Márcia Ventura Dias

A Associação Beneficente Santa Fé completa 25 anos mudando a vida de milhares de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade. O trabalho, além de promover autonomia ao abrigado, cuida e acompanha a família para recebê-lo de volta para casa. “Não fazemos nada, apenas damos proteção e carinho, o que qualquer criança precisa”, ensina a presidente Márcia Ventura Dias, que recebeu o Pedaço da Vila para contar a história da associação, falar sobre sua experiência com o trabalho e mostrar como a vizinhança pode ajudar nas inúmeras ONGs existentes no bairro

Pedaço da Vila: Como começou a Associação Beneficente Santa Fé? 

Márcia Ventura Dias: Começou num evento de Natal há 25 anos com o objetivo de que a população do entorno da Vila Mariana se sensibilizasse com as crianças que viviam na rua. Esse evento foi realizado na Rua Estado de Israel, num terreno de 2.500 metros. Lá, montamos uma estrutura para receber as crianças que vinham da Praça da Sé e de seu entorno. No primeiro dia foi um caos, as crianças quebraram tudo. No segundo dia, ao receber as crianças de volta, já estava tudo arrumado. No vigésimo terceiro dia, que é o tempo que durou o evento, as crianças estavam fazendo uma peça no circo, comendo de garfo e faca e chorando, pois não queriam ir embora… As crianças pediram para continuarmos com o trabalho…mas, não tínhamos a menor condição: não tínhamos dinheiro e nenhum projeto além do evento.

Pedaço da Vila: Onde a senhora trabalhava nessa época?

Márcia Ventura Dias: Éramos todos conselheiros tutelares. Esse evento foi patrocinado por uma ONG e ajudamos em sua realização.

Pedaço da Vila: O evento alcançou seu objetivo? 

Márcia Ventura Dias: O objetivo era sensibilizar a cidade sobre a bárbara situação que é a vida da criança de rua. Isso foi há 25 anos, e o problema só aumentou. Depois disso, fizemos um novo projeto — chamado Escola Ambulante. E fomos de novo para rua dentro daquela perspectiva de que a escola deve estar onde a criança está. Com esse projeto, ganhamos um prêmio, de melhor tecnologia nacional. Em seguida, criamos uma estrutura na Praça da Sé, uma biblioteca com circo, artes plásticas e várias oficinas. Trazíamos as crianças que estavam nas ruas para esses lugares. Tínhamos poucas regras, sobretudo as da não violência e a da proibição das drogas no local. E foi muito interessante, pois pelos dados que obtivemos na época, nossa ação competiu inclusive com o tráfico de drogas que ali acontecia.

Pedaço da Vila: Quantas crianças eram nessa época?

Márcia Ventura Dias: Eu não posso dizer ao certo… Mas, depois de um problema que tivemos durante o evento da Praça da Sé, as coisas melhoraram. Não podíamos fazer a comida no local e passávamos por um inverno muito forte. Infelizmente, morreu um bebe na rua, filho de uma adolescente. E fui falar com o subcomandante da Polícia Militar, que começou a colaborar com a gente. Ele conseguiu um dormitório como aqueles de operário de construção. E nós, e mais cento e tantas crianças, fomos para lá. Na manhã seguinte, as crianças não queriam ir embora e demos continuidade à ação.

Pedaço da Vila: O Crack já era um problema de saúde pública?

