Beirute: Paris ou fênix do Oriente Médio?

Na minha infância e adolescência, Beirute não saía do noticiário — nem do meu imaginário. A guerra civil, que assolava o Líbano, destruía boa parte de sua outrora bela capital, a “Paris do Oriente Médio”. E, mesmo não a conhecendo, eu sofria por ela.
A guerra civil, que começou em 1975 e envolveu libaneses cristãos e muçulmanos, palestinos, sírios e israelenses, prosseguiu até 1990. Ainda hoje se podem ver as marcas dessa guerra. Mesmo que o centro de Beirute tenha sido restaurado, ainda subsistem vários edifícios com buracos de bala. Podem ser vistos também pela cidade afora muitos soldados armados com fuzis, barreiras, blindados etc. Muitas ruas possuem blocos de concreto para impedir que carros estacionem e sirvam de carros-bomba — o primeiro-ministro Rafiq Hariri chegou a morrer assim em 2005, em um atentado atribuído aos sírios. Alguns locais, como o Palácio de Governo, são verdadeiros bunkers.
Apesar disso tudo, os libaneses em geral e os moradores de Beirute em especial desfrutam da vida da melhor forma possível. Andando pela Corniche, confraternizando com familiares e amigos, fumando shisha ou bebendo nos bares, comendo, dançando… demonstram ter uma resiliência milenar. Literalmente!
Afinal de contas, Beirute também é conhecida como a “fênix do Oriente Médio”. No decorrer de sua longa história, que data desde a Idade da Pedra, já foi destruída várias vezes e sempre conseguiu se reerguer, como pude constatar pessoalmente ao caminhar por ela.
A Corniche (calçadão à beira-mar) é, com certeza, um dos lugares mais agradáveis de Beirute. Nela se pode ser pedestre sem medo de ser atropelado pelos nervosos motoristas libaneses (o trânsito lá é terrível!).
Há algumas controvérsias sobre onde começa e termina a Corniche. Percorri o trecho que vai de Raouché ou Pigeon Rocks (Rochas Pombas), um dos cartões postais de Beirute, até Zaitunay Bay, onde estão localizados diversos restaurantes, bares, cafés e sorveterias. Recomendo ir às Pigeon Rocks de manhã para ver a luz do sol iluminando as rochas; ir de novo ao final da tarde, para apreciar o pôr do sol de um dos vários restaurantes e bares que as rodeiam, como o Bay Rock Café… E voltar caminhando pela Corniche à noite, momento em que ela fica encantadora.
Perto de Zaitunay Bay, na outra ponta da Corniche, podem ser vistos o já renovado Hotel Phoenicia, o esqueleto perfurado do Holiday Inn, símbolo-mor da guerra, e o St. Georges Hotel, que ainda não foi renovado. A história do Holiday Inn, aliás, é bem triste. Ele foi inaugurado somente um ano antes da eclosão da guerra. Por sua vez, o prédio do St. Georges Hotel foi muito danificado durante a guerra civil e também no atentado em 2005 contra o Primeiro-ministro Rafiq Hariri. Nessa época, o hotel estava sendo restaurado. Desde então, porém, nada mais foi feito.
De Zaitunay Bay, chega-se rapidamente ao centro de Beirute, devastado durante a guerra civil. Ao fim do conflito, um imenso e bilionário esforço para a sua renovação começou a ser projetado. Para tanto, foi feito um tipo de parceria público-privada entre o governo, capitaneado pelo Primeiro-ministro Rafiq Hariri, e uma companhia criada em 1994 para esse fim, a Solideré.
Muitos dos antigos edifícios da era otomana e do mandato francês voltaram à boa forma dos tempos em que Beirute era conhecida como a “Paris do Oriente Médio”. Um shopping de luxo, o Beirut Souks, foi aberto. A Saifi Village foi quase que inteiramente restaurada e ficou uma graça, mas me pareceu meio mortinha.
Com o trabalho de renovação do centro, sítios arqueológicos foram descobertos. Os mais famosos são o da escola romana de Direito, que fica entre a Mesquita Al-Omari e várias igrejas, e os banhos romanos, próximos do Palácio do Governo.
A Mesquita Al-Omari, a principal da cidade, foi construída originalmente no local onde se encontrava a Igreja de São João Batista dos Cavaleiros Hospitalários, da época das Cruzadas. Ao seu lado, encontra-se a Catedral de São Jorge, uma igreja maronita também da época das Cruzadas. E, do outro lado das ruínas, há diversas outras igrejas. Aliás, o grande diferencial de Beirute é este: ver como as civilizações, com suas respectivas religiões, misturam-se e se fundem. Tudo junto e misturado, pode-se dizer. É essa característica que torna a cidade tão especial.
Mas o ponto principal do centro talvez seja a Place de l’Étoile, onde um grande relógio Rolex marca as horas, assim como fazia antes da guerra. Naquela época, era o local onde as crianças iam brincar. E, agora, está retomando essa mesma vocação.
