Fernando Gonsales

Contemplado vinte e três vezes com o maior prêmio brasileiro de quadrinhos, o HQMIX, o escritor e cartunista encontra nos animais a inspiração para criar suas histórias. Além de veterinário, é biólogo, e foi justamente com essa experiência que criou o rato Níquel Náusea — “Um animal urbano, independente, quase um invasor que as pessoas tentam destruir, mas não conseguem.” A  seguir, o morador da Vila Mariana fala sobre sua vida, carreira, processo de criação e novos projetos

P.daVila: Quando você começou a desenhar?

F.G.: Bem cedo, com o meu irmão. Fazíamos muitas histórias juntos e adorávamos criar monstros. Era uma grande brincadeira. Sempre gostei de desenhar, mas nunca imaginei que faria isso profissionalmente, nem imaginava que fosse viver dos meus desenhos. O mercado é muito restrito, tem muita concorrência e não há muito espaço. Com a internet veio outro grande nicho, porém não gera dinheiro. No começo tive muita dificuldade, não ganhava muito bem. A sorte é que não tive filhos para sustentar, senão teria que procurar outra área para sobreviver.

P.daVila: Você já tinha um esboço dos seus personagens quando resolveu participar do concurso de quadrinhos na Folha de S.Paulo?

F.G.: Eu desenhava muitos bichos, mas quando resolvi prestar o concurso, em 1985, selecionei todo o meu material para concorrer.

P.daVila: É verdade que você, em vez de um cachorro, preferia ter bichos estranhos de estimação?

F.G.: Eu tive cachorro, sim, mas gostava muito de outros bichos também: insetos, gafanhoto, aranha, pulga. Minha pulga viveu bastante e, para alimentá-la, abria a tampa do vidrinho e colava-o em minha barriga. Infelizmente, ela foi assassinada pelo meu primo que queria testar a eficiência de um inseticida.

P.daVila: Qual é a sua formação?

F.G: Eu cursei Veterinária e Biologia, porque gosto muito de animais. Biologia eu demorei 17 anos para concluir, pois me graduei paralelamente ao meu trabalho na Folha.

P.daVila: Você trabalhou como veterinário?

F.G.: Sim, antes de ganhar o concurso da Folha, trabalhei um ano em Tucuruí, na Amazônia, acampado. Foi uma experiência muito ruim, que me fez perceber que não tinha vocação para veterinário. Os animais chegavam em um estado deplorável e eu ficava muito abalado com isso… Eles sofriam muito e eu achava que deveriam ser sacrificados.

P.daVila: Então você é contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte?

F.G.: Acho péssimo. Será uma destruição de grandes proporções. A hidrelétrica vai formar um lago de milhares de quilômetros quadrados e obviamente a floresta vai morrer. Além do impacto do lago, certamente uma cidade será construída no entorno, o que ocasionará grandes danos para a região.

P.daVila: Como surgiu o Níquel Náusea?

F.G.: Como eu precisava de uma tira para participar do concurso, idealizei um animal urbano. O que eu mais gosto nesse personagem é a sua independência. Ele é quase um invasor que as pessoas tentam destruir, mas não conseguem.

P.daVila: Como é o seu processo de criação?

F.G.: Eu sento e reflito sobre algum tema que tem a ver com o universo. Para criar uma aranha, por exemplo, eu me concentro nela, penso nas suas atividades e crio uma história. Se não vier inspiração, eu desenvolvo outro tema. A Biologia me ajudou muito nesse processo.

P.daVila: Além dos animais, você também se utiliza de aspectos da sociedade e do cotidiano?

F.G.: Sim, a despeito de eu não me julgar muito bem informado…

P.daVila: E no comportamento das pessoas?

F.G.: Não. Quando criei o porco Aníbal, por exemplo, eu pensei no animal e nos seus hábitos: que ele come lavagem e é gordo. Agora, se as pessoas se identificam com ele, eu não tenho culpa. Jamais transformo uma pessoa num de meus personagens.

P.daVila: Quantos personagens você já criou?

F.G.: Personagens impor-tantes eu devo ter criado apenas uns dez. Basicamente eu trabalho com o Níquel Náusea e a Barata, além dos coadjuvantes, como a namorada do rato. No entanto, ultimamente eu tenho tiras de baleias, rinocerontes, ursos polares etc.  Eu já fiz um cavalo, de cujo nome não me recordo, mas lembro que o batizei com o nome do meu professor de equinos, foi uma homenagem.

P.daVila: Como é a sua rotina de trabalho?

F.G.: Em tese eu trabalho de manhã, mas não me atento muito a horários. Muitas vezes trabalho à noite, aos domingos e feriados. Eu desenho a mão; a arte final também é a mão. Após esse processo, o desenho é escaneado e a Marília Di Láscio, minha esposa, o finaliza. Eu nunca tenho uma previsão de quanto tempo vou demorar para desenvolvê-lo. Existem tiras que eu crio em cinco minutos, enquanto outras levam cinco horas. Às vezes, eu faço três tiras em um único dia.

P.daVila: Você tem medo de faltar inspiração?

