Emílio Fontana

Diretor de filmes que marcaram época, como Nenê de Bandalho (1971), o cineasta independente e representante da Boca do Lixo, pólo cinematográfico instalado no bairro da LUZ, esteve no pedaço para o lançamento de seu novo longa-metragem, Joana D’arc1920Rouen.com – O Processo, no Sesc VM, uma adaptação fiel ao texto do processo da heroína francesa condenada à fogueira. Nesta entrevista ao Pedaço da Vila, ele fala sobre sua carreira, o processo de realização do filme, e critica as dificuldades de se fazer cinema independente hoje

Pedaço da Vila: Em que momento o cinema passou a fazer parte de sua vida? 

Emílio Fontana: Minha relação com o cinema se deu desde a minha juventude, quando comecei a frequentar a biblioteca Mário de Andrade e o cineclube que havia no Masp. Nesse período, cheguei a fazer alguns pequenos filmes, mas não dei continuidade. Desde então o cinema sempre foi uma meta para mim. Meu primeiro longa-metragem, Nenê de Bandalho (1971) foi realizado de maneira independente e de acordo com o cinema que tinha em minha cabeça, tomando como referência alguns cineastas que admirava muito, como Orson Welles, Serguei Eisenstein e Carl Theodor Dreyer. 

Pedaço da Vila: O filme Nenê de Bandalho foi uma adaptação de um conto do escritor Plínio Marcos. Como surgiu a ideia de transformá-lo em filme? 

Emílio Fontana: Surgiu meio que por acaso. Na época, um amigo havia acabado de comprar uma câmera de 16 mm e me convidou para fazer um filme. Ao conversar com o Plínio Marcos, meu amigo de longa data, ele me ofereceu um conto de sua autoria para adaptá-lo para o cinema, que foi o Nenê de Bandalho. O elenco foi formado por amigos e alunos de meu curso de teatro. Enquanto filmávamos nos prédios da Cinemateca Brasileira, que ainda nem era Cinemateca, muitos moradores do entorno participaram do filme como figurantes. O Jô Soares interpretou um repórter. 

Pedaço da Vila: O filme se tornou símbolo de resistência por conta da censura que sofreu durante o Festival de Cinema de Brasília… 

Emílio Fontana: Pelo fato de o filme ser arrogante contra o ‘sistema’ e mexer com as estruturas, ele teve a exibição censurada no Festival, em 1971. Os organizadores do evento me disseram que receberam um aviso do Ministério da Cultura informando que o filme não poderia concorrer aos prêmios de Melhor Filme e Melhor Ator. Na data da exibição, no último dia do Festival, uma viatura chegou ao local, e tiraram a película do projetor para colocar em seu lugar o filme Brasil Bom de Bola. Isso causou revolta. Os estudantes fizeram um quebra-quebra em decorrência desse fato, e o Festival de Brasília foi interditado. Demoramos quatro anos para recuperar o filme, após garimpar informações no Tribunal de Justiça. 

Pedaço da Vila: Desde seu filme,  O Último Voo do Condor (1982), o senhor passou a dedicar-se ao ensino de cinema, teatro e TV. Por que tanto tempo para fazer outro filme?

Emílio Fontana: Tudo está ligado às condições. 

Eu não via expectativas de exibição, por isso a demora para fazer um novo longa-metragem. Não adiantava me matar para fazer um filme sem que ninguém pudesse assistir. É uma coisa que desanima o cineasta. Voltei a ficar animado com a internet. Percebi que ela seria o melhor caminho para fazer o filme chegar ao máximo de pessoas. A luta com as salas de cinema é desigual, não tem como seguir adiante. Se um filme com o Wagner Moura, que foi o caso de Praia do Futuro, do diretor Karim Aïnouz, não consegue derrubar essa barreira, imagine os filmes menores… Quem sou eu para conseguir? As produtoras de cinema estão empobrecidas. Os filmes brasileiros que têm espaço nas salas são, em sua maioria, comédias da Globo Filmes, estreladas por atores globais. 

Pedaço da Vila: Joana D’arc1920Rouen.com – O Processo é um filme ousado. Como surgiu o interesse em levar essa história ao cinema? 

Emílio Fontana: Foi resultado de um casamento, literalmente [risos]. Após casar-me com a atriz Cris Fontana, ela revelou-me que tinha um grande desejo de interpretar Joana D’arc no cinema. Eu já conhecia e já tinha lido o processo de Joana havia muitos anos. Então, comecei a pensar no filme. Fiquei surpreso, porque o escrevente do processo colocou os diálogos, as perguntas que eram feitas a ela e suas respostas. Somente a última parte do processo, já sob os cuidados de outro escrevente, foi feita de acordo com os termos modernos, contendo apenas as respostas. Em princípio, eu pensei em fazer um espetáculo teatral, mas depois percebi que seria melhor um filme. Existem muitos filmes sobre ela, sobre sua infância, suas batalhas, ela com o rei, mas nenhum se atentava ao processo; isso eu nunca vi alguém fazer. Traduzi as partes do processo, juntei tudo e fiz um roteiro dividido em quatro blocos. Preferi manter os diálogos que constam no processo, pois queria uma adaptação fiel ao texto original. 

