Rumos da Cinemateca Brasileira

Principal patrimônio cinematográfico do País e coração do cinema nacional, a Cinemateca Brasileira tem enfrentado dias difíceis e incertos quanto ao seu futuro. Desde janeiro deste ano, com a exoneração de seu diretor executivo, há dez anos no cargo, Carlos Wendel de Magalhães, a instituição entrou em retrocesso institucional e teve seus trabalhos comprometidos por mais uma crise em sua história.

Eleito pela Ministra da Cultura, Marta Suplicy, para assumir o comando da Secretaria do Audiovisual (SAV), em dezembro do ano passado, Leopoldo Nunes, ex-diretor da Ancine (Agência Nacional do Cinema), logo exonerou Carlos Magalhães, a mando de Marta Suplicy, e pediu uma auditoria à CGU (Controladoria Geral da União), que bloqueou o dinheiro repassado à Cinemateca via Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), órgão sem fins lucrativos que auxilia a instituição na gestão e captação de recursos para seus projetos.

No início deste ano, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura realizou intervenção na Cinemateca Brasileira: exonerou o diretor executivo, promoveu uma auditoria, dispensou quase metade de seu corpo funcional e apresentou um novo regimento interno que sinaliza profundas mudanças nos rumos da mais antiga instituição de cinema do País.  Diante de tantas especulações, entenda o porquê de toda essa crise e suas dimensões

Impossibilitada de movimentar o dinheiro do convênio, a Cinemateca Brasileira se viu obrigada a dispensar mais da metade de seu corpo funcional. De um total de 139 funcionários, 72 foram demitidos deste o início da crise, todos contratados em regime de pessoa jurídica pela SAC; funcionários experientes em suas funções, possuidores de um conhecimento adquirido em anos de prática.

No dia 3 de abril, a Cinemateca publicou em seu site um informativo relatando as consequências da crise para seus trabalhos diante do público. Até o momento, a Biblioteca Paulo Emílio Salles Gomes deixou de atender o público aos sábados; as atividades promovidas nos espaços de eventos foram suspensas por tempo indeterminado; e o atendimento especializado a produtoras e pesquisadores está lento. No mesmo dia em que foi publicado, o informativo foi removido, por ordem do do MinC?.

Responsável pela preservação de 30 mil filmes (cerca de 200 mil rolos), a Cinemateca é vinculada à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. No entanto, era administrada pela SAC, que, por não estar presa às amarras burocráticas estatais, conseguia dar mais agilidade ao funcionamento da instituição: da contratação de novos funcionários, passando pela compra de novas tecnologias, a restauração dos filmes e da estrutura arquitetônica do antigo Matadouro Municipal (que abriga duas salas de exibição, uma biblioteca, sala de restauro e sala de preservação).

Enquanto os rumos da instituição não são definidos e um clima de medo e dúvida paira sobre os funcionários da Cinemateca, aos olhos do Ministério da Cultura esses percalços que acometem a instituição são vistos como uma “crise de crescimento”. A alegação é de que o bloqueio do dinheiro da conta administrada pela SAC se fez necessário para reavaliar a maneira como os recursos estavam sendo geridos  até o momento.

Para alguns funcionários, o ambiente é tomado por incertezas, pois ninguém sabe direito o destino de quem continua na instituição. Vários reclamam das consequências da crise sentida no trabalho do dia a dia. “Muitos setores estão sofrendo: o de imagens está sem nenhum funcionário”, desabafa um deles, anonimamente. “Por falta de mão de obra, muitos de nós estamos sobrecarregados, mas tocando a Cinemateca”, explica outro.

Intelectuais e cineastas chamam a atenção para o caso em um manifesto on-line que pede à ministra Marta Suplicy que dê andamento aos projetos que se encontram paralisados, evitando assim uma perda maior e irreparável. O manifesto se dá em formato de abaixo-assinado, que já ultrapassa 2 mil assinaturas, entre elas as de personalidades marcantes da cultura brasileira, como Fernando Meirelles, Antonio Candido de Mello e Souza, Jean-Claude Bernardet e a escritora e membro do Conselho da Cinemateca, Lygia Fagundes Telles.

Para o crítico de cinema e frequentador da Cinemateca, Christian Petermann, é frustrante ver o cíclico descaso do poder para com as boas iniciativas culturais, correndo sempre o risco de botar a perder anos de campanha sólida. “É necessário haver continuidade e investimento, e não tentar remendar amanhã um erro que se comete hoje”, critica.

Enquanto o Ministério da Cultura não apresenta um novo nome para substituir Carlos Magalhães, coube à funcionária de longa carreira na instituição, a pesquisadora Olga Futemma, a missão de assumir interinamente a direção e dar prosseguimento aos trabalhos. “Hoje estamos com a capacidade bastante reduzida de funcionários, e muitos setores estão comprometidos. E isso tende a aumentar, já que os projetos que ainda seguram os funcionários contratados pela SAC estão prestes a terminar”, explica a coordenadora de preservação e laboratório, e atual diretora-adjunta da Cinemateca Brasileira, Patricia De Fillipi.

