Águas invisíveis

Guardadas as memórias, nada restou de uma região ocupada pelas chácaras em várzea e terrenos verdejantes, repletos de córregos e rios a céu aberto. A Vila Mariana de hoje ainda guarda poucos resquícios do começo do século passado, seja nos casarões que ainda – e com muita pressão – se matêm em pé, seja nos pés de amoras, nêsperas e goiabas pelas ruas. E quem mais poderia contar da “velha” Vila Mariana senão seu Chiquinho Villano, 90 anos, que mensalmente nos convida a uma deliciosa viagem ao passado?

Sua infância foi em meio à natureza. Quando criança, Chiquinho morava perto do parque Ibirapuera, ali onde hoje é o autorama. Os lagos eram a principal diversão. “Tomava banho pelado e não tinha nem toalha para me enxugar. Secava-me correndo na grama. E quando havia enchente, pescávamos rãs”, recorda-se saudosista.
Chiquinho conta que após as brincadeiras ao ar livre, água pura era o que não faltava. “Havia várias fontes de água saudável que abasteciam as famílias. A criançada se esbaldava. Todo mundo tinha seu sítio, galinheiro, forno de barro, plantação e criação de porcos. Eram tempos bons, existia outro tipo de gente, que não sujava os córregos. A água Santa Helena, que brotava onde hoje está a praça da rua São Paulino, chegou a ganhar prêmio pela sua pureza”.

E hoje, como está a ampla bacia hidrográfica da Vila Mariana depois da crescente e desenfreada urbanização?
O principal córrego da região é o Sapateiro. Com cerca de 6.600 metros de extensão, o canal nasce na rua Rio Grande com a Dr. Mário Cardim, atravessa as avenidas Ibirapuera e 23 de Maio, alimenta os três lagos do parque pela IV Centenário, segue sob as avenidas Santo Amaro e Juscelino Kubitschek e por fim desemboca no Rio Pinheiros.

Antigamente era chamado de Rio das Pedras e ganhou o novo nome devido ao antigo curtume então localizado nas proximidades do Matadouro Municipal. A partir de 1916 começou a receber os dejetos e resíduos do gado e dos couros que eram lavados em suas águas: “Em frente do Matadouro a água era vermelha do sangue dos animais abatidos”, relembra seu Chiquinho.

O Córrego do Sapateiro foi canalizado em meados da década de 60, salvo apenas o trecho do Ibirapuera, onde o leito ainda é preservado. Em 2001, a Secretaria Municipal de Infra-estrutura Urbana (Siurb) vistoriou suas antigas galerias.  Apesar da canalização, até pouco tempo se encontrava bastante poluído. Por despejo clandestino de esgoto, seus afluentes abasteciam com sujeira os lagos do Parque.

Para regularizar a situação, a Sabesp, em parceria com a prefeitura, concluiu recentemente a ligação irregular de esgoto de 144 imóveis no bairro entre comerciais e residenciais. Falta agora reparar apenas o lançamento ilegal de detritos existente na comunidade carente da rua Dr. Mário Cardim. A obra de implantação da rede de esgoto no local começou em julho. A intervenção dependia de autorização (já concedida após várias negociações) do INSS, proprietário do terreno. A previsão de término do serviço é até a primeira quinzena deste mês.

Como complemento às ações de saneamento na região, também foi realizada em junho último, ao custo de R$ 20 milhões, a interligação do coletor de esgotos do Sapateiro ao interceptor do Rio Pinheiros. Segundo a concessionária, essa obra impede que 400 litros por segundo de esgoto sejam jogados naquele curso de água. Vai beneficiar 90 mil moradores do Ibirapuera e contribui para a recuperação e despoluição do córrego e dos lagos.  