F.G.: Sim, embora eu sinta mais medo de me tornar repetitivo. Desde 1985 já criei mais de sete mil tiras.

P.daVila: A que você atribui o sucesso de 27 anos do Níquel?

F.G.: É difícil dizer o porquê de ser tão duradouro, mas tem algum motivo para ele estar vivo até hoje. Talvez seja pelo de fato de as pessoas já estarem familiarizadas e terem criado um vínculo afetivo com o personagem. É como a um colunista que as pessoas se habituam, mas creio que para durar a criação precisa ser interessante.

P.daVila: O seu traço na criação do personagem mudou muito nesses 27 anos?

F.G.: Eu mudei bastante o personagem, que passou por um processo de evolução. No começo ele era um quadrúpede e, em seguida, eu o fiz segurar alguma coisa. Em 27 anos o personagem tem que ser modernizado para acompanhar o tempo. O Níquel ainda anda de quatro, mas está quase bípede.

P.daVila: E como é a sua relação com o personagem? Conforme a sua visão de mundo muda, o personagem também muda?

F.G.: No começo era muito o universo do rato. Tanto a barata como o rato foram mudando de personalidade. Não quero que sejam entidades estáticas. Conforme eu fui amadurecendo, as caracterís-ticas dos personagens mudaram também. Tudo o que eles fazem passa pelo meu filtro.

P.daVila: E a cidade que seus personagens habitam também mudou?

F.G.: Nunca pensei nisso. Jamais abordei a cidade de uma maneira profunda, já que ela é padrão e nunca foi um personagem. Eu trabalho mais com a visão do rato.

P.daVila: Você já publicou livros com as tirinhas?

F.G.: Sim. Fiz algumas compilações. Tenho doze livros, entre eles, “Com Mil Demônios”, “Colocando os Bofes para Fora”, “Nem Tudo que Balança Cai”, “Vá Pentear Macacos” e “A Perereca da Vizinha”… Costumo fazer uma seleção anual, já que são 300 tiras por ano. Algumas que eu não gosto ficam fora da seleção.

P.daVila: Há tiras de que você não gosta?

F.G.: Sim, há tiras de que eu gosto e as pessoas não. De outras eu não gosto e as pessoas adoram.

P.daVila: Como a baratinha  entrou na tirinha do Níquel?

F.G.: Eu não pretendia torná-la um grande personagem, mas ela foi se desenvolvendo e vingou.

P.daVila: Você se identifica com outros cartunistas?

F.G.: Eu tenho um temperamento muito mais reservado. Sou de uma geração um pouco mais descom-promissada, diferentemente da do Glauco e da do Angeli e Laerte, que trabalham com uma crítica mais social. Eles são mais velhos do que eu, pegaram uma época difícil de ditadura. Essa geração antes da minha rompeu barreiras.

P.daVila: E você tem liberdade total na Folha?

F.G.: Sim.

P.daVila:  Tem ideia de quantos prêmios já ganhou?

F.G.: O HQMIX eu ganhei 23 vezes, em 27 anos. Infelizmente não é um prêmio remunerado, apenas um reconhecimento pelo mérito do trabalho. Tanto as tirinhas como os livros já foram premiados.

P.daVila:  Com tantas premiações, você já recebeu convites para apresentar o seu trabalho em outros países?

F.G.: Sim, publiquei em Portugal e numa revista da Inglaterra, mas foram trabalhos pequenos. Tenho muita vontade, porém não consegui penetrar nesse mercado.

P.daVila: E em exposições?

F.G.: Participei de várias. Há dois anos fiz uma no SESC Vila Mariana sobre animais urbanos. A tira é uma arte gráfica, e o objetivo de HQ é ser publicado graficamente. Embora as exposições sejam muito legais, a HQ não é um trabalho de artes plásticas.

P.daVila: Você trabalha ilustrações?

F.G.: Sim, fiz ilustrações para livros, revistas e guias de viagens, mas  nunca fiz livros infantis.

P.daVila: Você lê quadrinhos?

F.G.: Raramente leio, mas tenho meus ídolos e referências. Gosto muito de Asterix, Quino, Mafalda, os quadrinhos sobre Karl Marx e alguns personagens de heavy metal.

P.daVila: Tem algum novo projeto?

F.G.: Estou fazendo um livro que tem a previsão para ser lançado no segundo semestre. Eu tive uma revista de quadrinhos cujas histórias serão compiladas neste livro. São histórias prontas sobre um feiticeiro medieval, portanto não tem nada a ver com o rato. O nome do feiticeiro é Vostradeis, que dará o título ao livro. Será lançado pela editora Devir. Essas histórias foram criadas entre 1986 e 1996. Durante 12 anos eu fiz revistas para bancas, mas depois esse mercado acabou e todo mundo migrou para os livros.

P.daVila: Como você veio parar na Vila Mariana?

F.G.: Há 20 anos moro no bairro, pois a minha esposa é daqui e ela quis viver perto da família. Marília estou no Colégio Cristo Rei, minha sogra mora na Travessa Humberto I…  E hoje vivemos nesta casa, com este quintal maravilhoso!

Saiba mais: www.niquel.com.br

Edição 119 – Ago/2012

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