JORGE TARQUINI

No mês de estreia do filme Bruna Surfistinha – O Doce Veneno do Escorpião, o jornalista, roteirista, professor universitário e autor do livro, adaptado com o mesmo título, bate um delicioso papo de vizinho com o Pedaço da Vila. A seguir, ele conta sobre a experiência, às vezes constrangedora, de escrever as memórias de uma garota de programa, adianta seus novos projetos e declara seu amor pela Vila Mariana, de olho nas transformações que ela vem sofrendo

Pedaço da Vila: Seu campo de atuação abrange diversas áreas: ator, jornalista, escritor, roteirista e professor universitário. Qual foi o caminho?

Jorge Tarquini: A primeira atividade de interesse foi a atuação, mas eu sempre gostei muito de escrever, o que me levou para o jornalismo. Primeiro entrei na faculdade de jornalismo e, no ano seguinte, entrei na Belas Artes para fazer artes cênicas. Fui tocando os dois até o jornalismo me trazer uma possibilidade profissional maior, apesar de eu nunca ter largado a atuação. Formei-me em jornalismo em 1985, entrei na Editora Abril e fiquei lá por 16 anos. Minhas outras áreas de atuação surgiram pelo meu interesse em artes. Como não conseguia mais atuar como gostaria, comecei a escrever e a dirigir. Uma coisa me levou a outra, jornalismo, teatro e roteiro são coisas complementares. Meu pai brincava: “você não tem talento para nada que dê dinheiro, não?”. Há 15 anos, leciono Crítica da Mídia, na Universidade Metodista. São aulas de discussão, produção de textos opinativos, artigos, critica. Eu gosto de levar esse olhar mais crítico para o jornalismo, até porque não sou um profissional teórico, sou de mercado.

P.daVila: De que forma surgiu a oportunidade de escrever o livro sobre as memórias de uma garota de programa?

J.T.: Sempre quis escrever livros, mas nunca tive a oportunidade ou o desafio de escrever. Eu trabalhei muito tempo com o Marcelo Duarte, que é o dono da Editora Panda Books, trabalhamos juntos na revista Placar, da Editora Abril. Um dia ele mandou um e-mail: “entra nesse blog que tem uma coisa que você vai achar interessante”. Entrei e era o blog da Bruna Surfistinha, que, na época, ainda era garota de programa. Eu nem a conhecia. Depois, conversando com meus alunos, vi que todos a conheciam. Ele me contou que era uma garota que estava fazendo um baita sucesso na internet com um blog e, queria escrever um livro. “É você que vai escrever esse livro”, ele disse. Brinquei: nem comecei minha carreira de autor e você já quer enterrá-la! Não era uma questão de uma eventual carreira de escritor, sou um professor universitário! Após muita insistência, liguei para ela e me identifiquei, todo envergonhado. A receptividade da menina foi fria. Marcamos um encontro e ela não apareceu. Liguei para o Marcelo e disse: “Esquece! Essa mulher não existe, deve ser um homem que criou o blog para tirar o maior barato de todo mundo”, imaginei, mesmo, que era armação. Então, ele foi falar com um amigo nosso que era cliente dela, e me mandou um email com a ordem: “ligue para ela e diga que a senha é psicólogo”. Aí comecei a me sentir personagem de filme B… Liguei e disse a senha, e a moça pediu um instante. Depois, vim a saber que quem atendeu foi a Raquel, uma dublê de voz de Bruna Surfistinha, pois o telefone de garota de programa não pode dar ocupado, nem cair na caixa postal. O cliente que liga tem que imaginá-la na banheira, se pre-parando para ele. É a fantasia… Na hora, lembrei dos preceitos da revista Quatro Rodas, que dirigi: o motorista não pode aparecer na foto. O leitor que compra uma revista de carro pensa que o carro é dele, ele tem que se imaginar lá dentro. Com garota de programa é a mesma coisa. Bruna Surfistinha é uma ‘marketeira’ nata!

P.da Vila: Como foi o início do trabalho?

J.T.: Marcamos um encontro para decidir a parte dos negócios, como o livro seria feito. Fechamos, então, o contrato com a Panda Books — do meu amigo Marcelo —, e começamos a trabalhar. Eu pedia para ela uma hora dentro da dinâmica da sua vida — o tempo de um programa. Ia com meu gravador no flat onde ela atendia, em Moema, bairro onde também morava. Às vezes, tinha que esperar porque ela estava com clientes, em outras, os clientes chegavam enquanto conversávamos. Tínhamos esses bate-papos de uma hora, somados às minhas pesquisas de jornalista, por checar algumas informações.

P.daVila: Quantos encontros foram necessários para fazer o livro?

