CLEUSA MARIA MANTOVANELO LUCON

No mês mundial da alimentação, o Pedaço da Vila conversou com a doutora em Microbiologia Aplicada, do Instituto Biológico. Defensora da agricultura orgânica, a pesquisadora de controle biológico de doenças de plantas e de tecnologia aplicada de agentes biocontroladores, explica as diferenças entre a agricultura convencional e orgânica, que ela prefere denominar como agroecologia

Pedaço da Vila: Por que tamanha necessidade de agrotóxico nos alimentos?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: O agrotóxico é utilizado para controle de doenças e pragas, na maioria das vezes. São cada vez mais usados devido ao monocultivo, quando você planta uma coisa só. Isso reduz a biodiversidade do ambiente e aumenta a probabilidade de haver problemas danosos. Na mata, onde existe biodiversidade muito grande, essas mesmas pragas e doenças atacam somente determinados tipos de plantas. Quando existe biodiversidade, a floresta não morre, porque algumas plantas sofrem e outras não. Na monocultura, a tendência, quando aparece uma doença, é não ter nenhuma barreira, nenhuma outra planta que possa atrapalhar esse patógeno, então, ele vai passando de uma planta para outra até dizimar tudo. É para isso que se usa o agrotóxico, para evitar que essas doenças ou essas pragas eliminem as plantas do seu interesse.

P.daVila: Isso acontece também com a carne e com o ovo?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: Com a produção imensa de um único animal também acontece por falta de biodiversidade. Então, para protegê-los, se faz um melhoramento genético, uma coevolução com a praga ou patógeno e o bicho. Antigamente, na natureza, tudo ia evoluindo em conjunto. Quando o homem começou a manipular plantas e animais, foi rompido um ciclo, chamado de coevolução. E quando aparece um patógeno no animal que foi modificado e que nunca entrou em contato com o patógeno, ele não tem resistência e sofre. Aí lançam mão de algum remédio para controlar aquilo que o animal não tem resistência. Hoje em dia, no Brasil ou em determinadas regiões, quando você vai desenvolver uma planta para ser cultivada em grandes áreas, é feito o melhoramento genético, já buscando uma planta que seja resistente a determinadas doenças e pragas.  Só que o organismo vivo tem uma informação genética e quando você mexe em um pedaço do gene, é possível ter outro que você pode estar perdendo. E é por isso que doenças que antigamente nem eram tão problemáticas, começaram a ser. O homem vai mexendo nas coisas, só que ele não é Deus! Há todo um efeito colateral. 

P.daVila: Quais as diferenças entre os alimentos

orgânicos e os alimentos convencionais?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: Eu, como uma consumidora de orgânico, diria o seguinte: consumir um produto que não recebeu uma carga de produto químico, já é uma bênção. Existe a questão ideológica, pois, como microbiologa, sei que, quando você aplica um produto químico, ele não pega somente naquilo que você quer matar, ele acaba prejudicando outros organismos que não têm nada a ver com a história. Então, há um grupo de organismos que é afetado pelo produto químico. Hoje em dia está na moda o fungicida sistêmico, e muitos dizem que é uma beleza. Ele é chamado de sistêmico porque vai para dentro da planta, circulando dentro dela. Antigamente era somente na parte externa, e quando a planta era lavada, o veneno era eliminado. Atualmente você come os sistêmicos; que passam para o interior da planta. A primeira diferença, para mim, é a planta já não ter essa carga de produto químico, dentro e fora dela. Nos alimentos orgânicos, você pode comer até a casca, pois, a maioria dos nutrientes se encontra na casca. Nos alimentos tratados com agrotóxico, os nutrientes se perdem . Outra coisa, é que a planta não toma alimento de canudinho, ela tem que ir buscar, pois cresce num sistema radicular. Quando você pega uma planta que recebe essa carga de químicos, ela praticamente não tem microorganismos no entorno da raiz, não forma uma teia, inclusive de fungos, que ajuda na absorção de nutrientes. Uma planta é muito mais nutrida quando tem microorganismos, que ajudam na decomposição dos nutrientes. 

