Nunca recusar ninguém!

O ano era 1938. O mundo estava em guerra, Getúlio Vargas no poder, e o estado de São Paulo enfrentava o declínio de sua principal atividade econômica: a cafeicultura. A capital, com cerca de 1 milhão de habitantes, crescia, industrializava-se e, sem a mínima infraestrutura, recebia gente de todo o Brasil, que fugia da miséria, em busca de uma vida melhor.

Foi esse cenário que madre Marie Domineuc, uma francesa de apenas 23 anos, encontrou ao chegar ao Brasil. Por ordem da Congregação Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, em Roma, fora enviada para ajudar a fundar a primeira escola de enfermagem do Hospital São Paulo — a pedido do obstetra e professor Álvaro Guimarães Filho ao Arcebispo Dom José Gaspar de Alfonseca.

A jovem madre, além de professora de enfermagem, assumiu a assistência social do hospital. E “com o verdadeiro espírito franciscano”, atendia aos necessitados que buscavam auxílio, com o lema de “não viver senão para servir”.

Mas uma coisa afligiu madre Marie Domineuc: o número de mulheres que chegavam para dar à luz sozinhas, ou que saíam do hospital sem ter para onde ir. Eram descendentes de escravos, vindas de todo o Brasil; gente do interior do estado; operárias; empregadas domésticas — que, ao engravidar, eram despedidas sem nenhuma lei que as amparasse, dentro de uma sociedade rígida e intolerante. “Mulheres que saíam de suas cidades, sozinhas, sem família. Muitas não tinham carteira de trabalho, nem documentos, e o hospital não as aceitava por isso”, conta a presidente do Amparo Maternal, irmã Enir Loubet, da Congregação Irmãs de São Vicente de Paula Gysegem. “Madre Domineuc nunca recusava ninguém: essa foi sua filosofia assistencial, seguida até hoje.”

Eram tantas mulheres que necessitavam de assistência integral, que a madre pediu a Dom Gaspar um lugar para abrigá-las. Foi quando fundaram, em 1939, o Amparo Maternal: “Para ser um lar que as acolhesse nessas condições. Várias casas foram alugadas na Vila Mariana, onde as mulheres moravam, dividiam o serviço e a educação dos filhos”. Mas madre Marie Domineuc necessitava que em cada casa fosse possível realizar partos. E foi buscar recursos, sempre com apoio de Dom José Gaspar e do professor Álvaro Guimarães Filho. “E as casas tornaram-se maternidade!”, ressalta Irmã Enir.

A vizinhança não via com bons olhos a proximidade dos albergues e, por vezes, até a Madre sofria preconceito, sendo xingada pelos moradores no meio da rua: “Ela tratava as mulheres do Amparo como suas filhas. Era uma pessoa enérgica, desprendida e profundamente religiosa. Não se importava em ser mal vista pelos vizinhos por ter abraçado a obra”, descreve, Irmã Enir

Estava à frente de seu tempo e não descansou até que, 15 anos depois, conseguiu unificar as casas-maternidade espalhadas pelo bairro em uma só edificação. Finalmente, em 1945, a Câmara Municipal votou o início das instalações do Amparo Maternal. “O prefeito era Prestes Maia, foi ele próprio que fez o projeto da construção, com um imenso terraço com a face voltada ao pôr do sol”, informa o assistente eclesiástico padre Celso Paulo Torres.

Foram 11 longos e sofridos anos até que a obra ficasse pronta. A incansável madre Marie Domineuc — que se mudou com as albergadas para o local durante a construção — enfrentou a falta de recursos, o atraso das obras e, ainda, os preconceitos. Até que, em 1954, o prédio foi inaugurado pelo então governador Adhemar de Barros, embora só tenha ficado totalmente pronto em 1964.

“Ela dava muita atenção para todas que chegavam ao Amparo Maternal. Quanto mais pobre, maior a atenção na hora do parto. Quantas vezes cedeu sua cama por falta de leito”, lembra Irmã Enir.

O amor pela instituição era tamanho que, ao ser chamada de volta para sua congregação, sendo obrigada a escolher entre os dois, resolveu continuar no Amparo Maternal. Tirou então o hábito, substituindo-o por uma fralda, que lhe serviu de lenço até 1974, quando retornou à congregação: “Ela se sentia muito cansada, e o Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns pediu à minha congregação que assumisse a instituição, administrando-a por 33 anos”, conta Irmã Enir.