J.T.: Ao todo, foram 16 encontros. O processo foi curioso: eu tinha um livro na cabeça. Aí, fiz as entrevistas, pesquisas e escrevi o meu livro. Mandei para o editor — antes, mesmo, da Bruna ler. Mandei também o livro para o Marcelo, que me falou: “Adorei! Só que temos um problema, falta sexo no livro!”. Tínhamos, mesmo, um problema, o livro era o que consegui escrever.

Um dia passei em uma banca de jornal e vi a capa de uma revista, onde estava escrito: caderno lacrado, 500 dicas de sexo. Pensei: ninguém melhor do que a Bruna para fazer um caderno com 500 dicas de sexo! É isso! Vou botar em uma parte lacrada toda a sacanagem do livro — o que não vai interferir na minha histó-ria. Provou-se, depois, que isso trouxe o universo feminino de leitores para o livro — 60% dos compradores são mulhe-res. Elas querem entender o que uma garota de programa faz para seduzir os homens.

P.daVila: Bruna Surfis-tinha (garota de programa) e Raquel Pacheco (filha de uma família classe média alta) são duas personagens em uma pessoa. Como foi trabalhar com essa dupla personalidade em um livro de memórias?

J.T.: Como autor, eu achei a história da menina — Raquel Pacheco — muito mais interessante do que a da garota de programa. Mas Bruna tinha uma história completamente diferente: uma garota de classe média alta, filha de família envolvida com Direito. Enfim, a aluna do Bandeirantes que larga tudo e, aos 17 anos, se prostitui em um privê dos Jardins. Eu queria saber como é que funcionava a cabeça dessa mulher! Ela tinha todas as possibilidades: bem educada, bem criada, bem nascida… O livro brinca muito com essas duas meninas, fala da Raquel e fala da Bruna – eu não queria perder isso; acredito que é o que reveste o livro de uma certa qualidade literária. Existe uma história. Jornalista é um contador de história.

P.da Vila: O mercado literário ainda possui um receio de obras que tratam de temas delicados e polêmicos. Ocorreu alguma rejeição ao livro?

J.T.: No início a gente enfrentou um grande problema. As grandes livrarias não se entusiasmaram com o livro. Tanto que decidimos fazer uma pré-venda pela internet — o meio pelo qual Bruna tinha nascido. Só que quando começou essa pré-venda, explodiu de um jeito absurdo. A gente colocava 50 livros e, em uma ou duas horas, eles esgotavam. Nós entramos rapidamente na lista dos mais vendidos sem vender um livro nas livrarias, que não receberam a primeira edição. Foi uma surpresa, mas não nos iludimos com essa vendagem rápida. Foi quando a mídia começou a falar do livro, e ele virou um fenômeno. Todo mundo saiu correndo atrás do livro, de mim e da editora. O livro estava nas vitrines das principais livrarias do Brasil.

P.daVila: O livro não apela para o lado pornográfico e ainda possui uma narrativa leve, que em certos momentos, torna-se cômica. Essa leveza na escrita foi para amenizar o tema?

J.T.: Desde sempre eu critico o jornalismo que procura cristalizar uma imagem. Por exemplo, eu adoro o Sebastião Salgado, mas não aquela pessoa que está cristalizada naquela imagem que ele vende para a mídia, com aquela expressão triste, amargurada… A vida dele é 24 horas por dia aquilo? Não, ele é muito mais
que isso!

Você não deve colocar as pessoas em caixinhas: essa aqui é prostituta, essa é indigente, esse é político… Perde-se o horizonte. Foi uma oportunidade de tirar do estereótipo. Óbvio, ela tem uma história de prostituição, de drogas, de roubar em casa. Não tem desculpas! Por ser um jornalista, sempre temos uma opinião forte, e eu sabia que não poderia cair nem para o lado da apologia nem para o lado moralista. Estabelecer esse parâmetro foi o que me guiou na hora de escrever. De ter essa brincadeira com as duas: Bruna e Raquel. E por ser um tema complicado, é preciso colocar um pouco de humor. É aí que entra a técnica de roteiro. A gente posterga um pouco a parte pesada do negócio e apresenta o lado humanista do personagem, fazendo com que o público se identifique e se familiarize com ele.

Somente depois descobrimos que ele é um assassino, estuprador etc. Mas seu

pensamento já está próximo do personagem. Ou seja, você abre espaço na mente, na moral do leitor, para que o julgamento dele não seja tão implacável. Com a Raquel foi isso. Uma adolescente, filha adotiva, gordinha, rejeitada no colégio – quem não se identifica! Aí, lá na página oitenta, você descobre que ela batia de frente e roubava os pais, se drogava e fazia o que fazia. Só que, quando você chega à realidade nua a crua aquele fato está contextualizado.

