Candido Malta Campos Filho

Pedaço da Vila: No livro Reinvente seu Bairro (editora 34), o senhor destaca a importância da participação dos moradores no planejamento urbano. Essa participação realmente acontece?

Candido Malta Campos Filho: Uma parcela da sociedade, especialmente da classe média, tem alguma voz para participar dessas políticas. Essa voz aparece porque é uma classe social que possui um alto nível cultural, o que lhe dá maior compreensão do processo histórico e mais condições de participar. Mas, de modo geral, as conquistas concretas ainda são pequenas e pontuais. Na Vila Mariana, por exemplo, foi graças às vozes dos moradores que conseguimos o tombamento do Instituto Biológico. Mas, a preservação do bairro, como solicitei no meu parecer, não foi aceita. Se nos organizarmos, a gente consegue pelo menos alguma coisa. Somente coletivamente é que teremos possibilidades de construir o bairro que queremos. Como sociedade civil, precisamos aprender a nos organizar.

Pedaço da Vila: O que dificulta a organização e a participação da sociedade civil?

Candido Malta Campos Filho: Nós recuperamos a nossa democracia há pouco tempo e ela ainda está em curso. A ditadura calou a voz de grande parte da população e nos prejudicou muito como sociedade. Agora estamos vivendo a contraposição dela, que é o desenvolvimento da nossa consciência democrática e cidadã. E isso é sempre um aprendizado. No momento estamos passando por um processo de depuração dessa democracia. Eu estou esperançoso de que isso nos ajude também a depurar os nossos representantes. 

Pedaço da Vila: Nessa atual crise do país, qual a importância de trabalhar a célula local?

Candido Malta Campos Filho: A compreensão de um processo mais geral de como o país se desenvolve, das instituições que ele cria e das questões envolvidas para o seu desenvolvimento é muito complexa para o cidadão comum. O Brasil insiste num modelo errado, que é o de eliminar o papel do estado e estimular descoordenadamente a iniciativa privada a tentar levantar o padrão de vida. E, o pior de tudo, sob o comando do capitalismo financeiro. O que está nos estrangulando? Os bancos. Os juros absurdos movem rios de dinheiro e todo ano os bancos batem recorde de lucro. E nós? Nós ficamos aqui, na miséria. Precisamos controlar o poder dos bancos. Quando eu trato da questão urbana, eu falo da especulação imobiliária articulada com o mercado financeiro. E hoje os bancos são os grandes financiadores do setor imobiliário e estão alinhados às incorporadoras. As grandes empreiteiras como essas que estão envolvidas na Lava Jato, a Odebrecht e a Camargo Corrêa, criaram braços incorporadores que atuam no setor imobiliário. Então, como se nota, o jogo é muito complexo para obtermos políticas urbanas progressistas e avançadas visando a sustentabilidade, o que enseja grandes mudanças no estilo de vida. Nesse cenário precisamos ser mais seletivos e reduzir o consumo. As condições técnicas-materiais que alcançamos nos permitem criar uma civilização melhor, porque libera o ser humano da necessidade do trabalho mais intenso e manual. Ocorre que a ignorância é muito grande no país, a nossa educação é muito ruim, o nosso ensino é péssimo e ele não conse-gue desenvolver nossa capacidade crítica. Dessa forma, eu não vejo melhor caminho senão desenvolver uma visão crítica a partir do local em que vivemos, para, somente depois, construir um olhar mais amplo. Hoje, valorizo muito esse trabalho local, de formiguinha, de vizinhança. E acredito muito nos Planos de Bairros como importante instrumento para resgatarmos nossa voz.

Pedaço da Vila: E como é possível identificar as demandas locais?

Candido Malta Campos Filho: Isso depende de cada bairro. No primeiro dia de aula, o bom professor faz o seguinte: ele sente o nível dos seus alunos para entender até onde eles já chegaram. Feito isso, ele deve partir do nível em que os alunos já estão. Os moradores pre-cisam fazer a mesma coisa em relação ao bairro: sentir as necessidades mais urgentes, saber até onde ele já chegou e então propor melhorias naquilo que pode ser melhorado. O fator principal é o diálogo entre os moradores. É por meio desse diálogo que irá nascer um bom Plano de Bairro para melhorar a qualidade ambiental para seus habitantes. Entre os principais problemas da Vila Mariana estão o adensamento e os congestionamentos das ruas. Quanto mais prédios, mais carros. Esse é um problema concreto no bairro. Há também uma carência de áreas verdes que precisa melhorar. Então, os moradores precisam fazer um levantamento dessas necessidades. A cidade precisa ter urgentemente um cálculo da sua capacidade de suporte para evitar novos adensamentos.

