Carlos Roberto Ferreira Brandão

Carlos Roberto Ferreira Brandão assumiu a direção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo em 2016, quatro anos após a inauguração da nova e grandiosa sede no pedaço, no prédio projetado por Oscar Niemeyer e que, por muitos anos, abrigou o Detran. Na entrevista a seguir, ele explica as transformações que o museu passa para ampliar o seu público, as linhas que norteiam as exposições, fala sobre o trabalho conjunto entre os museus do bairro e considera a Vila Mariana um lugar privilegiado da arte na cidade

Pedaço da Vila: O que representou para o Museu de Arte Contemporânea (MAC) a vinda para o Ibirapuera?

Carlos Brandão: De certa forma o MAC já estava aqui. Nas suas primeiras décadas de vida ele ocupou o terceiro andar da Bienal [no parque Ibirapuera]. Por ser um museu da Universidade de São Paulo (USP), ele foi transferido para o Campus [na Zona Oeste], onde ficava ao lado do CRUSP [conjunto residência da USP]. Tínhamos milhares de estudantes morando ao seu lado. Essa relação era muito interessante. Mas sempre houve a vontade do MAC de ir para um local com mais visibilidade e maior contato com o público. Apesar dos 40 mil alunos diariamente na Cidade Universitária, eles ficavam engajados em muitas atividades e visitavam pouco o museu. A gente achava que o MAC precisava voltar-se para a população em geral, não apenas para a universitária. Houve várias tentativas de transferência de sede. Na gestão do professor José Coelho Teixeira Neto (de 1998 a 2002), o MAC ganhou um terreno na Barra Funda. Houve até uma proposta de construção, mas o terreno não foi incorporado à USP e a mudança não prosperou. A vontade do MAC de se expor mais sempre foi muito grande. Isso porque o museu possui uma coleção universal muito importante e de interesse para toda a cidade. A vinda para cá era um sonho antigo, especialmente nesse prédio que nos permite mostrar a nossa coleção.

Pedaço da Vila: Qual a dimensão dessa coleção?

Carlos Brandão: O MAC tem cerca de 10.500 obras em seu acervo. Na Cidade Universitária conseguíamos mostrar menos de 200 obras, pois o tamanho do prédio era restrito. Nesse momento, aqui, temos mais de 700 obras em exposição e ainda potencial para aumentá-las. Em breve iremos inaugurar uma nova exposição e serão mais 300 obras à mostra. Essa sede permitiu fazer uma rotatividade em nossa coleção para cumprir a missão do MAC: manter o acervo sempre em exposição. A nossa missão é dupla: mostrar e conservar. Para conservar seria melhor estar tudo dentro de uma sala escura fechada e climatizada. Quando você expõe, de certa forma, você coloca as obras em risco. Então, essas duas forças — preservar e mostrar — estão sempre presentes no museu e é uma luta constante. Mas temos o compromisso de mostrar, pois o MAC é um museu público, e o fazemos de uma forma muito controlada; esse prédio nos permite isso. Todos os andares são climatizados e, nas galerias, não incide luz nas obras. Tudo aqui foi pensado para que esse ato de mostrar não coloque as obras em risco. Assim como temos o compromisso público, também temos o compromisso com as gerações futuras: é preciso preservar as obras.  

Pedaço da Vila: Como esse acervo foi formado? 

Carlos Brandão: O que nos orgulha aqui no MAC é que podemos falar sobre a história da Arte Moderna e Contemporânea usando o nosso próprio acervo — não precisamos emprestar nenhuma obra para discuti-las aqui no Brasil e no mundo. A nossa coleção abriga repre-sentantes das grandes escolas de artes visuais. O seu núcleo de Arte Moderna deriva de uma coleção particular que recebeu aportes significativos como a doação, logo no início do museu, de Nelson Rockefeller. Ele era amigo do casal Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado. O núcleo inicial é a coleção do casal. Ciccilo e Yolanda foram os fundadores da Bienal e instituíram os prêmios de aquisição da Bienal; eram quatro prêmios: escultura, pintura, desenho e gravura. Os prêmios das seis primeiras bienais foram integrados à coleção do MAC. Depois continuou esse processo de aquisições. Quando o MAC passou para a USP, em 1963, o seu primeiro diretor, Walter Zanini (1925-2013), que conhecia os artistas e participava dos movimentos, trouxe ao acervo uma coleção de arte conceitual dos anos 1960, o que era incomum. Hoje temos uma coleção de arte conceitual como vídeos e instalações…  Há obras que são instruções numa folha de papel para montar uma instalação, o que nos diferencia dos museus tradicionais, baseados puramente em objetos. O MAC tem objetos, mas também tem conceito.

Pedaço da Vila: Que período da história é compreendido por esse acervo?