No dia 25 de maio, ocorreu uma reunião para definir o futuro da instituição, ficando decidido que haverá uma votação para escolher um novo diretor, mas sem prazo definido. “Na reunião, que contou com a participação de Marta Suplicy, ficou estabelecido que um novo nome fosse apresentado em breve, e que fosse escolhido pelo Conselho da Cinemateca”, adianta Patricia.

Contra a parede

Desde a sua criação, em 1962, a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) exerceu um papel primordial na execução de projetos e no crescimento da Cinemateca Brasileira, arrecadando recursos financeiros e dando todo o apoio necessário para a instituição dar continuidade às suas principais funções: preservar e divulgar o cinema brasileiro. Durante os últimos anos de atuação, a SAC, por meio da captação de recursos e livre das amarras burocráticas das estatais, impulsionou o crescimento da Cinemateca, conferindo-lhe mais visibilidade, ajudando na conservação de seu arquivo fílmico, em mostras e eventos, além de possibilitar amplas reformas estruturais na instituição, dando mais agilidade a seus projetos e à contratação de funcionários.

Em março de 2008, a SAC, para ampliar suas funções, realização de convênios e parcerias com diferentes entidades, conseguiu do Ministério da Justiça a aprovação para se tornar uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). O termo de parceria com o MinC possibilitou a arrecadação de R$ 105 milhões até 2012, que estão sendo investigados pela auditoria da Controladoria Geral da União (CGU), sob a alegação de que foram encontradas irregularidades na gestão de Carlos Magalhães.

Além das possíveis irregularidades, a CGU também apontou falha de controle por parte do MinC sobre os recursos administrados pela SAC. Uma das críticas à gestão de Magalhães diz respeito à realização de projetos poucos ligados às  reais atribuições da instituição, como locação de espaço para empresas privadas.

No início de maio deste ano, desabou sobre a Cinemateca um novo regimento interno que altera seu modo de funcionamento, o que pegou sua diretoria de surpresa. De acordo com as novas diretrizes, os departamentos serão alterados, o poder da SAC será retirado, cargos serão extintos e alguns dos projetos executados pela instituição serão transferidos para o Centro Técnico Audiovisual (CTAv), no Rio de Janeiro. “O novo regimento realizará profundas alterações em nossos departamentos, assim como a transferência do projeto Programadora Brasil para o CTAv. A Cinemateca está encolhendo” diz a diretora adjunta.

A Cinemateca

A Cinemateca Brasileira nasceu a partir da criação do Clube de Cinema de São Paulo, fundado em 1940 por intelectuais e amantes do cinema, entre eles Paulo Emílio Salles Gomes, Antonio Candido de Mello e Souza e Décio de Almeida Prado, naquela época, jovens estudantes do curso de Filosofia da Universidade de São Paulo que sonhavam em criar uma Cinemateca nos moldes da Cinemateca Francesa.

Após o fechamento do primeiro clube pela polícia do Estado Novo, um segundo foi inaugurado em 1946, cujo acervo de filmes constituiu a Filmoteca do Museu de Arte Moderna (MAM). Em 1984, foi incorporada como um órgão do Ministério de Educação e Cultura (MEC), sendo, somente em 1992,  transferida para os edifícios históricos onde está até hoje.

Construídos no século XIX e tombados como patrimônio público, os edifícios abrigaram, entre 1887 e 1927, o Matadouro Municipal de São Paulo, que foi muito importante para o desenvolvimento do bairro: aumentou o comércio, atraiu imigrantes italianos para a região, levou fazendas a serem  divididas em chácaras, aumentou as linhas de bonde e o número de empregos.

Quando desativado, na década de 30, seus velhos galpões serviram durante décadas à Prefeitura de São Paulo como depósito da empresa responsável pela iluminação da cidade, atual Ilume. Somente após uma grande reforma, ocorrida em 1992, a histórica construção foi adaptada para abrigar a Cinemateca Brasileira. Desde então, sua estrutura e seu entorno passaram por muitas reformas, conferindo-lhe as características atuais.

Entre as cinco melhores do mundo, a Cinemateca Brasileira abriga um dos mais completos laboratórios de restauro, capaz de recuperar filmes em estado de avançada deterioração. Graças a esse trabalho meticuloso, a instituição restaurou obras de importantes cineastas da história do cinema brasileiro, como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos e Mário Peixoto. Atualmente, trabalha no restauro dos filmes “Os Fuzis”, de Ruy Guerra; e “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos.

“Hoje, depois de tanta luta, aí está essa bela Cinemateca Brasileira! Vamos lutar, sim, para que, mesmo após a morte dos seus bravos fundadores, ela prossiga viva, cumprindo o seu glorioso destino: o de ser o único museu vivo do Cinema Nacional”, lamenta Lygia Fagundes Telles, em texto que integra o manifesto em favor da instituição.