Qual o destino do 36º DP?

Há cinquenta anos, no dia 31 de março, quando o país passava por uma turbulência econômica e política, aconteceu o golpe que tirou João Goulart (1919-1976) da cadeira presidencial e instaurou o regime autoritário que prosseguiu por 21 anos.
Nesse trágico período da história do país, a Vila Mariana ocupou uma das páginas centrais. Foi no número 921 da Rua Tutoia que instalou a Operação Bandeirante (Oban) e em seguida o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgãos responsáveis por prisões, torturas e assassinatos daqueles que se manifestassem contrário ao regime.
Considerado um dos principais palcos de tortura do regime militar (1964-1985), o DOI-Codi abri-gou mais de 8 mil presos políticos torturados, dos quais cinquenta foram assassinados. Não à toa, ficou conhecido como “o porão da ditadura brasileira”. O complexo, composto por cinco prédios alterados e deteriorados pelo tempo, que hoje abriga o 36º DP, um depósito e uma garagem da Polícia Civil, poderá ser transformado em um “Memorial da Ditadura”, seguindo os moldes do que aconteceu com o antigo Dops, que hoje abriga o Memorial da Resistência.
No dia 27 de janeiro deste ano, como foi noticiado pelo Pedaço da Vila, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) atendeu ao pedido e aprovou por unanimidade o tombamento do espaço, “especificando seu valor histórico imaterial”.
Ditadura nunca mais
Na manhã do dia 31 de março deste ano, o pátio do antigo centro de tortura se tornou palco do ato “Ditadura Nunca Mais: 50 Anos do Golpe Militar”. A manifestação reuniu mais de mil pessoas, em memória dos assassinados e para pedir a punição dos torturadores que atuaram no local, entre eles Carlos Alberto Brilhante Ustra e Waldir Coelho.
De caráter eminentemente cultural, o ato contou uma programação diversificada, incluindo espetáculos cênicos, exibição de filmes, apresentação do Coral Martin Luther King e a leitura coletiva dos nomes dos mortos e desaparecidos no espaço, além da presença de ex-presos políticos e familiares, que seguravam cartazes com as imagens de mortos e desaparecidos em nome do regime.
Em uma rápida passagem pelo ato, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, se mostrou a favor da construção do Memorial. “Tudo o que puder ser feito para manter viva a memória dos tempos sombrios é útil e educativo para a sociedade. Não podemos nos esquecer do que significa não poder se expressar ou não ter o direito de se manifestar”, declarou.
“Hoje estamos solidários para recordar aqueles tristes momentos e para que também tenhamos o propósito de jamais permitir que o Brasil deixe de ser uma nação democrática. Hoje viemos aqui para dizer ‘ditadura nunca mais’, ‘tortura nunca mais’, ‘desaparecimento nunca mais’”, disse o senador Eduardo Suplicy.
Muito emocionado, o presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, Adriano Diogo, comparava: “Isso aqui representa a Queda da Bastilha. Isso aqui foi barra pesada. Jamais imaginei que teria coragem de pisar nesse local novamente”.
Para o presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condep) e ex-preso político do DOI-Codi, Ivan Seixas, o ato representou a conquista do território inimigo. “Antes isso aqui era território da barbárie e da desumanidade. Hoje estamos devolvendo à sociedade um espaço que sempre foi dela e que foi usurpado há cinquenta anos pelos golpistas e torturadores”, desabafou.
Após passar doze dias preso nas dependências do DOI-Codi, o atual presidente do Fórum Permanente dos Ex-presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, Raphael Martinelli (89), destaca a importância da construção do Memorial. “Sua construção será importante para que jamais se repita o que aconteceu neste lugar e para que a juventude não permita outra ditadura no país. Naquela época a juventude não tinha voz, hoje é diferente”, diz.
Para quem foi preso no local, presenciar tal manifestação era algo inimaginável, como afirma Artur Scavone: “Este lugar foi um centro de torturas que é impossível descrever para quem não passou por isso. Este espaço precisa ser preservado para homenagear as centenas de pessoas militantes que foram assassinadas ao lutar pela liberdade no Brasil. É uma alegria presenciar isso e espero que seja o princípio para a sociedade brasileira repudiar o que foi feito e o que ainda é feito nas delegacias como resultado dessa cultura que a ditadura deixou”, afirma.
O outro lado
Se, por um lado, comemora-se o tombamento do espaço para a construção de um memorial em homenagem às vítimas da ditadura; por outro, a remoção do 36º DP do local tem preocupado algumas vozes do bairro, que temem pela falta de segurança na região, como é o caso da Associação Viva Paraíso e do Conseg Vila Mariana, que têm abordado o assunto em suas últimas reuniões.
Fundada em 2009, a Associação Viva Paraíso encaminhou um ofício ao governador Geraldo Alckmin, solicitando a manutenção da delegacia, e distribuiu folhetos pelo bairro alertando sobre a segurança. “Dentro da nossa microgeografia, na qual a delegacia está inserida, as construtoras pagam pelos terrenos a preço de ouro. Achar um espaço útil para transferi-la é uma utopia. Em que outro lugar ela pode ser instalada?”, questiona o presidente da Associação, Fernando Roberto Medeiros.
Integrante do conselho consultivo da Viva Paraíso, o arquiteto Otávio Hosokawa pondera que não se trata de serem contrários ao tombamento, e diz: “Não temos delegacias próximas. Se ela sair dali, certamente não será instalada em nenhum outro lugar do bairro, será simplesmente esquecida. Nossa luta é para manter a delegacia no local e prezar pela segurança da comunidade. A área é grande, então, por que não criar o memorial e manter a delegacia?”
Para Ivan Seixas, manter a delegacia no mesmo espaço que o Memorial seria contraditório, e reitera: “A delegacia já existia na época da ditadura militar. Queremos que ela seja removida. Hoje temos que fazer a sua retirada para então criar o Memorial da Ditadura”.
Órgão ligado à Secretaria de Segurança Pública, o Conseg Vila Mariana também se manifesta contrário à remoção da delegacia, temendo pela segurança do bairro. “No momento em que vivemos o maior pico de insegurança, ao invés de estimular a criação de modalidades policiais voltadas para o policiamento comunitário, retira-se uma delegacia que nos atende”, diz o presidente do órgão, Edison de Souza Sant’Ana.
A ausência de espaço para alocar a delegacia é um dos principais problemas levantados pelo órgão ligado à Secretaria de Segurança Pública. “Não há a possibilidade de alocá-la em uma área próxima, pois temos uma carência muito grande de espaço na Vila Mariana e no Paraíso”, ressalta o presidente. No entanto, ao Conseg cabe somente encaminhar as atas redigidas durante as reuniões à Secretaria de Segurança Pública.
Diante das tristes memórias e das discussões que se concentram na remoção ou não a delegacia para construir o Memorial, nossa colunista, a jornalista Cecília Thompson, que viveu os anos de chumbo com o então marido Gianfrancesco Guarnieri, acredita que, para sublinhar as atrocidades cometidas no local, só mesmo construindo um lindo parque repleto de flores para receber crianças, com uma parede contendo os nomes de todas as pessoas que foram torturadas até a morte no DOI-Codi. “Tudo aquilo deveria ser demolido, não tombado. Assim, se tornaria um espaço que preservaria a memória, mas com olhos para o futuro”, conclui a vizinha.