O dia em que abrimos a carrocinha
Há muito tempo, a Vila Mariana teve um surto enorme de cachorros de rua, quase inacreditável. Eram muitos cães sem casa, sem dono, sem amigos e abandonados pelas ruas. Perambulavam em “matilha” pelas ruas da nossa Vila e, vez ou outra, alguém se apiedava de um deles e o colocava para dentro de casa.
No armazém do meu pai Nicola, na esquina da Rua Áurea com a Av. Cons. Rodrigues Alves, viveram vários deles — meu pai dava sempre comida porque tinha dó. Outros vizinhos também faziam o mesmo.
Há pesquisas da prefeitura dessa época que comprovam que em São Paulo existiam peram-bulando pelas ruas uma média de meio milhão de cães. A Prefeitura não dava conta de retirá-los da rua. Naquele tempo foi criado um “ingrediente perverso” — que se tornou uma Lei paulista — que era a temida “CARROCINHA”.
A função da carrocinha era pegar e prender todos os cães de rua e levar para “local ignorado” para tentar conter as doenças transmitidas por animais. O Centro de Controle de Zoonoses foi criado em 1973 e a prática de caçar cães e gatos nas ruas foi extinta por uma Lei estadual em 2008.
Durante o tempo em que a CARROCINHA existiu, travou-se uma verdadeira guerra entre caçadores, laçadores, animais, crianças, mães, vizinhança enfurecida e donos de cães. Todos odiavam a CARROCINHA, principalmente as crianças.
Eu e o Levy também odiávamos a CARROCINHA. Várias vezes, nós e a vizinhança, incluindo nossos amigos de infância, apedrejamos os caçadores com seus laços de cães para que eles não conseguissem concretizar o serviço. Isso era uma prática comum.
Pensando sempre nesse problema humanitário, um dia, depois de estudar profundamente o tipo de cadeado que fechava a porta da CARROCINHA, eu e o Levy bolamos um plano mirabolante para soltar de uma vez só todos os cachorros que a CARROCINHA tinha prendido naquele dia. Muita astúcia, inteligência, um pouco de tempo e pronto. Plano feito.
Chamamos a galerinha e colocamos o plano em ação. Num fim de tarde, nas esquinas das ruas Joaquim Távora com Áurea, a CARROCINHA estacionou para que os “caçadores” fossem tomar um refrigerante no armazém do Seu Acácio. Era questão de minutos. Eles desceram do caminhão e nós — que já estávamos escondidos à espreita — atacamos o cadeado com muita esperteza e maestria e abrimos a porta para que todos os cães fugissem latindo em disparada para a nossa festa, alegria e muitas gargalhadas — e o desespero dos caçadores que tinham acabado de perder sua caça de um dia inteiro de serviço. Kkkkkkkkk….Estávamos vingados e realizados. A cachorrada desapareceu em questão de segundos em fuga aloprada. E nós também, lógico! Naquele dia e nos dias seguintes, eu e o Levy fomos considerados corajosos e malucos pelos amigos e pela vizinhança, que souberam do nosso feito.
Esse assunto vem bem a calhar nos dias de hoje, onde no nosso Grupo de Internet VILA MARIANA AMO VOCÊ e aqui no PEDAÇO DA VILA, a comunidade se mobiliza para encontrar cães, gatos, aves e outros animaizinhos perdidos pelo bairro, com a solidariedade, o sentido de boa vizinhança e a astúcia muito parecida com aquela que eu e o Levy usamos para abrir a porta da CARROCINHA naquele dia.
Os dados estatísticos do VMAVC nos indicam que a maioria quase absoluta de animaizinhos que foram postados na nossa página, com pedidos de Procura-se, por crianças e por adultos, foram encontrados numa ação de solidariedade que nos dá orgulho de ser vilamarianense.
A nossa Vila Mariana é um dos poucos bairros onde se veem poucos cães e gatos pelas ruas. A maioria tem suas casas para viver com carinho e bons tratos. Obrigado à todos que agem nesse sentido.