Para ela, o grande mérito do Amparo Maternal é ter chegado aos 70 anos, batendo de porta em porta para continuar seu trabalho. “A filosofia de nunca recusar ninguém sempre foi muito forte para chegarmos até aqui, embora, hoje em dia, não dê para depender de recursos desta maneira. Trabalhamos sempre sob muita pressão”, confessa.

Desde 2008, a falta de recursos foi atenuada graças à parceria com a Associação Congregação Santa Catarina em sua gestão: “O SUS repassa metade do custo dos partos” — 80% deles normais, reflexo do programa Parto Humanizado —, “o resto vem de doações”. O albergue, segundo Irmã Enir, não recebe nada do governo. “E o Hospital Santa Catarina é o ‘Good Brother’ do Amparo Maternal!”, brinca Padre Celso. Em 2009, o prefeito Gilberto Kassab passou, definitivamente, o terreno para a instituição: “O prefeito gosta muito daqui. Ele tem forte relação com a Vila Mariana”, acrescenta. O restante do dinheiro vem por meio de doações. Chegam também fraldas, material higiênico e de limpeza: “Precisamos de tudo, mas com isso não dá para pagar nossas contas. Para se ter uma ideia, uma ampola do medicamento para os bebês que nascem com problemas cardíacos custa 800 reais”, explica Irmã Enir.

Amanda Domingues, 19 anos, apresenta com orgulho seu pequeno Lucas, de apenas 1 mês. Seu caso é semelhante a muitos outros que chegam à instituição: ficou grávida do namorado, que não assumiu a paternidade. Foi expulsa de casa, em Diadema, e chegou ao Amparo Maternal com dois meses de gestação: “Fui encaminhada para o Amparo Maternal, abrigada e recebi até suporte psicológico. Me senti acolhida e bem tratada”, revela. Ela recebeu todos os cuidados necessários para uma gestação sadia: pré-natal, exames laboratoriais, ultrassom, ganhou o enxoval do bebê — que, depois de nascido, fez o teste do pezinho e foi registrado no cartório localizado na instituição. “Durante esse tempo em que estou aqui, também participei de vários cursos: informática, artesanato, costura. Eles preparam a gente para, quando sair, estar preparada para conseguir trabalho. Daqui a dois meses, quando for embora, já vou encaminhada para algum emprego”, diz, agradecida.

Muitas dessas mulheres chegam ao Amparo Maternal só com a roupa do corpo e são encaminhadas para as salinhas das voluntárias, onde recebem os primeiros-socorros: roupas íntimas, material de higiene e orientação: “A pobreza se modificou. Antigamente, elas vinham descalças ou, no máximo, com chinelos de dedo. Eram muito pobres, sofredoras… Hoje também há casos assim, mas a característica maior da pobreza é a questão da droga”, lamenta Irmã Enir.

O trabalho das voluntárias é imprescindível na instituição, que, de janeiro a outubro deste ano, realizou 5.735 partos: são elas que fazem o enxoval do bebê, cuidam do bazar e dão auxílio às mães: “Para quem quiser ser voluntária, trabalho não falta aqui!”, convida Irmã Enir. É o caso da médica Therezinha da Silva Richiere, que, há 4 anos, em todas as quintas-feiras, visita as parturientes: “Converso com elas, ensino a amamentar e procuro mostrar a bênção dessas mulheres em ganhar um filho. Nessa hora, despertar esse tipo de amor é muito importante”, ensina a voluntária, com uma cesta na mão e ar de felicidade.

“Dilma Rousseff visitou o Amparo Maternal durante a campanha de 2.º turno e ficou encantada com nosso trabalho. Disse que a instituição será referência para outras cidades do Brasil em sua gestão”, comemora a assistente social e responsável pela ouvidoria de serviço e atendimento ao usuário, Marlene Beatriz Novaes, que há 19 anos trabalha no local.

Madre Marie Domineuc faleceu em 1998. Com determinação, construiu a maior maternidade da América Latina. “As portas do Amparo Maternal continuam abertas, seguindo sua filosofia de nunca recusar ninguém”, garante Irmã Enir, que teve a oportunidade de conhecer a pequenina e obstinada madre francesa, que deixou um legado de amor e esperança. “Ela encontrava a gente nos corredores, olhava bem nos nossos olhos e perguntava: ‘És feliz?’”

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