”, explica.

Ruth Rocha escreveu várias histórias contra o racismo. “Tenho o Catapimba. Lembro que uma vez uma moça chegou pra mim e falou: ‘Você é muito racista, porque fez o Catapimba e não disse que ele é negro!´ Aí eu falei: Eu não disse não? E falei para ela: Mas eu não disse também que o Marcelo era branco! Não disse, porque não tem nenhuma importância!”.

De lá para cá, mais de uma centena de livros foi publicado. Ruth Rocha deu vida à Alvinho, Armandinho, Beto, Borba, Davi, Eugenio, Gabriela, Julieta, Marcelo, Nicolau, Pedrinho, Romeu, Wenceslau, Calota, entre muitos outros personagens, além de coordenar diversas coleções infantis para várias editoras. É considerada o Monteiro Lobato de saias: “Ele me ensinou o poder da irreverência de do humor como instrumento de crítica e, portanto, de arte”.

Até o final deste ano, em que comemora 40 anos de literatura, toda sua obra será reeditada pela Editora Salamandra, com novos formatos, novas ilustrações, compondo a Biblioteca Ruth Rocha.

Os valores que trazem em cada uma de suas histórias são inerentes a autora. Tanto que foi convidada a adaptar para as crianças a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Esse foi um dos trabalhos mais interessantes que eu fiz, que mais me deram prazer. Em primeiro lugar porque é uma coisa na qual eu acredito muito, que eu acho muito importante. Quando a Declaração foi feita, eu tinha 16 anos. E eu então, achei aquilo tão bonito, sabe? Tive um sobrinho, que era um artista plástico, ele fez um trabalho sobre os Direitos Humanos. E o secretário da ONU perguntou por que ele não fazia um trabalho para crianças. Ele voltou e me convidou. Eu imediatamente disse: Vamos embora!Aí, começamos a conversar e chegamos a conclusão que tinha que ser uma adaptação. E ele era uma pessoa muito querida, trabalhou muito comigo, morreu aos 40 anos. Ele se chamava Otávio Fortes. Nós fizemos vários livros juntos: a ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’, ‘Azul e Lindo – Planeta Terra Nossa Casa’ e fizemos oito livros para a Melhoramentos que é a história da comunicação. Tem a história do lápis, a história da escrita, a história das letras, tem comunicação pelos gestos…..”.

A internet para Ruth Rocha é um instrumento que bombardeia de informações a cabeça de todo o mundo e para ela, as crianças não têm muita paciência: “É um problema sério. Acho isso ruim, mas por outro lado, vejo que é um instrumento de comunicação, uma ferramenta tecnológica fantástica. Agora, o mundo atualmente resvalou-se para uma coisa muito tensa. Acho que a internet faz um pouco mal. Hoje, o desenho animado para crianças é muito frenético. Isso não faz bem para a criança, ela precisa de sossego para crescer, para pensar, para brincar com pequenas coisas. Eu fico um pouco descontente com isso”, confessa, lembrando-se dos. dois netos, de sua única filha, Mariana: “Eles são muito inteligentes, um tem onze e o outro quatorze, e muito estudiosos. O Pedro que é o mais jovem adora ler, escreve e fala muito bem, é muito articulado. Fala difícil. Já o outro, é mais calado, mais quieto, é um artista, desenha muito bem. Ele tem dotes que pode ou não seguir, mas tem. Ele já não gosta muito de ler… “.

Depois de repassar sua vida, Ruth demonstra que continua com a cabeça cheia de ideias: “Livro novo não tem. Mas eu sempre tenho uns projetos, tenho pronto uma antologia de poesia para crianças, que é uma graça, ficou muito bonitinho”.

Quando perguntamos se algum dia ela imaginou que seria considerada uma das maiores escritoras de literatura infantil do país e que ganharia tantos prêmios, com seu jeito simples e caloroso, responde: “Nunca! Nem quando eu ganhei os prêmios conseguia entender muito isso. Eu não me convenço. A verdade é que acho que eu sou a mesma de antes. Não incorporei essa coisa do trabalho na minha vida, sou eu mesma! Eu sei de tudo, sei do meu valor e do que dizem de mim Sei por que eu vejo, mas não tenho assim essa sensação de ser importante”, finaliza a escritora que em 2008 foi eleita membro da Academia Paulista de Letras.

Edição 86 – Ago/2009

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