P.daVila: Como foi a receptividade do público e, principalmente, da crítica com relação à Bruna Surfistinha — O Doce Veneno do Escorpião?

J.T.: Por um lado, tinha muita gente elogiando, dizendo que tínhamos feito um trabalho muito bacana, honesto. Havia a preocupação de não fazer apologia das drogas nem da prostituição. Isso por princípio. Outros, diziam que eu tinha virado o “prostituto” da profissão, apareceu até um blog onde as pessoas falavam mal de mim; foi aquela coisa! Não li, mas não gostei. Em alguns eventos, as pessoas se aproximavam para falar que eu tinha feito subliteratura, e eu falava: Oh! Humildemente, eu não sei o que é subliteratura, não sou um acadêmico, eu apenas escrevi uma história. Se for literatura, subliteratura, folhetim – não me interessa! Outros diziam: “mas por que você se prostituiu? Você jogou sua carreira no lixo”. Veja, se eu tivesse cobrindo política eu estaria fazendo algo mais nobre?

P.daVila: Embora o sr. seja roteirista, foi Marcus Baldini que adaptou sua obra para o cinema. Foi uma decisão sua não fazer o roteiro do filme?

J.T.: Em 2002, eu trabalhei na Rede Bandeirantes com o Marcus Baldini. Fazíamos um programa chamado Oi Brasil, patrocinado pela Oi. Ele se especializou em DVDs de shows, e sempre dizia que tinha vontade de dirigir um longa-metragem. Quando eu estava escrevendo o livro, fazia uma oficina de roteiro da série ‘Cidade dos homens’, com a equipe que trabalhava com o Fernando Meirelles. Na época, oferecemos o direito de leitura para a O2 e para o Marcus Baldini. O Baldini veio, então, com uma proposta da TV Zero, que comprou os direitos do filme. Na época, o Marcus convidou o Karim Aïnouz para desenvolver o argumento e a assistente dele para desenvolver o roteiro. Eu fiquei de conselheiro. Lamentavelmente, pois adoraria trabalhar no roteiro do meu livro.

P.daVila: O livro foi lançado em outros países. Qual o nível de aceitação.

J.T.: Ele está em mais de 30 países, chegou ao topo dos mais vendidos em Portugal, Espanha, foi traduzido em 15 línguas!

P.daVila: E a biografia de Silvio Santos, como surgiu o convite?

J.T.: Um ano depois do livro da Bruna, em 2008, recebi um telefonema de um grupo que representava um grande empresário. O homem era Silvio Santos, e o convite, escrever o livro que contava os 50 anos dele como empresário. Fui o escolhido por ter escrito o livro Bruna Surfistinha – O doce veneno do escorpião.

P.daVila: Você acaba de finalizar um projeto de várias publicações. Do que se trata?

J.T.: Fechei um contrato com a Editora Saraiva para lançar uma série de livros chamados: “Comecei do Zero – 16 histórias de pessoas que chegaram lá com as próprias pernas”. São memórias de pessoas de várias áreas, que, contra todas as possibilidades, tornaram-se vencedoras, não necessariamente pela grana, mas pela circunstância em que viviam. Serão contadas na primeira pessoa. Não são livros de autoajuda, e já estão prontos. Das 31 pessoas que entrevistei, escolhi 16. A apresentadora Eliana, que é filha de porteiro de prédio; Sig Bergamin, que nasceu em Mirassol e até os 15 anos era um garoto de roça, que assumiu o nome de tanto ser zoado por ter a língua presa… O lançamento está previsto para este semestre.

P.daVila: Você é um ‘vilamarianense’ nato! Como é sua relação com o bairro?

J.T.: Sou nascido, criado e crescido aqui, na Vila Mariana. Meu avô, italiano, trabalhou na construção do Instituto Biológico. Quando minha família migrou para o Brasil, veio morar em uma travessa da rua Tangará que hoje não existe mais. Moro em um dos primeiros prédios do bairro, na Conselheiro Rodrigues Alves. Nos meus 46 anos de vida, lamento ter perdido muitas coisas… A rua Áurea, por exemplo, era a essência da Vila Mariana: arborizada, cheia de casinhas, onde passava um ou outro carro. Essa é minha memória do bairro, antes de ele sofrer com a especulação imobiliária. Nossa sorte é esse pedaço ser tombado. Rezo para que se mantenha a tranquilidade e que a vida noturna não cresça tanto, para não virarmos uma Vila Madalena. Adoro, frequento todos os bares daqui, mas que não passe disso! Tenho que ter o prazer de caminhar pelo pedaço!