FLÁVIO GUARNIERI
Com 32 anos de carreira, o autor e produtor já perdeu as contas em quantas peças, novelas, minisséries e filmes já atuou. Filho do renomado dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e da jornalista Cecilia Thompson (nossa querida colunista), está atualmente em cartaz no MUBE com a nova montagem do espetáculo que o pai escreveu e em que atuou: “Eles não Usam Black-tie” — marco do teatro brasileiro. Emocionado com o trabalho, em que faz o papel que foi de seu pai, em 1958, ele fala sobre o Teatro de Arena, a Ditadura Militar, lembranças de sua infância (rodeada de grandes artistas) e do prazer de fazer Tião.
Pedaço da Vila: Seu pai e sua mãe se conheceram na Vila Mariana?
Flávio Guarnieri: A família da minha mãe é da Vila Mariana. Meus avós – Expedito Frederico Thompson e Paula Riether Thompson — moravam na travessa da Rua Humberto I — onde, inclusive, minha mãe e meu pai ficaram noivos, mais tarde. Depois mudaram para rua Morgado de Matheus, onde passei grande parte da minha infância. Meus avós — Edoardo de Guarnieri e Elza Martinenghi Guarnieri – moravam na Rua Áurea. Quando vieram da Itália — meu pai é de Milão, e meus avós de Veneza —, foram direto para o Rio de Janeiro. Nessa época, meu pai tinha uma babá chamada Margarida, pois meu avô, que era maestro, e minha vó, que era harpista, trabalhavam fora. A babá nem sempre podia ficar com ele na casa dos meus avós, então o levava para o morro, onde ela morava. Daí veio o conhecimento que meu pai tinha das pessoas que viviam no morro, da união delas, experiência que ele retratou tanto na peça “Eles Não Usam Black-tie” como em “Gimba”. Foi no teatro de Arena que minha mãe conheceu meu pai, embora os dois morassem na Vila Mariana, eles nunca haviam se cruzado pelas ruas do pedaço. Foi na Rua Áurea, em 1958, que ele escreveu “Eles Não Usam Black-tie”, época em que eles ficaram noivos.
P.daVila: Você não nasceu no Brasil…
F.G.: Nasci em Portugal, quando eles foram para o país apresentar “Gimba”. Na época, grávida não podia viajar de navio se estivesse com mais de seis meses — não sei se isso continua a valer até hoje —, mas minha mãe escondeu que já estava com nove meses e conseguiu embarcar. Nasci uma semana depois de o navio chegar.
P.daVila: Fale sobre a importância do Teatro de Arena.
F.G.: O Teatro de Arena, do qual um dos fundadores foi meu pai, enfrentava uma série de dificuldades e estava quase fechando as portas. Era muito complicado competir com as peças estrangeiras e as grandes produções que eram montadas no Brasil. O Zé Renato — que morreu recentemente — propôs então que o grupo montasse uma peça assinada por um integrante deles, um autor novo, que tinha escrito sua primeira peça. Era o meu pai. A peça, a princípio, chamava-se ” O Cruzeiro Lá do Alto”, cuja referência é do cruzeiro do morro, onde o Tião (personagem central) e a Maria (sua noiva) namoravam. Zé Renato disse que o nome não era comercial, meio estranho, e pediu que meu pai trouxesse outro título para a peça. Meu pai então mudou o nome para “Eles Não Usam Black-tie”. Zé Renato achou o nome ainda mais esquisito, mas aceitou. A peça foi montada, mas ninguém imaginava que seria um estouro! As pessoas assistiam ao Black-Tie e se viam lá, pois não tinha aquela separação entre atores e plateia, que era comum na época, já que os espetáculos até então eram sempre de autores internacionais. A peça era o retrato do povo brasileiro. Hoje se fala em teatro pré-Eles não Usam Black-tie e pós-Eles não Usam Black-tie, que é considerada um divisor de águas da dramaturgia brasileira e que revolucionou a forma de fazer e de pensar o teatro, além de reforçar a imagem do autor brasileiro. O sucesso da peça, que ficou em cartaz por 2 -3 anos, levantou o Teatro de Arena. Ela rodou o Brasil inteiro, sendo montada até em circo e terreno baldio, já que não tinha praticamente cenário nenhum.
P.daVila: Quem eram os integrantes da companhia?
F.G.: O grupo do Teatro de Arena era formado por Zé Renato, diretor de Black-tie, Lima Duarte, Juca de Oliveira, entre outros. Do elenco, faziam parte: meu pai (Tião), Miriam Mehler (Maria – que depois foi substituída pela Vera Gertel), Milton Gonçalves (Bráulio), Eugênio Kusnet (que foi substituido por Xandó Batista), Lélia Abramo (Romana), Celeste Lima (Terezinha), Flávio Migliaccio (Chiquinho), Chico de Assis (Jesuíno), Henrique Cesar (João) e Riva Nimitz (Dalva). Meu pai, quando foi fazer a peça “Gimba”, foi substituído pelo Oduvaldo Viana Filho.
P.daVila: Seu pai o influenciou para seguir a carreira de ator?
F.G.: Acho que tive muito mais influência do meio do que do meu pai, propriamente dito. Pensava em ser médico pediatra, piloto de Fórmula 1 e, mais tarde, piloto de avião. Mas qual a única profissão onde eu posso ser tudo isso? Como ator posso viver várias vidas.
