César Pegoraro

O biólogo e especialista em gestão ambiental atua junto à Fundação SOS Mata Atlântica e dá consultoria sobre educação socioambiental, com enfoque em recursos hídricos. Na entrevista a seguir, ele explica como a cidade condenou seus rios, alerta sobre o desperdício de água e ensina alternativas para racionalizar seu uso

Pedaço da Vila: Qual é sua formação e área de atuação?

César Pegoraro: Sou formado em Biologia, mas desde a faculdade eu estudo assuntos ligados à gestão ambiental. Atualmente dou consultoria sobre o tema para empresas e também atuo na área de educação socioambiental em escolas. Nos últimos dez anos, dedico-me a questões relacionadas à água e aos recursos hídricos.

P.daVila: Que tipo de atividade realiza nessa área?

César Pegoraro: Trabalho com a Fundação SOS Mata Atlântica, colaborando em projetos e pesquisas junto a integrantes de diversos setores da sociedade civil organizada e escolas. O objetivo do trabalho é levar grupos para conhecer os rios. A atividade se chama “Adote um Rio”, e durante o passeio as pessoas têm a oportunidade de monitorar mensalmente a qualidade das águas dos corpos hídricos. O monitoramento é uma premissa para os participantes refletirem acerca dos mananciais, pois é muito importante que todos tenham consciência da origem da água, qual é o seu destino, a maneira como chega às torneiras e sai pelos esgotos. Posteriormente, é proposto um debate para pensarmos em processos de despoluição e ações comunitárias para a transformação dessa situação.

P.daVila: A cidade de São Paulo está situada em uma área muito rica. De que maneira a cidade comprometeu seus rios?

César Pegoraro: São Paulo é um território muito rico em todos os aspectos, com alto potencial hídrico, o que contribui para a pesca e a agricultura. Tem florestas abundantes e solo fértil, além de facilidade de locomoção. O crescimento das cidades mudou a relação da sociedade com o rio, que passou a ter uma relevância secundária e se transformou na matéria-prima para a construção da metrópole.  As várzeas dos rios Tamanduateí, Tietê e Pinheiros foram ocupadas pelos portos de areia e olarias; e as atividades, como a pesca, perderam espaço para outras finalidades. Para o funcionamento desses empreendimentos, foi preciso modificar as margens dos rios, e isso gerou um grande impacto, que culminou não só na poluição da água como também na descaracterização da mata ciliar, que envolve as margens, já que houve remoção de barro e areia. A chegada da população, diretamente ligada à presença das fábricas, trouxe outro problema, que é a habitação. Para se fixarem na cidade, não foi feito um planejamento urbano, e a população foi ocupando o território desordenadamente, o que saturou o município, oprimindo e sucumbindo rios, córregos e áreas verdes. Além disso, as indústrias não poluem apenas na fabricação, pois todo o seu ciclo de produção é poluente: usa muita água, gera lixo e esgoto, e é altamente danoso para o meio ambiente. Em 1930, o prefeito paulistano Faria Lima contribuiu para o plano de avenidas e o incentivo ao automobilismo. Esse fato foi fundamental para que rios centrais e importantes, que já eram secundários na cidade, perdessem totalmente a sua visibilidade. 

P.daVila: Como a Legislação Ambiental auxilia na preservação da natureza, e desde quando ela existe?

César Pegoraro: A primeira lei em vigor é de 1934 e apontou a importância da preservação de algumas florestas. Em 1965 foi implementada a primeira versão do Código Florestal, que trouxe muitos avanços e mensurou e classificou o que deveria ser protegido. Contudo, no caso das cidades, o que está em vigor é o Código de Obras. O Código Florestal, infelizmente, não vale, já que sua legitimidade inviabiliza a existência das marginais e avenidas im-portantes, como a Av. 23 de maio, 9 de julho e Av. do Estado. O ser humano, muitas vezes, se comporta de uma maneira suicida, pois não tem a sensibilidade de compreender que a terra, o ar, as águas e as florestas que ele está contaminando é o que garante sua existência.