A partir do centro, subindo, chega-se ao Museu Nacional de Beirute. Trata-se de uma visita obrigatória, mesmo porque serve de introdução para a história da região, de suas antigas cidades-estado fundadas na época dos fenícios, como Byblos, Tyro e Sidon, e das diversas civilizações que as ocuparam. Os artefatos expostos são maravilhosos, em especial os sarcófagos e os mosaicos.
O museu ficou fechado durante a Guerra Civil, pois ficava bem na linha verde, que separava Beirute Ocidental de Beirute Oriental. Chegou a ser ocupado por milícias cristãs e snipers. Um deles, inclusive, atirou em um dos mosaicos do museu. Aliás, foi para lembrar desse passado que a Beit Beirut ou Casa Amarela, renovada para servir de espaço expositivo e para eventos, foi deixada com os buracos de bala em sua fachada. Ela fica bem em frente ao Museu Nacional.
Próximo do Museu Nacional, dentro da St. Joseph University, fica o MIM, o Mineral Museum (e “mim” também é o nome dado em árabe à letra “m”, símbolo do museu). O museu exibe mais de 2.000 minerais, representando 450 diferentes espécies de 70 países. Há formações muito interessantes, várias delas tão bonitas que até parecem esculturas. E são mesmo, só que feitas pela natureza. Há uma parte com pedras de todos os continentes. O Brasil está bem representado. Além disso, também há uma seção de fósseis, em que é exibido um filme multimídia que mostra como se formaram os fósseis em exibição.
A partir do MIM, descendo em direção ao mar e pegando a direita, chega-se ao bairro de Achrafyeh, que possui um bonito shop-ping center, o ABC Mall Achrafyeh, com um jardim a céu aberto.
Em Achrafyeh, ainda sobrevivem mansões do período otomano e do mandato francês. O Sursock Museum está localizado em uma dessas mansões. Ela pertencia ao aristocrata libanês Nicholas Ibrahim Sursock e hoje abriga mostra de artistas contemporâneos locais.
Ainda no bairro de Achrafyeh, fica o Brasiliban, um Centro Cultural Brasileiro que oferece aulas de português, capoeira, samba etc. O centro foi instalado em um lindo casarão e é dirigido pela goiana Mônica, que nos explicou tudo sobre ele.
Em frente ao centro, está a House of Zejd, lugar excelente para comprar azeites de qualidade. Mas não só. Lá também são vendidos cosméticos, pastas feitas com azeitonas e elas próprias, em diversas versões. Experimentei uma recheada com castanha, que estava uma delícia. É o lugar para comprar uma lembrança bonita, de qualidade e, principalmente, gostosa aqui em Beirute.
Descendo em direção ao mar, chega-se em Gemmayzeh. Nesse bairro há vários restaurantes interessantes, como o Tawlet, restaurante do tipo buffet. O conceito dele é muito legal. A cada dia, uma mulher é convidada para cozinhar e apresentar suas especialidades caseiras. Como não tinha reserva e o local lota fácil, acabei indo ao Enab, também na região. Agradável e gostoso. Com diversos ambientes, optei por ficar no jardim. Outra opção é o Café em Nazih, dentro do Saifi Urban Gardens, point hipster que inclui um hostel.
Voltando em direção às Pigeon Rocks, chega-se ao bairro de Sanayeh, onde está localizado o Parque René Mouawad. Beirute não conta com muitos parques. Então sempre que se encontra um, é bom aproveitar.
Andando mais além, chega-se ao bairro de Verdun, que achei o mais moderno da cidade. A Rua Verdun é boa para compras. Nela também se encontram grandes redes de restaurantes, como o Cheesecake Factory. O ABC Mall Verdun também fica lá. Assim como o shopping-irmão de Achrafyeh, dispõe de um lindo jardim.
Finalmente, descendo de Verdun, chega-se a Hamra, bairro onde me hospedei, repleto de bares, cafés, restaurantes e cadeias de fast food. Nele fica a Universidade Americana de Beirute, mais conhecida como AUB. Foi fundada em 1866 pelo ex-missionário americano Dr. Daniel Bliss, que inclusive dá nome para a rua da universidade. O campus é gigante e vai até o mar. Dentro dele está o Museu Arqueológico da AUB. Aberto em 1868, é o terceiro mais antigo do Oriente Médio.
Ao decidir visitar Beirute, não sabia se encontraria a “Paris” ou a “fênix”. Só sabia que queria muito conhecer essa cidade que tanto ocupou o meu imaginário de criança. No final das contas, acabei encontrando as duas. Mas mais do que isso, encontrei uma cidade ora caótica e irritante, ora encantadora e sedutora. O que é inquestionável, porém, é que há muito para ver, fazer e, principalmente, sentir em Beirute.