P.daVila: Quais suas lembranças da casa na Rua Santo Aleixo (hoje, Rua Augusto de Freitas), onde você cresceu?
F.G.: Lembro de uma menina que ficava às vezes cuidando da gente, quase como uma babá, chamada Graça, que tinha acabado de chegar da Bahia. Hoje todo mundo a conhece como Gal Costa! Minha casa era frequentada por pessoas como Chico Buarque, Nara Leão, Tom Jobim, Carlos Lyra, entre outros. Era a época da Ditadura Militar e meus pais escondiam muita gente em casa. Era tudo muito velado, não entendia direito o que estava acontecendo, mas sentia uma pressão no ar. Lembro-me do que tinha um político que eu não se podia dizer o nome, só podia chamar de “tio” (não lembro o nome). Eu, criança, entendia que devia ficar calado, que o que acontecia era uma coisa perigosa, e que podia trazer sérios problemas para os meus pais. Meus pais hospedaram um casal francês que tinha um carro conversível. Um dia saímos, eu e meu irmão Paulo, para dar uma volta com eles no carro. Quando chegamos, meu pai e minha mãe estavam muito nervosos e deram uma bronca no casal por terem nos levado passear. Pouco tempo depois, eles morreram metralhados
pela polícia dentro do carro! Se hoje posso, confortavelmente, contar essa história, é graças a pessoas como meu pai e minha mãe, que arriscaram suas vidas para que hoje a gente tenha liberdade para escrever e falar sobre o que bem ou mal quiser.
P.daVila: Quem foi o responsável pela adap-tação de “Eles não usam Black-tie” no cinema?
F.G.: Foi Leon Hirszman que resolveu filmar. Ele escreveu o roteiro com meu pai. No filme, acho que meu pai tirou um pouco da leveza que existia na peça. O filme foi rodado em 1981. Na cena final, em que há uma passeata, na qual é levado o caixão com o corpo de Bráulio, as pessoas, sem saber que aquilo era uma filmagem, começaram a jogar papel picado das janelas dos prédios. Uma cena inesquecível! No filme, interpretei o Chiquinho, Carlos Alberto Riccelli fazia o Tião, Maria era Bete Mendes, meu pai fazia Otávio, Fernanda Montenegro fazia Romana, Bráulio continuou sendo Milton Gonçalves e Jesuíno era Anselmo Vasconcelos. “Eles não usam Black-tie” foi um sucesso absoluto em várias partes do mundo e seu maior reconhecimento foi ter ganhado o Leão de Ouro (prêmio do júri) e também o prêmio da crítica e do público do festival de cinema de Veneza — orgulho maior por ter sido
justamente na terra dos meu avós paternos.
P.daVila: Foi seu primeiro longa-metragem?
F.G.: Não, esse foi meu segundo filme. O primeiro foi o chamado “As Viúvas”, com direção de Ewerton de Castro. Depois de Black-tie, fiz o protagonista masculino do filme “Janete”, com direção do saudoso diretor Chico Botelho.
P.daVila: Como surgiu o convite para participar da nova montagem de “Eles não Usam Black-iie”?
F.G.: O Dan Rosseto, que é o diretor e adaptador da peça, me ligou para perguntar sobre direitos autorais. Disse que tinha adaptado Black-Tie e já fiquei com medo. Pedi a ele que me mandasse o texto, mas ele disse que não ia mandar, porque ia fazer melhor. Ele me perguntou se não queria marcar uma leitura comigo lendo o Tião, para eu sentir como a adaptação havia ficado. Eu fui para essa leitura e fiquei extremamente emocionado. Dan modernizou, descentralizou as referências ao morro, fazendo com que a peça destacasse muito mais a ética do que a greve — hoje um direito do cidadão. Nessa nova montagem, em que sou um dos produtores, interpreto Tião, personagem de meu pai em 1958. Com essa montagem, também quis fazer uma homenagem a essa grande figura e a esse grande homem que é meu pai e, para isso, convidamos para o elenco algumas pessoas que já haviam trabalhado com ele, como Sonia Loureiro (Romana), Flávio Dias (Otávio) e Greta Antoine (Tézinha). No elenco temos também Lia Antunes (Maria), Rodrigo Duarte (sobrinho da minha queridíssima amiga Regina Duarte) fazendo o Chiquinho, Paulo Gabriel (Jesuíno), Leila Bass (Dalva), Vagner Valério (João), André Luis e Oswanio Ferreira (que se revezam no papel de Bráulio). Infelizmente, não conseguimos nenhum patrocínio — o que, na minha opinião, é um grande absurdo, dada a importância desse texto e desse grande dramaturgo. Bem, isso é o Brasil!
P.daVila: Onde a peça está em cartaz?
F.G.: Estamos no MUBE (Museu Brasileiro da Escultura: Av. Europa, 218 – tel.: 2594-2601), até dia 10 de julho, aos sábados, às 21h (R$ 50) e domingos, às 20h (R$ 40), com meia-entrada. Estão todos convidados! O espetáculo é um sonho que eu estou realizando e é uma emoção estar fazendo o Tião. Espero que meu pai, onde estiver, tenha muito orgulho de mim, como eu sempre tive dele e vou continuar tendo até o fim da minha vida.