P.daVila:  Há pessoas que dizem: “não existe alimento que não seja orgânico”. 

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: Orgânico é tudo o que tem carbono e hidrogênio, uma planta produzida de forma convencional é tão orgânica como qualquer outra. Então, qual é a diferença? A orgânica está muito bem equilibrada e é muito mais saudável porque quando o inseto morde a folha ou aparece um fungo, querendo penetrar, é a planta mesmo que está se defendendo, e por isso ela vai ficando mais forte e mais saudável, pois ela cresce num ambiente muito mais equilibrado e vai te dar uma quantidade maior de nutrientes. A microbiótica ajuda a disponibilizar esses nutrientes na absorção e ela cresce no tempo dela, sem interferências.

P.daVila:  O que difere nos nutrientes dos alimentos eles serem orgânicos?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: A adubação química não é permitida na agricultura orgânica porque um adubo químico é um nutriente de fácil disponibilização. Você coloca um adubo e a planta cresce, pois tem nitrogênio, fósforo, potássio, que são os macronutrientes. A planta absorve tudo e cresce, mas ela fica com excesso de nitrogênio, seu organismo fica desequilibrado e ela é atacada por pragas. É a mesma coisa se você comer somente bata frita e bife. Na agricultura orgânica você busca o equilíbrio ambiental, busca usar adubo de baixa disponibilidade. Então, a planta vai usando, por exemplo, a matéria orgânica que é colocada no solo; a cadeia de vida é alimentada. O solo, na agricultura orgânica, é visto como um organismo vivo, e não só uma esponja no qual você coloca nutriente e a planta absorve. Não pode usar adubo químico por conta disso, pois a planta cresce muito rápido, mas ela não se desenvolve e nem passa por todo o processo para estar saudável. Quando você fala em agricultura orgânica, fala em cobertura do solo, em adicionar matéria orgânica: estercos, adubação verde, biodiversidade. Hoje o mono-cultivo orgânico existe, mas não consideramos o ideal. Ideal é a biodiversidade na propriedade: você planta a raiz, tubérculo, folhas e cria um sistema rotacional, que é outra coisa que a agricultura convencional não gosta de fazer. A agricultura convencional pensa tudo em grande escala de produção… Tem de produzir e produzir, pois tem que servir. E você até vende antes, às vezes. Quando se fala em commodities, os alimentos são vendidos até um ano antes. Os agricultores colocam o seu dinheiro naquele tipo de coisa e precisa servir o mercado e ele só ganha dinheiro dessa forma! Agora, um produtor orgânico faz a venda direta, não existe atravessador. Essa, inclusive, é a grande dificuldade da agricultura orgânica. 

P.daVila: Pequenas lesões nas cascas dos alimentos são um bom sinal?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: As pessoas, atualmente, não encaram comida como um alimento, mas como um produto. Então, às vezes, quando as plantas têm uma lesãozinha, já as desvalorizam. Na natureza não existe o que não tenha uma lesão. Quando encontram um bichinho na comida, as pessoas acham um horror. Eu já acho muito bom, pois foi aplicado menos produtos químicos nela. Antigamente, quando íamos pegar uvas encontrávamos aqueles fios de teia de aranha; lavávamos e não nos importávamos. Hoje as pessoas têm nojo de qualquer bicho. Um produtor de hortaliças aplica, durante a semana, quatro produtos químicos, dois fungicidas e dois inseticidas para prevenir as pragas. Então, independentemente de ter a doença ou não, praga ou não, aplicam o inseticida para não correr o risco de perder a produção.

P.daVila:  A agricultura orgânica é chamada assim só por não usar agrotóxicos? 

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: Ela é muito mais profunda do que isso. Eu gosto do termo agroecologia, que é uma agricultura praticada dentro dos moldes de um ambiente mais equilibrado. A agroecologia é uma ciência que lida com todos os fatores, inclusive com a parte social. Quando se fala em agricultura orgânica, você está preocupado se o agricultor e sua família estão felizes, se as pessoas que trabalham em sua propriedade estão sendo bem tratadas. Um produtor orgânico, de fato, oferece condições de vida boa para todo mundo. Ele cuida da parte social, da parteeconômica, das pessoas que estão com ele — e até de quem vai fazer investigação. Vou explicar: uma empresa que dá um selo de orgânico visita a propriedade e pergunta, até para o vizinho, se quem planta é uma boa pessoa. Não é simplesmente parar de usar agrotóxico. 