P.daVila: Hoje, o principal problema diz respeito à água. Ao mesmo tempo, temos estiagem e enchentes. Por que isso ocorre?

César Pegoraro: É preciso compreender que a água não é produzida onde é consumida, nas grandes cidades. O sistema Cantareira fica distante dos lugares que abastece. Durante o período chuvoso, ocorre a recarga dos aquíferos, que correspondem à camada dos lençóis freáticos. No momento da chuva, a terra seca é o primeiro lugar que absorve a água. Portanto, chover no sistema Cantareira não garante o enchimento da represa, pois quem se reabastece primeiramente são os reser-vatórios subterrâneos secos, que absorvem todo o volume da chuva e não permitem que o nível do reservatório aumente. No caso do Sistema Cantareira, não existe problema de imper-meabilização; ocorre que a água que está caindo, nesse momento, lá, está indo para o subterrâneo seco, debaixo da terra. Para agravar a situação, aqui, na metrópole de São Paulo, a imensa mancha impermeável faz com que qualquer chuva tenha reflexo imediato nas calhas naturais de remodelagem dos rios, que, por sua vez, não suportam a quantidade de água que chega, em virtude da imper-meabilização. A água volumosa cria velocidade e não penetra na terra; a enxurrada vai toda para o fundo do vale e provoca enchentes nesses pontos.

P.daVila: São problemas já conhecidos que se repetem. Por que não há uma medida preventiva?

César Pegoraro: As pessoas só têm consciência dos recursos em situações extremas, como exagero ou a escassez, pois os dois cenários causam trans-tornos e incômodos. O grande desafio é olhar para a enchente durante o período da escassez de água e pensar em uma forma de equilibrar os extremos. Temos que fazer a nossa parte, não se pode esperar do poder público. Há técnicas simples que podem ser feitas nas próprias residências, evitando o desperdício de água e eletricidade. Atualmente, nada justifica o desperdício, pois temos disponíveis inúmeras tecnologias favoráveis à economia e ao controle do consumo. Ninguém sabe onde e como o alimento foi plantado, em quais condições foi feita a colheita, quanto tempo tudo isso levou até chegar ao prato, qual a quantidade de água usada para a produção. É necessário que se pense em ter tetos verdes, jardins produtivos, sistema de hortas comunitárias e produção de alimentos, pois são meios de assegurar a água e as condições climáticas, reduzir a impermeabilidade do solo e fomentar a socialização entre as pessoas.

P.daVila: Hoje desperdiçamos muita água? 

César Pegoraro: A perda de água tratada na rede é de 25,7%. Isso corresponde a pouco mais de ¼ da água de todo o sistema que abastece a região do Alto Tietê. Ela ocorre em virtude de vazamento e furto, e corresponde a mais de ¼ de toda a água tratada, ou seja, ela pode se equiparar, em volume, a toda a água que é tratada na Guarapiranga. Em uma cidade como São Paulo, é um absurdo desperdiçar 25,7% da água, segundo os dados oficiais da Sabesp, na rede. Eu fico pasmo de ver que diante de índices tão preocupantes, que beiram o colapso há dez anos, não se pensou em alternativas para evitá-lo.  

P. da Vila: Há políticas de reúso dessa água?

César Pegoraro: As políticas e ações mostram que a água para tratamento de esgoto é despejada diretamente nos rios, mas depois de um tempo percebe-se que ela pode ser reaproveitada para outros usos, e a Sabesp passou a vendê-la com a classificação de reúso. No último ano da administração da prefeita Marta Suplicy, essa água foi comprada e usada em feiras e jardins, tendo como resultado uma economia mensal de milhões de reais. A ação continuou em prática durante as administrações municipais posteriores e ainda está ativa. Como essa água é oriunda do tratamento de esgotos, e não é potável, serve para finalidades secundárias, como resfriamento de ar-condicionado e caldeira, feiras, jardins públicos, lava-rápido etc. Nós temos soluções e alternativas para diminuir a demanda hídrica das cidades, porém nada é feito.