Márcia Ventura Dias: Foi nessa época que começou a surgir o crack. As crianças daquela época só usavam inalantes, como cola de sapateiro, thinner, lança-perfume, e aí veio a questão do crack. E a gente passou a ter muito mais medo. Fui, inclusive, ao ministro da justiça da época e conseguimos que a cola de sapateiro fosse proibida; uma luta de todas as organizações sociais. A cola de sapateiro, de acordo com uma pesquisa da USP, contém uma substância semelhante à da cocaína. No entanto, de lá para cá o crack só aumentou, e a quantidade de crianças na rua também. O uso dessa droga por crianças colaborou com o aumento de pessoas em situação de rua hoje. Uma expressão com a qual eu não concordo é “criança de rua”, pois a partir do momento em que é chamada assim, de certa forma, aos olhos das pessoas, ela deixa de ser criança, pois junto com esse termo vem aquele pré-julgamento de que essa criança é ladra ou drogada. E nós acabamos deixando de tratá-las como elas merecem, pois não vemos essas crianças como olhamos os nossos filhos, netos e sobrinhos. Eu queria abrir os olhos da população nesse sentido, de vermos o que está acontecendo no nosso entorno: se as crianças aqui da Vila Mariana, por exemplo, estão sendo tratadas de forma correta. A UNICEF mostrou que de cada dez crianças, seis estão abaixo do nível da miséria… Qual futuro teremos? O que aconteceu nesse país? Crianças entrando no mundo das drogas, desinteressadas pela educação… Isso, além da questão da violência e da falta de cuidado  — de um modo geral — é da sociedade com a realidade dessas crianças. Nós não podemos terceirizar a culpa. Aqui, na Vila Mariana, há várias organizações sociais… e eu pergunto: quantas pessoas estão engajadas nessas associações? Acho que todo mundo deveria estar engajado ou até mesmo fiscalizando essas organizações.

Pedaço da Vila: O que as pessoas poderiam fazer para ajudar? 

Márcia Ventura Dias: Procurar essas organizações para encontrar alguma que seja do seu interesse. Por exemplo: se você gosta de bebes, há o Amparo Maternal que precisa de coisas simples. Nós, aqui, gastamos um bom dinheiro com enxoval para crianças e mães adolescentes, há muitas senhoras que fazem tricô, fazem casaquinhos — isso já é uma grande ajuda. É possível colaborar com a doação de roupas de boa qualidade e que você não usa mais. Cada um pode ajudar um pouco: horas voluntárias também ajudam! Aqui há um voluntário que dá aulas de costura para as meninas; outras pessoas levam as crianças ao cinema…  Enfim, não e só para Santa Fé, é possível ajudar vários lugares.

Pedaço da Vila: A Associação Beneficente Santa Fé trabalha para que as crianças atendidas voltem para a sua casa… Mas, e aquelas em que isso não é possível? 

Márcia Ventura Dias: Nós educamos essas crianças e adolescentes para terem autonomia. Pois, como a criança que vivenciou a violência lida com as coisas? Ela só tem um repertório, o da violência — nenhum outro! Então, temos que desconstruir esse repertório. E é quando ela se desarma e começa a chorar — e é aí que nós entramos. Sempre digo que para lidar com a violência tem que ter muita delicadeza. E não pode ser de qualquer jeito, tem que ser com carinho verdadeiro, pois a criança reconhece isso. E é aí que falo sobre a questão da autonomia… Do que a gente precisa principalmente nesta região? Precisamos que as empresas abram chances de trabalho para nossos adolescentes no seu primeiro emprego. Isso é muito importante, pois essa é a porta de saída para a emancipação. Veja: do mesmo jeito que entre um homem e uma mulher na disputa de uma vaga o homem é o escolhido, como é empregar uma jovem mãe? Diante dessa dificuldade, estamos fazendo uma campanha para que essa jovem mãe, que teve a gravidez na adolescência, às vezes até por violência, seja vista com uma certa prioridade para vagas de trabalho pela área de recursos humanos das empresas, pois essa vaga salva dois! Uma das questões mais graves do país é a gravidez na adolescência, pois isso conduz à pobreza, já que ela vai ter que abandonar os estudos para cuidar de seu filho. Segundo uma estatística de uma organização ligada à ONU chamada Save the Children, que saiu no ano passado, o Brasil é um dos piores lugares para se nascer mulher — está ali junto com Haiti, Nicarágua e Honduras! Uma das razões de ser pior nascer mulher no Brasil é a gravidez na adolescência, pois ela leva a mãe para fora da escola e essa criança vai ser mais pobre que a mãe. Ou seja, é um indutor da pobreza muito grande. Educar uma menina é educar várias gerações. Então, quando a gente cuida dessa adolescente grávida, o ciclo vicioso da pobreza é cortado. De acordo com uma pesquisa de Harvard, a mulher repete muito mais a mãe do que o filho repete o pai, de um modo geral. 

Pedaço da Vila: A Santa Fé é sustentada por quais recursos? 

