Dona Dozolina

Pedaço da Vila: Quando sua família chegou ao Brasil? 

Dozolina A.B. Di NÁpolis: Minha mãe, Maria Bascute Barolo veio da Itália em 1892. Toda a família era de Roma. Com a queda do governo, tudo acabou para muitos italianos, todos estavam com a corda nos pescoço. Com a abolição da escravatura, os italianos daquela região vieram para trabalhar, pegar firme na enxada. Foram para Itapira, Santa Rita do Passa Quatro; outros vieram trabalhar no Matadouro Municipal (hoje Cinemateca). Minha mãe chegou ao Brasil aos 8 anos de idade e conheceu meu pai, Rogério Barolo, que já vivia em Santa Rita. Tiveram como padrinho de casamento o prefeito da cidade! Em 1914, por causa da Primeira Guerra Mundial, toda minha família materna voltou para a Itália — menos minha mãe. Todos morreram lá. Ela ficou sozinha com meu pai em Itapira. Mas, como meu pai era bem alfabetizado, vieram para São Paulo. Ele veio fazer vitrais e colunas artísticas para as mansões da Avenida Paulista. Papai trabalhava com Alfredo Pujol, que era um grande arquiteto da época. Minha mãe teve 14 filhos, mas só 8 sobreviveram, eu fui a primeira a nascer, no dia 17 novembro de 1906. Sou a mais velha. 

P.daVila: Onde a senhora nasceu?

D.B.: Nasci na Rua Domingos de Moraes, onde hoje é o Pão de Açúcar, no Largo Ana Rosa. Naquele tempo, o bonde ainda era puxado pelo burro…  Minha casa ficava a 200 metros do cinema Apolo. E como a família não tinha muito dinheiro, e ficava muito caro ir ao cinema, na época uns 300 réis, o porteiro deixava a gente entrar! Nessa época, o bairro era chamado de Ana Rosa e por isso colocaram esse nome no largo. Era um lugar muito bom: todos eram amigos, pessoas educadas; não ocorriam crimes. Havia um bosque bonito, onde eu passeava bastante. Quando os libaneses chegaram foram para aquela região do Paraíso. Eles escreviam cartas aos patrícios da Síria dizendo que ali parecia um paraíso, e ficou esse nome.

P.daVila: A senhora estudou?

D.B.: Sim, estudei até o quarto ano primário, no Grupo Escolar Rodrigues Alves, na Avenida Paulista. Acordava cedo, minha mãe me arrumava e eu ia sozinha para a escola. Com toda aquela filharada, minha mãe não podia me acompanhar. Eu sempre tive uma proteção de Jesus, o Pai do Universo. 

P.daVila: Quais eram as suas brincadeiras?

D.B.: Na infância eu não tinha muitos amigos e brincava muito sozinha. Na Rua Vergueiro o solo era de argila, e eu fazia cobra, casinha, galinha. Moldava de tudo. Antes de meu pai chegar do trabalho, eu colocava os meus trabalhos na prateleira e mentia para ele que a mamãe havia comprado. Ele dizia: “Que bonito!” e eu falava: “Não é verdade pai, fui eu que fiz!”. E ele dizia: “É mesmo? Você pode ser arquiteta, pode seguir carreira!”. Na verdade, eu queria ser advogada, mas era muito caro, os livros eram caríssimos. Eu gostava muito de ler, lia bastante, de tudo, até bula de remédio. Brincava também de bolinha de gude com meus irmãos e de amarelinha.

P.daVila: A senhora conheceu a Villa Kyrial? (mansão do senador José de Freitas Valle, reduto dos intelectuais modernistas, na rua Domingos de Moraes, 10)

D.B.: A vila era meu caminho para a escola. Era um lugar cheio de flores, colunas grandes. Eu conheci o jardineiro, seu Antonio, e pedia flores para ele, dizendo que ia levar para meu anjinho. Um dia ele me questionou, pois eu pedia flores todos os dias. Daí, tive que falar a verdade, que as flores eram para minha professora, dona Luiza, um amor de professora. Era um lugar muito chique a Kyrial. 

P.daVila: Como foi sua adolescência?

D.B.: Comecei a trabalhar aos 15 anos, era uma época em que todos usavam chapéu, e eu ia trabalhar de chapéu (foto). Naquela época a gente usava vestido comprido; depois veio a moda charleston e os vestidos subiram até o joelho. Era um tal de fotógrafo tirando fotos das nossas pernas nos bondes… Até me casar, trabalhei em estabelecimentos famosos, como balconista de gente da alta sociedade. Eu vendia produtos importados da França. Trabalhei na Casa Slooper, na Rua Direita, depois no Mappin, na Rua Barão de Itapetininga. Trabalhei também no almoxarifado, no Bosque da Saúde. Levava um lanchinho, comia pouco, levava uma fruta. Depois de casada, cuidei da educação das minhas filhas e da casa.

P.daVila: Fale sobre seu marido.

D.B.: Meu marido (Donato Di Nápoli)  era filho de napolitanos que chegaram ao Brasil com uma reserva de dinheiro e montaram um armazém, uma padaria e uma casa para torrefação de café.  A família dele morava na Rua Maceió, com as avenidas Angélica e Consolação. Mas meu sogro enfartou, aos 40 anos de idade, e minha sogra educou com firmeza os seis filhos. Meu marido era o caçula dos homens e se formou na Pinacoteca do Estado, em tudo relacionado a pintura e gravura (em 1921).  Ele veio trabalhar com a parte de propagandas na Rua Humberto I, fazendo litogravura. Era tudo escrito na pedra: ele fazia, em bico de pena, rótulos de sabonete, como aquele de tira dourada enfeitada com mocinhas de cabelos de ouro, vendido em pacote de veludo. Conheci meu marido na rua onde ele trabalhava. Casei-me na igreja Santa Generosa e tive duas filhas, a Myrthes e a Marisa (já falecida).  