Pedaço da Vila: Joana D’arc foi um filme pensado para a internet. Por que motivo? 

Emílio Fontana: Exibir um filme hoje se tornou inviável. São Paulo não consegue mais exibir suas produções nas salas de cinema. Os filmes independentes não encontram espaço. Ao mesmo tempo em que isso acontece, uma grande produção norte-americana é exibida em dezenas de salas ao mesmo tempo. O bom cinema fica à deriva. Não dá para sentar e discutir sobre esse problema que o cinema brasileiro enfrenta, pois a desproporção é monumental, se tornou inviável. Na época em que eu lancei Nenê, em 1971, isso era diferente: tínhamos a garantia da lei, que determinava que os cinemas exibissem, pelo menos, 112 dias de cinema nacional. 

Pedaço da Vila: O filme não teve patrocinador nem apoio. Como foi fazer esse filme com poucos recursos? 

Emílio Fontana: O filme foi feito inteiramente de maneira independente, com orçamento zero. Eu tenho um capital que considero muito importante, que são os amigos. Liguei para cada um para convidar a participar do filme, e todos aceitaram colaborar, entre eles Fúlvio Stefanini e Juca de Oliveira. O filme foi gravado no período de um mês, todo em estúdio. Posso dizer que foi um filme feito entre amigos, de maneira colaborativa, e pensado para a internet, que nos ajudou a não ficarmos reféns das salas de cinema. 

Pedaço da Vila: Para o senhor, por que o cinema independente continua às margens? 

Emílio Fontana: Isso acontece porque os interesses econômicos estrangeiros são maiores. Muitas salas afirmam que não têm faturamento. Não sei como isso pode acontecer. E nós, representantes do cinema independente, permanecemos fora do circuito. Agora, nós temos um cinema muito forte aqui em São Paulo. O problema é que os filmes não conseguem encontrar espaço nas salas de cinema, passando apenas em festivais ou na internet. Galileu Garcia, por exemplo, que rodou um filme sobre a vida do diretor Lima Barreto, intitulado LB Persona, trabalhou cinco anos no filme e o exibiu somente uma vez, na Cinemateca . Depois disso, não encontrou mais espaço para outras exibições. Esse fato também me ajudou na hora de pensar em um filme para a internet. 

Pedaço da Vila: Como se deu a relação do senhor com a chamada ‘boca do lixo’ e de que maneira foi importante para sua carreira como diretor? 

Emílio Fontana: Sou um artista alternativo. Minhas raízes desde adolescente se focaram na vida underground das cidades. Logo que virei rapazinho e até muito tarde, era obrigatório visitar o submundo, nas vielas, nos portos e nos cortiços. Quando me deparei com o projeto Nenê Bandalho encontrei um mundo fascinante: a Boca. Integrei-me naturalmente, como se tivesse vivido ali há muito tempo. E ficaram sequelas para sempre, o despojamento, a austeridade, a economia, a pobreza de recursos, a simplicidade ao lado da arte, da beleza, de uma estética preocupada com o detalhe: no teatro em Woyzeck, a fita vermelha como sinal do sangue, no cinema, em Joana a cruz feita com dois galhos amarrados, sem falar no elmo, em pleno julgamento, feito com o fundo de latas de refrigerante, na interpretação de Joana, uma lágrima apenas escorre em 90 minutos…. isso é a boca, que forjou Candeias e outras tantas figuras incríveis de nosso cinema paulista. 

Pedaço da Vila: Em seus filmes, o senhor dá muita importância ao ator e ao texto. Como foi dirigir o Fúlvio Stefanini e o Juca de Oliveira? 

Emílio Fontana: É como eu vejo o cinema, uma imagem que ilustra um pensamento, e o texto é fundamental. Trabalhar com o Fúlvio e com o Juca é fácil para um diretor, pois são grandes atores. Não precisei fazer mais do que dar pequenas coordenadas. 

Pedaço da Vila: A violência é um elemento comum aos personagens de seus filmes… 

Emílio Fontana: O mundo do crime sempre me interessou muito. Neste último, Joana está dentro do crime, julgada por gângsteres, tudo gente comprada. Ela está sendo vista como criminosa. No primeiro longa-metragem, Nenê é uma vítima do ‘sistema’, caçado como se fosse uma fera; arma-se um circo para ele. O Murilo, de O Último Voo do Condor, é um perdedor que tenta enfrentar a estrutura do crime e não consegue. Ele tenta o caminho do amor, e também não consegue. É uma vítima do sistema.