Márcia Ventura Dias: Nós temos um convênio com a prefeitura de São Paulo por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, contamos com uma empresa de construção que está praticamente  20 anos conosco, a Engeform, cujos proprietários têm muita importância para a Santa Fé — o presidente do nosso conselho, André Abuchan, é da Engeform. Contamos também com uma fundação alemã que nos prestigia há oito anos e com uma fundação Suíça que nos ajuda muito. Isso não significa que não temos necessidades, mas é muito importante os apoios da Engeform, a confiança da prefeitura… enfim, todas as pessoas que confiam em nós. Além disso, temos um jantar anual. Ele é realizado para levantar fundos e nos ajudar a cumprir o nosso orçamento. Também temos doações individuais e fazemos campanhas de alimento. O nosso projeto é sistêmico: atender a criança abrigada é só uma parte dele — atendemos também as famílias. Atendemos essa criança quando ela sai daqui para que não haja recaída. Cuidamos da autonomia das crianças que não podem voltar para casa. Estamos falando de um universo de cerca de 400 pessoas, no mínimo. 

Pedaço da Vila: Nesses 25 anos, quantas crianças e adolescentes passaram pela Santa Fé e quantos vocês atendem hoje?

Márcia Ventura Dias: Hoje em dia nós temos por volta de 400 pessoas, sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. Mas isso falando nesses últimos 5 anos, em que temos os dados mais contabilizados. Atualmente estamos muito melhor em nossa organização! Em 25 anos, atendemos milhares de crianças.

Pedaço da Vila: E quanto à equipe?

Márcia Ventura Dias: É preciso de muita dedicação! Temos que ter uma equipe grande para cuidar das crianças, outra para cuidar das famílias e toda uma infraestrutura. Veja, de que adianta eu estar discutindo sobre violência, se a casa que essas crianças moram está totalmente destruída? Temos a questão da roupa, da alimentação — tenho que ter certeza de que essa família está sendo alimentada… 

Pedaço da Vila: E qual o nível de sucesso do retorno dessas crianças para as suas casas? 

Márcia Ventura Dias: O índice de sucesso é sempre possível perceber na segunda geração. Por exemplo, o fato dos filhos dessas crianças que vêm aqui não terem a mesma vida que os pais tinham. É um trabalho delicado que, ou você faz de forma sistêmica ou não é possível fazer. Não dá para atender só uma parte, é preciso atender todas as necessidades que se apresentam. Nós tivemos muita sorte, pois, a partir da ajuda da Engeform, conseguimos também o apoio de uma organização chamada Instituto Horas da Vida, que é muito importante em São Paulo. Ela reserva horas de médicos particulares e oferece para organizações beneficentes como a Santa Fé. Então, se de repente uma criança nossa precisar de atendimento rápido, nós temos respaldo por conta dessa organização. O que temos de fazer é demonstrar para aos parceiros nossos bons resultados; que as crianças valem a pena e que elas não devem sofrer tanto. 

Pedaço da Vila: Com essa sua experiência diante de um mundo tão violento, você acredita que é possível reverter essa situação?

Márcia Ventura Dias: Há duas coisas. Uma é o quanto as crianças dão para a gente. Por exemplo: aquela menina que viveu barbaridades e com o nosso trabalho ela se abriu de forma maravilhosa… Aquele seu sorriso vale tanto a pena, é uma coisa incrível! Isso vale mais que qualquer coisa! Segundo, pela nossa experiência, percebemos que a gente quase não faz nada para a criança desabrochar. Há meninos aqui com histórias que você pensa: não é possível, não acredito! E você vê que eles são fantásticos! Isso quer dizer que pelo menos nós não atrapalhamos. Não temos o direito de dizer que fomos nós que fizemos aquilo pela criança… Nosso trabalho é dar um contorno para essa pessoa parar de fazer o que fazia, damos uma direção. E isso vai depender da forma como a atendemos. A grande maioria das crianças traz um material de violência e nosso trabalho é destruir esse material de dentro para fora e deixar que o que há dentro dela prevaleça e desabroche — sem aquilo que antes a destruía. Um rapaz, que conhecemos na rua naquela época do nosso primeiro projeto na Praça da Sé, é hoje um dos nossos educadores! Estabelecemos uma relação muito forte com as crianças!