P.daVila: Como a saúde era tratada quando a senhora era pequena?

D.B.: Meus pais nunca tomaram remédio, nunca reclamavam de nada. Minha mãe fazia muito remédio caseiro: chá de hortelã, de poejo; pegava uma caixa de laranja e colocava no sol para secar. Depois pegava as cascas de laranja e as partia, colocava em uma vasilha, para quando a gente estivesse com dor de barrida, tomasse o chá. Lembro que eu ia no matinho que tinha ali na Av. Rodrigues Alves para apanhar erva-de-santa- maria para minha mãe fazer chá. Conhecia bastante remédio do mato: carrapiá, era uma plantinha cuja raiz a gente colocava na cachaça para dar um gosto diferente. Para sarampo tomava chá de sabugueiro. No banho a gente usava sabonete da Ìndia, era muito bom; óleo de amêndoa para a pele… Outra coisa, a gente tomava muito leite de cabra!

P.daVila: A senhora tem lembranças das revoluções ocorridas em São Paulo?

D.B.: Presenciei duas guerras aqui, em São Paulo: a de 1924 e a de 1932. Todo mundo fugia, ia para o interior. Na Rua Joaquim Távora havia muitas metralhadoras apontadas para baixo. Ninguém saía de casa. Nessa época, todos dormiam vestidos, no porão. Tínhamos uma família vizinha, com um filho chamado Moacyr, que, virava e mexia, ficava na rua. O pessoal armado sempre ficava de olho nele com binóculos. Até que atiraram nele que morreu na calçada, na esquina da Joaquim Távora com a Domingos de Moraes. Em uma tarde, estávamos todos no portão e, de repente, veio um tiroteio para cima de nós! Deitamos no chão correndo, pois meu pai sempre orientava a gente para fazer isso se acontecessem tiros.  Voltamos para dentro de casa rastejando. Isso foi na revolução de 1924.

P.daVila: A senhora passou sua vida na região. Em quais ruas morou?  

D.B.: Nasci no Largo Ana Rosa; na adolescência morei na Rua Gandavo, depois fui para as ruas Marselhesa, Paula Ney e Joaquim Távora. Vivi no Paraíso quando estava casada, até meu pai construir esta casa, onde hoje moro com minha filha e neta. Nasci no bairro e nunca saí daqui, sempre morei na região. Meu pai comprou o terreno dos Klabin, pois eles lotearam tudo por aqui. Tudo, inclusive o cemitério da Vila Mariana, pertencia aos Klabin. Tudo ao redor pertencia a eles. Quando ele começou a construir esta casa, eu ainda era solteira e morava com meu pai, na Rua Joaquim Távora. A casa ficou prontaem 1947, quando eu já estava casada. Em 1947 meus pais vieram para cá. Meu pai morreu em 1958, com 88 anos, mais ou menos; minha mãe, em 1986. Acabamos de vender a casa. Queremos morar em um apartamento. A própria incorpora-dora está procurando um apartamento para morarmos, aqui na Vila Mariana. É mais seguro… 

P.daVila: O que a senhora mais gostava de fazer?

D.B.: Viajar! Gosto muito de mato! Fomos a Poços de Caldas, para a Cachoeira do Véu de Noiva, sempre íamos à praia. Fomos até Foz do Iguaçu.  Eu gostava de pegar o bonde de Santo Amaro para passear, gostava quando ele apitava, parecendo um trem. Quando éramos jovens, íamos ao Parque da Aclimação, onde ocorriam reuniões da alta sociedade, com pessoas elegantes, bem-vestidas, de sombrinhas… O parque Ibirapuera ainda nem existia.

P.daVila: Ao completar 106 anos, bem de corpo e de cabeça. A que credita tanta saúde? 

D.B.: Nunca tomei álcool, nunca fumei, caminhava bastante, adorava dar cambalhotas no cano do parque quando menina e minha mãe sempre fazia comida saudável. Quando comecei a trabalhar, saía da Joaquim Távora e ia até o Bosque da Saúde a pé, pois  naquela época não tinha transporte como hoje. 

Eu lia muito: Iracema, Inocência, Guarani. Lia muita coisa. Na minha época não tinha essa coisa de menina moderninha, eram todas muito simples. Ninguém gostava de muita bagunça; tinham mais juízo. Há muita diferença dos jovens de hoje com os jovens de antigamente. Hoje muitos jovens já fumam e bebem desde cedo. Hoje tem muita miséria e falta de escola, de conhecimento, de educação. Educação é tudo! Naquela época as pessoas eram bem diferentes, tudo era mais bonito. Não tinha essa violência que tem hoje, quase nunca se ouvia falar em alguém que matou outro. 

P.daVila: Que balanço a senhora faz entre a época em que nasceu e a de hoje em dia?

D.B.: As transformações no mundo caminharam para um ponto crítico, muito triste, a coisa não está nada boa aqui, não. A natureza é uma coisa muito importante, sabe, essa coisa de explorar tudo está muito errado. O universo está muito pesado. Sempre estive muito próxima da natureza; quando criança eu fiz uma horta e plantei todas as plantas medicinais que mamãe usava para fazer remédio para nós: poejo, hortelã, erva cidreira, erva-de-santa-maria.  Minha vida sempre foi ajudar todo mundo, penso muito nas necessidades dos outros, tenho muita pena quando acontece algo ruim com as pessoas. 

Eu, também, não esquento a cabeça com pequenas coisas. Aprendi que quando temos algum problema que está nos incomodando, o melhor é deixarmos ele para trás, porque outros virão.