Carlos Brandão: A obra mais antiga em nosso acervo é Paisagem (1906), de  Giacomo Balla. É uma obra pontilista do período de transição do Impressionismo para a Arte Moderna. Nessa parte inicial da coleção há uma ênfase muito grande na arte italiana. Da mesma forma que o MASP, do Assis Chateaubriand, contratou o galerista Pietro Maria Bardi (1900-1999) para comprar obras em leilões na Itália, o MAC contratou a crítica de arte italiana Margherita Sarfatti (1880-1961). O núcleo da coleção do MAC é fortemente formado pela arte italiana dos períodos entre e pós-guerras. Os grandes artistas italianos daquele momento, como o escultor Marino Marini, Amadeo Modigliani, Giorgio Morandi entre outros estão em nossa coleção. É um conjunto muito importante; e muitos italianos vêm conferir o acervo. 

Pedaço da Vila: E os artistas brasileiros? 

Carlos Brandão: Entre os brasileiros temos os grandes heróis do Modernismo como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti. Temos também muitas esculturas do Victor Brecheret. E obras da grande escultora brasileira da primeira metade do século 20, a Maria Martins (1894-1973); gravuras e telas de Lasar Segall. A família do Segall, quando criou o museu Lasar Segall, separou um conjunto de obras do artista e doou para vários museus do mundo. Hoje, os grandes museus, como o MoMA (NY), possuem em seus acervos obras do Segall. Em nossa coleção também temos algumas gravuras que tratam da arte Degenerada; elas estão expostas no sétimo andar do MAC. Arte Degenerada foi uma exposição que Hitler e Goebells promoveram em Berlim, em 1937, para mostrar o quanto a Arte Moderna era degenerada em relação à arte tradicional. Em paralelo fizeram uma exposição da boa e pura arte alemã, mostrando pessoas trabalhadoras, fortes e de faces rosadas. O Segall foi um dos artistas que teve obras expostas na mostra Degenerada. 

Pedaço da Vila: Quais são as linhas que norteiam as exposições do MAC?

Carlos Brandão: São basicamente três linhas: histórica, pesquisa acadêmica e exposições externas. Na primeira linha estão as exposições de longa duração, que ficam em cartaz por cinco anos. Hoje ela ocupa o sétimo, o sexto e o quinto andares do MAC com obras mais conhecidas e emblemáticas. No sétimo andar temos a primeira metade do século 20, os modernistas, Volpi, Santa Helena, o futurismo italiano e o início do modernismo. No sexto andar temos a segunda metade do século 20, a arte engajada e política dos anos 60, a ditadura; as obras são mais soturnas, branco e preto, são menos otimistas. No quinto andar está a Arte Contemporânea, onde estão as obras do século 21, período que há a valorização dos artistas. Na segunda linha [que ocupa o quarto andar] estão as exposições derivadas de pesquisas acadêmicas; nossos curadores investigam certos temas que resultam em exposições. Numa ala [cada andar tem duas alas expositoras] está em cartaz a exposição Vizinhos Distantes, que faz um paralelo entre a produção artística brasileira e a produção de países latinos no mesmo período. Na outra ala temos a exposição A Casa, que revela a nossa casa sob o ponto de vista da Arte Contem-porânea — ela encerra no dia 23 de setembro. Na terceira linha [no terceiro andar] estão as exposições externas de artistas, coletivos, grupos…  No momento temos em cartaz uma exposição que reconta a história do Paço das Artes por meio de artistas do nosso acervo. No segundo andar do MAC acontecem as atividades do setor educativo, recepções de grupos… 

Pedaço da Vila: Essa nova sede permitiu que o MAC ampliasse as atividades de formação educacional e, consequentemente, atraísse mais público… Para onde caminha o museu?

Carlos Brandão: O MAC, antes de tudo, é um museu universitário, o que já é uma tipologia um pouco específica de museu. A nossa base é a pesquisa acadêmica; ele é sede de um programa de pós-graduação de teoria e crítica de história da arte e de um programa de pós-graduação em museologia. O MAC tem essa preocupação de formação de críticos em Arte Moderna e Contemporânea e em museologia. O museu tem a preocupação com a formação de público especializado e também com o aprimoramento do público em geral. A gente recebe um público espontâneo muito enriquecido, principalmente pela proximidade do parque. O nosso serviço educativo recebe visitas agendadas de público escolar, de público em situação de vulnerabilidade, de público com necessidades especiais. São várias as iniciativas para diversificar o público do museu. Também temos convênios com a prefeitura para a formação de professores de arte. O MAC procura a integração com todos os tipos de manifestações, como música e poesia… Mas, trata-se de um museu dentro da sua perspectiva de museu. Ele não vai se transformar, por exemplo, num centro cultural. Longe disso! O MAC está aberto às outras iniciativas, mas elas precisam ter diálogo com o propósito do museu. 

