Arte na Vila
Nossa região é detentora de uma riqueza cultural que se compara aos mais importantes polos artísticos do mundo; são inúmeras galerias de arte, museus, centros culturais, teatros e, recentemente, uma diversidade de grafites que valorizam a paisagem do bairro, transformando nossas ruas em galerias a céu aberto. Os trabalhos reúnem diferentes estilos: da crítica social à reflexão; da educação à poesia, entre outras manifestações.
De jovens a veteranos, os artistas e grafiteiros, em sua maioria, são moradores do bairro, com os olhos voltados para espaços públicos que podem virar arte. É o caso da publicitária Gabriela Tintori, 31 anos, que quando passou a morar na Rua Fabrício Vampré, há sete meses, começou a grafitar. “Aqui eu me senti mais confortável para pintar. Todas essas casinhas, cheias de histórias, me inspiraram. Além disso, o grafite me permite fazer parte da história cultural do bairro”, revela.
Na tarde do dia 8 de julho, Gabriela grafitou seu primeiro muro no bairro, o da Fábrica de Doces e Cafeteria Quinto Pecado, ao lado de sua casa. “Assim que foi podada a árvore que encobria o muro, pedi a autorização da proprietária”, conta Gabriela, que grafitou em caligrafia estilizada um poema sem título de autoria de Cristina Albuquerque. A pintura foi coletiva e contou com a participação dos grafiteiros e vizinhos Calu Mairutti e Ricardo Tatoo.
Maria Helena, dona da cafeteria Quinto Pecado, ficou feliz com o resultado. “Eu já estava pensando em convidar um grafiteiro para deixar o muro mais bonito. Sempre apreciei a arte urbana e até paro para fotografar alguns grafites que encontro pelo bairro. A arte está linda, pois ficou no astral do espaço”, observa.
Calu Mairutti, 38 anos, assim como a amiga Gabriela, se interessou por tintas e spray recentemente. Há um ano, foi acompanhar um grupo de amigos durante a pintura de um muro e aceitou o convite para participar. Desde então, grafitar se tornou um de seus principais hobbies. “Para mim, é uma grande diversão! Procuro fazer um trabalho que transmita leveza e alegria, e que também possa inspirar outras pessoas nesses tempos em que tudo é levado tão a sério”, diz.
No mês de maio, os muros e as casinhas que cercam o espaço da Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS), entre a Rua França Pinto e a Av. Conselheiro Rodrigues Alves, ganharam novas cores. A pintura, que contou com a participação de 20 grafiteiros, teve a curadoria do artista André Monteiro, conhecido como Pato. “Eu fui convidado para coordenar a pintura e aceitei, com a condição de que cada artista teria a liberdade para fazer seus trabalhos; o resultado ficou muito bonito e valorizou aquele espaço do bairro”, diz Pato.
Formado em Design Gráfico na Belas Artes, o vizinho Felipe Risada, 25 anos, sempre foi apaixonado pela arte urbana. Desde 2004 grafita pelos muros e carros do pedaço suas carrancas. “Sempre grafitei a carranca. Ela representa um portal, uma mandala, os quatros elementos, e possibilita diferentes interpretações. Em meus grafites, eu utilizo materiais que encontro nas ruas, como pano ou madeira”, explica o vizinho.
Em defesa do amor
O lambe-lambe “mais amor por favor” está espalhado por toda a cidade, e a frase já se tornou um dos principais bordões dos paulistanos contra o frenético estilo de vida da capital. Por trás desse pedido carregado de simbologia está o jovem artista plástico e morador da Av. Conselheiro Rodrigues Alves Ygor Marotta, 29 anos, que começou a propagar a frase em 2009.
O artista conta que a ideia era promover uma reflexão sobre as relações humanas no ambiente urbano. “Em uma cidade como São Paulo, onde tudo é regido pelo relógio e as pessoas sempre estão estressadas com o trabalho e o trânsito, a relação de afeto, algo básico, ficou esquecida. Então, percebi que a rua era o lugar ideal para questionar esse modelo de vida e passar uma mensagem. A cidade precisa ser feita para que todos tenham uma vida melhor, e não o contrário”, afirma Ygor.
A intervenção, que começou timidamente com mensagens escritas a canetinhas em telefones públicos, rapidamente conquistou uma dimensão inesperada pelo artista. “Eu não imaginava tanta repercussão. Ao notar que as pessoas se identificaram com a frase, eu comecei a grafitá-la em tapumes de obras e depois passei a colar os lambe-lambes. Em 2012, dei início a uma série de colagens coletivas ao redor do país, atendendo as pessoas que estavam dispostas a ajudar”, conta Ygor.
Além de espalhar o pedido de “mais amor por favor” pelo país, e até fora dele, o vizinho também realiza, ao lado da artista plástica Ceci Soloaga, o duo Vjsuave: diferentes projeções de curtas-metragens e animações pela cidade, por meio de um triciclo adaptado. “O conceito do ‘mais amor por favor’ se tornou o centro de todos os nossos projetos; agora evocamos o amor também pela luz”, diz Ygor, que finalizou, no mês passado, uma intervenção artística em uma das fachadas da Av. Conselheiro Rodrigues Alves, capa desta edição do Pedaço da Vila.
O grafite a serviço da educação
Um dos principais nomes do grafite brasileiro contemporâneo, o artista plástico, professor e grafiteiro Ricardo Tatoo, 43 anos, encontra na arte urbana a possibilidade para ampliar o ideal pregado pelo filósofo e educador brasileiro Paulo Freire: a revolução pela educação. É esse aspecto educativo que o vizinho toma como prioridade em seus trabalhos, tanto nas ruas como nas diversas oficinas de grafite que ministra pelo país.