Pedaço da Vila: O que é e qual a importância desse cálculo de capacidade de suporte?

Candido Malta Campos Filho: Trata-se de um modelo matemático desenvolvido na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, na década de 70. Ele calcula a oferta e a demanda do transporte e os seus percursos: da casa para o trabalho, para o dentista, para a escola, para o lazer. Aqui, em São Paulo, o que nós temos é uma pesquisa chamada Origem e Destino do Transporte, da Secretaria de Transportes Metropolitanos, que é feita de dez em dez anos desde 1967. Este ano a pesquisa deveria ser realizada. Ela é essencial para a qualidade ambiental urbana. Essa pesquisa revela como nosso transporte está sendo planejado, mas a questão é: de que jeito ele está sendo feito? As nossas demandas estão muito acumuladas. Hoje a oferta já não dá conta, pois há um atraso histórico. Quando se conclui uma linha atrasada de ônibus ou de metrô, a demanda já é outra. Ou seja, estamos sempre correndo atrás do prejuízo. A falta de planejamento por parte do poder público deixa o processo nas mãos das incorporadoras. Quando eu fui secretário de planejamento da prefeitura durante a gestão do Olavo Setúbal (de 1975 a 1979), eu montei uma equipe técnica e fiz esse cálculo por meio de um convênio com o governo estadual. Mas, quando ele esbarrou em interesses, vieram as pressões e o estudo acabou sendo abandonado. Em 2008, eu fiz novamente o cálculo, a pedido do Geraldo Alckmin, mas, quando estava para ser publicado, veio uma imposição da prefeitura. O prefeito Gilberto Kassab anulou. Em 2002 conseguimos que o cálculo de suporte fosse inserido como exigência no Plano Diretor da prefeita Marta Suplicy. Mas agora, neste último Plano Diretor, do prefeito Fernando Haddad, essa exigência foi retirada, o que representou um grande retrocesso. Calcular as demandas de origens e destinos é fundamental para criarmos um sistema de transporte conectado à realidade e garantir a qualidade ambiental no espaço urbano. No site do AVAAZ.ORG, estou com uma petição para que esse cálculo seja aprovado como obrigatório nos planos diretores. Peço que assinem, por favor.

Pedaço da Vila: Entre os principais instrumentos de participação popular nas políticas urbanas o senhor destaca o Plano de Bairro. No caso da Vila Mariana, como esse Plano deve ser feito?

Candido Malta Campos Filho: A prefeitura regional da Vila Mariana congrega três distritos: Vila Mariana, Moema e Saúde. Cada um possui as suas demandas. Eu defendo que o Plano de Bairro seja feito por distrito, pois ele é uma boa unidade territorial nessa cidade gigantesca como é São Paulo. Cada distrito abriga em média 130 mil habitantes e mobilizá-los é a melhor maneira de se fazer um bom Plano. E uma boa maneira para mobilizar os moradores é por meio dos síndicos. O bairro ideal será definido pelos moradores e o Plano de Bairro é o melhor instrumento para que construam o bairro que desejam.

Pedaço da Vila: Para explicar o processo urbanização o senhor aborda os tecidos urbanos que formam a cidade. Como esses tecidos são estruturados?

Candido Malta Campos Filho: O tecido urbano é formado pelas ruas, pelas quadras que essas ruas formam, pelos prédios inseridos nessas quadras e, eventualmente, por áreas verdes. O tecido urbano da Vila Mariana, por exemplo, foi sendo alterado no correr dos anos. Inicialmente ele era formado por um sistema viário com traçados isolados. Cada loteamentotinha o seu traçado e, em geral, era em formato xadrez. Mas não era um xadrez perfeito, pois a localização das quadras dependia muito da tipografia da área. Antes desses loteamentos a cidade tinha as vias radiais que nasciam no centro histórico com destino às chácaras e às cidades vizinhas. Na Vila Mariana temos a estrada de Santos, que ligava ao litoral, e a estrada das Boiadas, que dava acesso ao Matadouro Municipal [ hoje Cinemateca Brasileira ]. Há, portanto, uma história tipográfica dos caminhos antigos que são ordenados pela formação do tecido urbano. A compreensão desses traçados é importante porque eles permanecem principais até hoje. Em função da tipografia, os loteamentos criaram descontinuidade entre uma área e outra. O tecido, sob o olhar abstrato, deveria ser continuo. Mas não houve planejamento por parte da prefeitura para conectar esses loteamentos.