Há outras bacias adjacentes na Vila Mariana, como a do córrego Boa Vista. De menor porte e canalizado em tubos, ele tem 1.800 metros de extensão e também abastece os lagos do parque. Desce pela rua Áurea, passa perto do Instituto Biológico e segue ao prédio do Detran. Nos dias de chuva, suas águas provocam enchente nas avenidas Dr. Dante Pazzanese e Rubem Berta, debaixo do viaduto Euclides de Figueiredo. “São pontos baixos, cortados pelo córrego, onde falta uma galeria de porte para levar as águas da chuva até os lagos”, explica Aloísio Canholi, engenheiro hidráulico especialista na região.

Ele cita um terceiro e pequeno rio a desaguar em uma das lagoas do Ibirapuera. É o córrego da Assembléia, que vem da rua Abílio Soares, sob o clube Círculo Militar. Segundo levantamento da Siurb e da subprefeitura do bairro, outros córregos canalizados de passagem pela Vila Mariana são o Ipiranga (e afluentes Auguste Clesinger e Lomas Valentinas), o Traição (liga as avenidas 23 de Maio à Bandeirantes numa extensão de 3.600m), das Éguas (2.300m), Paraguai (4.200 m), Jurubatuba (1.000 m), Pedra Azul (1.200 m), Uberabinha (2.800 m) e Uberaba (2.200 m).

Este último tem como ponto crítico de alagamento um afluente da rua Dr. José Mariana Witaker, na Vila Clementino. “Uma das formas de se minimizar essas enchentes é por meio da construção de piscinões, que são grandes reservatórios de retenção de água, ou pela ampliação das galerias pluviais”, recomenda Aloísio.
Além dos córregos, a região possui uma vasta rede subterrânea de galerias por onde escoam as águas pluviais. As mais comuns são feitas de tubos de concreto, geralmente para drenagem de vias. Há também as galerias retangulares em concreto voltadas à canalização dos rios.

De acordo com a Subprefeitura Vila Mariana, o bairro possui 42 mil metros de ramal de galerias. Elas são antigas, mas apresentam ainda boas condições de operação. Existem apenas alguns trechos sub-dimensionados responsáveis pelos principais pontos de alagamento, como o da rua Dr. Amâncio de Carvalho, próximo à academia Aquasport.

O órgão informa efetuar limpeza do sistema de galerias a cada três ou quatro meses. A sujeira contribui muito para as enchentes. Geralmente, são encontrados nos corredores subterrâneos terra, sacos plásticos, garrafas descartáveis, pneus, madeira, folhas, galhos, concreto, entulho e areia de construção. Logo, a recomendação é evitar jogar lixo nas vias públicas.

As águas do córrego do Sapateiro que chegam aos lagos do Ibirapuera são tratadas por meio da estação de flotação da Sabesp instalada dentro do próprio parque. Estudo da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA) prevê ainda execução do desassoreamento dos lagos, com retirada de aproximadamente 84 mil m³ de lodo, bem como a proteção das margens e recomposição da mata ciliar.

A SVMA busca parceiros para cuidar da saúde dos tanques aquáticos do parque. Além da questão estética, os lagos são artificiais e exercem papel importante por amenizarem os riscos de enchente, auxiliando na drenagem das águas. “As lagoas fazem o papel de piscinão, atuando como reservatório de água para amortecer as cheias dos córregos”, explana, Aloísio Canholi.

Os lagos também contribuem para aumentar a umidade relativa do ar e são abrigos para fauna e flora diversificada. Dentre os fatores naturais que influenciam seu metabolismo, estão a erosão e a sedimentação.

Mesmo com um processo de limpeza eficaz, não será mais possível repetir os tempos em que tomar banho na lagoa era comum. “Os lagos estão localizados dentro da cidade e recebem afluência de águas urbanas com alta carga de poluentes. Todos os lagos das grandes metrópoles do mundo sofrem hoje o efeito da chamada poluição difusa. Quando a chuva cai, ela lava as ruas e carrega à bacia grande quantidade de óleo, fezes de animais e outros detritos”, esclarece Canholi. “O lago do Ibirapuera que tem a fonte apresenta hoje níveis de boa qualidade, mesmo assim não dá para se banhar”, completa. Um deleite, que só mesmo antigos moradores, como Chiquinho, puderam experimentar!

1 comentário em “Águas invisíveis

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