Pedaço da Vila: O MAC está conseguindo se aproximar das demais instituições culturais sediadas no bairro?

Carlos Brandão: Sim. Para comemorar os 70 anos do MAM, por exemplo, os curadores do MAC estão fazendo curadoria com o acervo do MAM e os curadores do MAM estão fazendo curadoria com o acervo do MAC. Esse trabalho conjunto vai resultar numa exposição que será inaugurada no MAM no dia 24 de setembro. O MAC e o MAM, inclusive, nasceram na mesma instituição. O Ciccillo Matarazzo e a Yolanda Penteado fundaram o MAM em 1948, e, em1951, fundaram a Bienal. Administrar os dois foi se tornando um peso grande, até mesmo financeiro. As dificuldades geraram uma ruptura e, então, o Ciccillo pegou toda a coleção do MAM e doou para a USP, que se comprometeu a construir um prédio para abrigá-la. Nunca o fez (risos). Eles achavam que o MAM iria morrer, mas não morreu e começou a fazer a sua própria coleção. No início, as instituições tinham certas arestas em função dessa separação traumática. Mas, hoje em dia, esse distanciamento não faz mais sentido. O MAC também tem parceria com o museu Lasar Segall. No ano passado, emprestamos algumas obras do nosso acervo para fazer parte de uma exposição de arte degenerada que aconteceu no museu Lasar Segall. Os curados dos dois museus trabalharam juntos, tanto nas pesquisas como na exposições. São Paulo é uma cidade que tem um meio cultural muito rico. E a Vila Mariana é um lugar privilegiado. O bairro tem essa concentração de instituições, o que é muito interessante, pois aconteceu de modo espontâneo. Essas conexões entre elas ficarão muito claras nessa próxi-ma Bienal de São Paulo [será inaugurada no dia 6 de setembro]. Durante a Bienal, iremos expor as obras premiadas nas primeiras seis Bienais e que hoje integram o nosso acervo; em sua maioria elas já estão expostas. Também iremos expor as obras que participaram de outras edições do evento. Faremos mapinhas para que os visitantes possam identificá-las; será uma espécie de caça ao tesouro. Na ocasião da Bienal também iremos inaugurar uma obra que vai cobrir, por três meses, a fachada lateral do prédio do MAC [paredão que dá para o Obelisco]. A obra é um poema visual de Tadeu Jungle; será um adesivo. A ideia é inaugurá-la para a Bienal.

Pedaço da Vila: O prédio do MAC está em processo de reformas e readequações de seus espaços. O que falta fazer e quais serão as próximas atrações? 

Carlos Brandão: No dia 27 de agosto o MAC irá inaugurar, no mezanino, a livraria da Edusp. De um lado terá o café e do outro a livraria. Ela vai vender livros de arquitetura e arte, mas também terá os lançamentos da editora, que compreendem as mais diversas áreas. Também reabriremos ao público a nossa biblioteca. Ela é especializada em teoria e crítica de Arte Moderna e Contemporânea e acabou de receber, por doação, a biblioteca particular do nosso patrono, o Walter Zanini.

Pedaço da Vila: Nesses últimos anos, muitos museus, entre eles o vizinho MAM, foram atacados após exposições e performances “consideradas degeneradas”. Como o senhor vê essa onda conservadora?

Carlos Brandão: A gente não tem uma situação dramática como o MAM; em frente ao MAM tem os rolezinhos… O MAM fez um trabalho magnifico e conseguiu reverter a situação. Aqui, nunca tivemos uma provocação dessa. O MAC tem obras que estão indicadas para serem vistas ou com a presença dos pais ou por pessoas maiores de 18 anos. São obras que beiram a pornografia. Naquele episódio, o MAC se posicionou muito claramente a favor do MAM, a favor da liberdade de expressão. Agora, hoje em dia, temos uma discussão sobre a descolonização. As coleções históricas carregam muito colonialismo e muitos preconceitos. Se formos olhar no acervo, por exemplo, o número de mulheres artistas representadas na primeira metade do século 20 é muito pequeno em relação ao número de homens; o número de negros também é muito pequeno. Quando nos encaminhamos para os anos 60 e 70, as coisas caminham para um equilíbrio. Em nossa coleção do século 21 [em cartaz no quinto andar] nota-se um equilíbrio de gênero e de raça. Hoje, a tendência dos museus é estudar e revelar isso. A gente pretende dar essa informação ao público, pois ele não conhece o acervo inteiro e não consegue fazer essa leitura histórica. Vamos mostrar o tamanho do nosso acervo:  quantas mulheres artistas, quantos homens, quantos negros e como foi isso ao longo do tempo. Essas informações estão implícitas e queremos elas explícitas.