P.daVila: Essa consciência sobre os produtos orgânicos e sua produção tem alcance nacional?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: É muito difícil fazer o levantamento de tudo o que é produção orgânica. Existe muita gente tentando se certificar; e não é porque quer, e, sim, porque alguém da família foi intoxicado ou morreu. A quantidade de intoxicação por químicos é gigantesca, é assustador o número de pessoas, ligadas à agricultura convencional, que morrem por ano em decorrência do agrotóxico. Isso raramente vem a público…

P.daVila:  O que leva um agricultor convencional a se tornar um produtor orgânico? 

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: Primeiro: porque ele tem na cabeça que aquilo que ele faz é errado, e não quer que a família dele continue comendo aquilo; ou porque alguém foi intoxicado, morreu, ou ainda está com câncer ou não consegue respirar direito. O produtor não tem opção diante desses fatos e só vai continuar produzindo se for orgânico! Tem também aquele que resolveu ser orgânico para ganhar dinheiro, uma vez que alguns produtos orgânicos têm um preço, no mínimo 30% maior, que o convencional. Mas, de qualquer forma, o melhor alimento é o orgânico, na qualidade, no sabor…  Não tem comparação! O nosso corpo é muito preciso. Estamos adoecemos pelo que respiramos e comendo. Por enquanto, os produtores orgânicos são pequenos. No Brasil, hoje, consumimos agrotóxicos que no exterior já foram proibidos há muito tempo. As pessoas estão mais preocupadas em sobreviver do que com o que está comendo e respirando. O orgânico é muito legal pela complexidade; não é somente porque não usa agrotóxico, mas é porque está preocupado com o ambiente.

P.daVila: Então, a agricultura orgânica é levada muito mais a sério do que a convencional?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: Um remédio de farmácia, por exemplo, você usa quando sua saúde não está boa; agora, na agricultura não é assim. Ele é usado mesmo que nada esteja errado, de forma preventiva. Hoje tem vários tipos de agricultores, e tem inclusive o tipo integrado, que é o cara que monitora todas as condições ambientais, vai caçar todos os insetinhos, conta quantos têm… Existe certo número aceitável de insetos e se aumentar –  e aí ele entra com o químico, mas só de correr o risco de ter algum tipo de dano econômico. Mas se trata de uma pessoa especializada para fazer isso. Hoje, existe um movimento muito grande dentro do Ministério da Agricultura para aumentar o número de produtores orgânicos. Essa é uma demanda da agenda 21. A sustentabilidade tem a ver com a preservação das futuras gerações; deixar um planeta bom para elas. A sustentabilidade está baseada em reduzir o uso de agroquímicos.

P.daVila: O futuro do alimento é a agricultura orgânica?

Cleusa Maria Mantovanelo Lucon: Sim! As pessoas estão, a cada dia, mais preocupadas com a qualidade de vida. Querem saber como o alimento foi produzido. 

Na Europa, por exemplo, estão preocupados se há crianças trabalhando naquela propriedade, se existe serviço escravo; sobre quem está produzindo o alimento. O alimento orgânico não é tratado apenas para comer. Ele precisa ter de um histórico. Se o Brasil é chamado de seleiro do mundo, ele irá exportar cada vez mais alimentos, e será cobrado por isso. Teremos, então, de melhorar a nossa produção. E quando falamos sobre alimentos, eu diria o seguinte: embora seja a passos lentos, a educação no país está melhorando. Hoje, as pessoas estão cada vez mais preocupadas com sua qualidade de vida, já é uma necessidade. Se quisermos um planeta mais saudável, não temos alternativas, teremos de praticar a agroecologia. A terra nos dar o alimento é um verdadeiro milagre!