Pedaço da Vila: E como isso impactou na urbanização da cidade de São Paulo?

Candido Malta Campos Filho: Na primeira etapa do processo de urbanização dessa tipologia predomina a construção de casas. Em seguida vem os casarios e, depois, já começam a aparecer os primeiros prédios no centro histórico. Em meados da década de 30 começa a saga dos prédios. Primeiro com a construção de prédios de quatro, cinco, seis andares. Depois, já com elevadores, e o edifício Martinelli é o grande exemplo, os prédios começaram a subir muito, muito, o quanto se viabilizassem economicamente. Ou seja, a construção não era limitada pela legislação, e sim pelo cálculo econômico. Primeiro teve a geração de prédios de quatro a seis andares, depois de doze a quinze, e agora estamos vivendo a geração maciça de vinte a trinta andares. E a geração de trinta a quarenta já está anunciada. Esses prédios estão inseridos num traçado de quadra que está parado no tempo desde o começo da urbanização. A densidade vai subindo, subindo, e é baseada apenas em carros. As famílias de maior renda, que moram em apartamentos, usam o carro. Com essa alta densidade e a valorização da área, há a chamada gentrificação. As pessoas de menor renda começam a ser expulsas do bairro pelas de maior renda. E cada geração de prédios tenta demolir as anteriores. Essa é a nossa lógica capitalista. Ao longo de sua história, a Vila Mariana se tornou um bairro central e, hoje, sofre com a densidade.

Pedaço da Vila: Como os carros afetam o estilo de vida dos moradores?

Candido Malta Campos Filho: Na década de 70, o professor Donald Appleyard, da Universidade de San Francisco, na Califórnia, fez um estudo para analisar como o volume de veículos nas ruas interfere na comunicação entre as pessoas das duas calçadas. Esse estudo mostrou que o aumento do tráfego faz diminuir a interlocução entre as pessoas. A passagem de até 200 veículos por hora na rua tem pouca influência nas relações dos pedestres. De 200 a 500 veículos, há uma piora significada na comunicação. A partir de 500 carros as calçadas já ficam isoladas e não há comunicação. O uso da rua como espaço coletivo de convivência urbana, portanto, fica na dependência dos carros. Nos Planos de Bairros, eu defendo que cada bairro expresse qual é o nível de trânsito e de silêncio que deseja ter em suas ruas. Isso precisa ser respeitado.

Pedaço da Vila: A Vila Mariana abriga muitos patrimônios arquitetônicos. O tombamento é um dos caminhos para a preservação do bairro?

Candido Malta Campos Filho: Sim. Nesse sentido, uma ótima maneira de garantir a preservação do bairro é aplicar o raio de 300 metros de proteção no entorno de cada bem tombado. É preciso sempre estudar essas áreas envoltórias, seja do ponto de vista ambiental, seja do ponto de vista da preservação da memória material ou imaterial. A comunidade precisa apresentar esse estudo ao Condephaat, aliás, como foi feito no caso do tombamento do Instituto Biológico. Com um levantamento mais encorpado fica mais fácil provar a importância do tombamento. O Condephaat é um colegiado que pode aceitar ou não o pedido. Mas ele precisa ser feito. A outra forma seria partir para uma coisa radical, e mais difícil, que é fazer um Plano de Bairro que envolva estudos técnicos de gabaritos para mudar a Lei de Zoneamento. Esse é um dos pontos que eu também defendo, que o Plano de Bairro seja um instrumento de revisão da Lei de Zoneamento. A iniciativa, nesse caso, não é exclusiva do poder executivo; pelo contrário, é da câmara municipal. É dela a prerrogativa institucional do Plano de Bairro. Então, se o Plano de Bairro for apresentado primeiro na câmara e ela endossar a causa, a prefeitura não tem muito o que falar. Pode vetar, mas caberá a câmara derrubar ou não o veto.

Pedaço da Vila: O que é um bairro ideal para o senhor? 

Candido Malta Campos Filho: A resposta depende muito da cultura que se vive nele. Aqui em São Paulo há uma mescla de culturas e muitos bairros em que ela se concentra, como a Liberdade, oriental, e a Mooca e o Bixiga, que são redutos de italianos. O ideal de cada região será definido pelos habitantes. E a participação no Plano de Bairro é o melhor caminho para identificá-lo com respeito à cada história.