Ezio Costa

Pedaço da Vila: Por que o sr. resolveu estudar a história da Cozinha Brasileira?

Ezio Costa: Primeiramente porque gosto de História e, por ser chef de Cozinha, é natural que eu tenha uma percepção diferenciada de um historiador comum. Consigo analisar as criações culinárias com seus ingredientes, o modo de preparo e também o resultado final.

P.daVila:A população indígena no período de nosso descobrimento era bem nutrida?

E.C.: Sim, seja pelos padrões estéticos ou nutricionais. Os índios tinham melhor alimentação do que a população européia . Tanto que em 1550 foi promovida uma festa para Catarina de Médici, em Ruen, na França, onde as índias brasileiras deixaram os europeus embasbacados com sua beleza natural, bem superior aos do padrão europeu. Eram rechonchudas, com bons dentes e boa pele – bem diferentes da plebe que vivia à parte da elite européia.

P.daVila:Quando a corte chegou ao Brasil, estranhou nossa culinária?

E.C.: A colônia não tinha como receber tanta gente de uma vez só. Para alimentar a corte, eles importavam alguns alimentos que não existiam aqui no Brasil. Contudo, foi inserido no cardápio, alimentos brasileiros como o palmito, animais de caça e muitos peixes nacionais. Quando chegou, D. João VI trouxe um livro de culinária “Cozinheiro Moderno”, de 1742, do francês Vicent La Chapelle, um dos melhores chefs de cozinha de todos os tempos, que havia trabalhado na corte portuguesa. Já aqui no Brasil, duas obras de culinária portuguesa já eram muito utilizadas: “Arte de Cozinha”, de Domingos Rodrigues (1680) e “Cozinheiro Moderno”, de Lucas Richaud. Vale destacar que o príncipe regente trouxe de Lisboa o seu chef Vicente Paulino que foi substituído quando faleceu, em 1813, por Patrício Alvarenga, após uma acirrada disputa com o auxiliar Torres, que acabou sendo seu suplente. A comida brasileira até então era muito provinciana e com a influência da corte foi tornando-se mais requintada.

P.daVila:Houve alguma resistência à comida preparada com ingredientes nacionais?

E.C.: Em certos momentos sim. Há um caso notório, o da história do doce “mãe benta”. Doce genuinamente brasileiro, criado pelas freiras do Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro. Esse doce motivou um episódio inusitado: quando Dr. Francisco Leal convidou o Conde de Anadia para uma pequena festa em sua residência. O Conde, fidalgo da melhor estipe, imponente e orgulhoso, vivia inconformado com a estada da Corte no Rio. Não tolerava a terra e menos ainda nossa gente, odiava todas as comidas preparadas com ingredientes do Brasil. Durante a recepção, o Conde serviu-se de “mãe-benta”, elogiando o sabor delicado do doce. Estava convencido tratar-se de farinha de trigo. Quando foi informado de que o bolo ‘mãe benta” era feito de goma de mandioca, o Conde foi a janela e cuspiu o doce e jogou fora o resto, repugnado. Só porque a goma de mandioca era produto brasileiro.

P.daVila:Havia na época livros nacionais que ensinavam a fazer doces?

E.C.: Sim. Historicamente o Brasil sempre foi o maior produtor mundial de açúcar. Entretanto, é natural a sua utilização nas mais diversas criações doceiras. Porque também preparar doces é uma arte que requer muito conhecimento, experiência, domínio de técnicas, deve-se seguir etapas e medir ou pesar os ingredientes. Entre esses livros, podemos citar: Doceira Brasileira, de Constança Oliva de Lima,  1ª edição 1851, Editora Laemmert, Doceira Doméstica, de Anna Corrêa, 1ª edição 1875, Editora J.G. de Azevedo, Doceiro Nacional, de A. Paulo Salles, 1ª edição 1883, Editora Garnier, Dicionário do Doceiro Brasileiro,  de Dr Antônio José de Souza Rego, 3ª edição 1892, Editora J.G. de Azevedo. Atualmente, são muito procurados, mas difíceis de serem encontrados. Eu possuo todos esses exemplares!