Representante da chamada “terceira geração” de grafiteiros no Brasil, Tatoo, influenciado pelas graphic novels de super-heróis, referência para os artistas do período, começou a grafitar no final da década de 1980 e não parou mais, tornando-se hoje uma espécie de padrinho para os jovens grafiteiros do bairro. “Quando eu comecei não havia internet nem toda a informação que temos hoje, então as referências de fora eram os quadrinhos e os discos. Hoje, o cenário é bem diferente, e aqui, no pedaço, o grafite se encontra em um bom momento”, destaca.
Outra mudança importante nesses últimos anos, como aponta Tatoo, é que o grafite deixou de ser uma arte exclusivamente das ruas para ocupar, também, espaços em galerias e salas de aulas. “A presença nesses novos espaços é algo natural quando se trata de uma arte carregada de vitalidade. Com isso, amplia-se o público, o que é uma conquista. Essa diversidade de público está em minhas aulas de Grafite Stencil e Arte Urbana, na Belas Artes; a maioria dos alunos vem de outras profissões: de comissário de bordo a dentista”, observa.
As novas artes e técnicas incorporadas pelo grafite brasileiro o fizeram distanciar-se da pichação, e hoje há até editais abertos pela Prefeitura com a proposta de transformar espaços livres da cidade em cenário de intervenções artísticas. “Enquanto a pichação apresenta um aspecto mais subversivo, o grafite não necessariamente, pois trilhou novos caminhos no Brasil. Basta recordarmos que o grafite brasileiro tem suas raízes no movimento acadêmico, cujos pioneiros, Alex Vallauri e John Howard, eram artistas plásticos”, explica Tatoo, que grafita pelo bairro, entre outros, a sereia associada ao símbolo do infinito e os cachorros em estêncil com a frase “cidade limpa, cidade linda”.
“Se o grafite é uma ferramenta importante para se expressar, então por que não tirar proveito disso para a educação e a conscientização das pessoas?”, questiona Tatoo. E complementa: “Eu acredito na revolução pela educação. Nos últimos anos eu percebi que não adianta fazer uma arte agressiva, que choque as pessoas; então, resolvi fazer um trabalho artístico mais voltado para a reflexão, que possa tocar e ser entendido tanto por uma criança como por um senhor”, diz o vizinho.
Grafitando pela região desde 2002, o artista plástico e grafiteiro Mauro Sérgio Neri da Silva, 33 anos, encontra na união entre imagem e palavra o caminho para abordar temas que considera importantes para a população. “Tento me pautar pelos debates importantes para nós, como educação, direitos humanos, meio ambiente etc. Em meus desenhos, sempre retrato figuras humanas olhando para cima e casinhas amarelas. De uns tempos para cá, comecei a grafitar frases com a palavra ver, entre elas ‘como busca Ver’, ‘a gente precisa Ver’ e ‘Ver a cidade’, misturando um pouco de poesia como reflexão”, diz Mauro, que afirma que a presença do grafite no cotidiano faz com que as pessoas gostem da arte de maneira natural.
Outra intervenção de caráter socioeducativo foi realizada no pedaço, em julho, pelo artista plástico e grafiteiro Thiago Mundano, 25 anos. Ele grafitou o muro e o estacionamento dos carroceiros da comunidade Mãos Unidas, na Rua Mário Cardim, delimitando as vagas e valorizando o espaço. O grafiteiro também inscreveu frases educativas no muro, entre elas “recicláveis na carroça e lixo no lixo”. A iniciativa, que destacou o primeiro estacionamento de carroças da cidade, integrou a série documental “RUA”, projeto sobre intervenções urbanas realizado pela cineasta Tata Amaral.
O grafite também é uma peça fundamental nos trabalhos realizados pelo Projeto Quixote, que desde a sua fundação, em 1996, toma a arte urbana como ferramenta para a recuperação e a inclusão social de crianças e jovens em estado de vulnerabilidade, muitos deles usuários de drogas. Mensalmente, o projeto atende cerca de 500 jovens em suas oficinas de grafite.
“O grafite é muito importante no Projeto, pois ele é mágico e dá muita liberdade para as crianças se expressarem de maneira lúdica. Antes de começar a grafitar, elas aprendem a desenhar e conhecem um pouco mais sobre a arte por meio de leituras. Após essa etapa, os alunos passam à pintura dos muros, e aqueles que demonstram interesse em seguir carreira no grafite são encaminhados para a Agência Quixote Spray Arte, tornando-se aprendizes de grafiteiros profissionais”, explica a coordenadora da Ong, Luane Araújo.
Mesmo após tantas conquistas alcançadas pela arte, Tatoo reconhece que ainda existe preconceito por parte da sociedade com os grafiteiros, mas explica que se trata de um fator cultural. “A elite ainda relaciona o spray à marginalidade, o vê como se fosse uma arma; enquanto, por outro lado, a periferia o tem como um manifesto artístico. Aqui, na Vila Mariana, por ser um bairro que abriga artistas das mais variadas áreas, o cenário é diferente e favorável para grafitar, pois muitas pessoas cedem os muros”, incentiva.
Graças a esses e outros artistas, nossas ruas vão ganhando poesia e arte. O grafite vai se tornando cada vez mais necessário para expressar a falta de cor, roubada da natureza, pelo crescimento desordenado da cidade. Fica aqui a esperança de que cada vez mais pessoas disponibilizem espaços para nossos grafiteiros-vizinhos tornarem o bairro mais bonito!