P.daVila: Por que não se investe em medidas alternativas?

César Pegoraro: O poder público tem muito preconceito com as medidas “alternativas” e valoriza muito o modelo tradicional de obras de engenharia. Vivemos uma crise grave por conta da contaminação das águas urbanas, provocada, principalmente, pelo esgoto doméstico e industrial. O esgoto é visto como vilão, pois ninguém quer falar sobre fezes, que são jogadas no córrego mais próximo para acabar com o problema. Essa visão é “burra” e pouco lógica, pois deveria se pensar em separar os dois tipos de esgoto existentes, ou seja, o cinza, oriundo de pias, tanques e chuveiros, que é fácil de tratar e reutilizar, e o esgoto de água preta, proveniente de vasos sanitários, composto por fezes, coliformes e patógenos, uma água um pouco mais difícil de ser tratada.A mistura desses dois tipos de água resulta numa inteiramente preta, sendo que a maior parte do esgoto produzido nas residências compõe-se da água cinza. Não existe fundamento nessa lógica de misturar, pois a separação é simples, ecológica e barata.

P.daVila: A chuva que alimenta o Rio Pinheiros abastece algum sistema?

César Pegoraro: Não. O Rio Pinheiros não tem mais fluxo e possui grande canal de fermentação de esgoto. Os rios têm colorações. Enquanto o Tietê, que ruma para o interior, tem um tom marrom; o Rio Pinheiros apresenta cor preta. Há vários projetos para revitalizá-lo, mas por enquanto ele é caracterizado como um rio morto.

P.daVila: É possível recuperá-lo?

César Pegoraro: O processo de despoluição é caro, trabalhoso, demorado, e está longe de haver uma percepção positiva, pois os rios ainda recebem esgoto. A parte mais fácil do processo já foi feita, o difícil é transferir a malha de esgoto. Os investimentos são altos, mas ainda existem lugares sem saneamento, como as favelas, que não tratam seus esgotos e os enviam diretamente para lá. A revi-talização do Rio Tietê começou em 1992 e ainda está em andamento. Como não se trata de política pública, as etapas do projeto não são contínuas e sempre são interrompidas.

P.daVila: O responsável pelos recursos hídricos paulistanos é o governo do estado?

César Pegoraro: Apenas alguns, pois existem as autarquias municipais, como Guarulhos e Grande ABC, que se responsabilizam por uma parcela deles e não têm convênio com a Sabesp. Existem rios que pertencem às esferas federais e são submetidos às decisões da Agência Nacional de Águas (ANA). A estrutura da gestão hídrica é esfacelada.

P.daVila: Para a utilização dos recursos hídricos, como água de lençóis freáticos, é necessária autorização da Sabesp?

César Pegoraro: Eu conheço condomínios que bombeiam a água do poço e pagam para ter um hidrômetro. A questão legal sobre isso é complicada e burocrática, pois, para ter um poço, é necessária a autorização do Ministério de Minas e Energias, que dá uma outorga de lavra. O controle muito centralizado dos recursos é complicado, pois pode classificar pessoas como criminosas por reutilizar a água. 

P.daVila: Uma possível estiagem e o racionamento de água nos rondam constan-temente. Como você encara esse cenário?

César Pegoraro: Cada região apresenta um tipo de desafio e é nele que deve focar. A alternativa que tem sido pensada para a falta de água nas regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas e Piracicaba, nos próximos 20 anos, é encontrar um meio de trazer a água dos rios de outros municípios. Eu acho isso chocante, pois é necessário cuidarmos do pouco que ainda temos de recursos hídricos. As políticas públicas precisam melhorar e não ficar restritas apenas à gestão de governo, pois não adianta fazer campanhas no verão, tomar o recurso do outro município e empurrar a culpa para as outras administrações.