P. da Vila:E de culinária para pratos salgados, qual foi o primeiro livro publicado no Brasil?

E.C.: Foi o livro “Cozinheiro Imperial”, de 1840, assinado por RCM. Até a terceira edição essa obra é plágio da “Arte de Cozinha”, de Domingos Rodrigues e do “Cozinheiro Moderno”, de Lucas Rigaud – que têm pouquíssimas receitas brasileiras. Depois, nas edições posteriores, as receitas brasileiras foram sendo acrescentadas.

P.daVila: Qual é a área de maior interesse em suas pesquisas?

E.C: Normalmente estudo influências das cozinhas africana, portuguesa e indígena na culinária brasileira, mas tenho me concentrado na cozinha indígena, sobretudo no uso dos animais para tratamento de certas doenças. Esse conhecimento indígena do uso de animais para curas muito se assemelha aos conceitos da medicina oriental, que acredita que se uma pessoa comer determinado animal irá adquirir suas caracterís- ticas.

P.daVila: Como assim?

E.C.: Por exemplo, no caso das cobras venenosas. De acordo com o livro “O Cozinheiro Nacional”, recomenda-se o uso da cascavel no tratamento da hanseníase (na época chamada morféia). Essa moléstia é caracterizada pela paralisia dos músculos e pela insensibilidade na pele. Segundo a crença popular da época, a cascavel tem a exclusiva característica de ser um réptil com intensos espasmos ou contrações musculares, mesmo depois de morta. Partindo desse princípio, a pessoa portadora da hanseníase, alimentando-se de cascavel, fortaleceria os músculos e consequentemente os sintomas da doença desapareceriam. Também era indicada capivara para sífilis, anu para verrugas, dentre outras curiosidades.

P.daVila:Esse conhecimento indígena no uso dos animais começou a influenciar a medicina e a farmacêutica portuguesa?

E.C.: Sim. Em 1716, na obra portuguesa “Farmacopéia Ulissiponense”, do francês naturalizado português João Vigier, já se recomendava sopa de víbora no tratamento da Hanseníase. Essa obra teve grande influência dos indígenas.

P.daVila: O que traz de inovador a obra “Cozinheiro Nacional”?

E.C.: No prefácio da obra, não assinado, percebe-se um grande nacionalismo do autor A. Paulo Salles – em uma época em que a cultura européia ditava a moda. Também há inovação na substituição dos produtos europeus por nacionais nas receitas.

P.daVila:O autor também era cozinheiro?

E.C.: Acredito que não. Na passagem, ele não se revelou como tal.

P.daVila:Por qual motivo ele não assinou a obra?

E.C.: De acordo com minhas pesquisas, A. Paulo Salles não assinou todos os livros, inclusive o “Cozinheiro Nacional” e é possível que isto não tenha acontecido por pudor – já que o tema culinária na época era muito vulgar e pejorativo.

P.da Vila:As obras de Paulo Salles receberam alguma influência de obras estrangeiras?

E.C.: Sim, da obra inglesa MRS Beeton’s, de Household Management de 1861, principalmente nas ilustrações. A maior diferença é que a comida aqui levava muito sal e pimenta e com a chegada da corte portuguesa ocorreu um refinamento.

Vale ressaltar que quando lançado o “Cozinheiro Nacional”, por volta de 1880, a corte já se encontrava em decadência.

P.da Vila:Quem o sr. considera o melhor chef de cozinha estrangeiro que já trabalhou no Brasil?

E.C.: O mais famoso foi Lucas Rigaud. Ele era francês naturalizado português e acompanhou o Conde da Cunha – primeiro vice-rei do Brasil -, de 1765 a 1767. Antes disso, ele trabalhou na corte portuguesa a pedido de Dona Maria I, mãe de D. João VI. Nessa época, Portugal recrutava para sua cozinha os melhores chefs europeus. Lucas Rigaud publicou, em 1780, a obra “Cozinheiro Moderno” com duas receitas que provavelmente têm influência brasileira: sopa de víbora para purificar o sangue e sopa de caracóis e rãs, para tosse. Existe inclusive uma anedota portuguesa que conta que, Lucas Rigaud preparava constantemente a sopa de víbora para Dona Maria I para purificar seu sangue. Com o tempo, o espírito não reconheceu mais o corpo da monarca e por isso, ela enlouqueceu. Tanto que historicamente, ela ficou conhecida como Dona Maria , a Louca!

Edição 80 – Fev/2009

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