Ailton Krenak

Na linha de frente do movimento indígena da década de 1980, responsável pela garantia dos diretos básicos na Constituição Federal de 1988, Ailton Krenak esteve no bairro para participar do Sempre Um Papo, no Sesc Vila Mariana, e lançar o livro que reúne dezenas de entrevistas que concedeu para diferentes jornalistas entre 1984 e 2013. A seguir, ele conta sobre os massacres  e a união das tribos brasileiras na época da constituinte, o papel político que  tiveram para assegurar seus direitos, faz uma reflexão sobre o distanciamento do ser humano da natureza e afirma que a cultura do homem branco fez dele uma mercadoria

Pedaço da Vila: Quem são os Krenak?

Ailton Krenak: Somos descendentes dos antigos botocudos, que habitaram um território que vai da Serra dos Espinhaço, em Minas, até a região de Rio Doce e o litoral do Espírito Santo. Vivemos em uma reserva indígena no Médio Rio Doce. No século 19 e início do século 20, estimava-se que os Krenak eram 5 mil pessoas, sobreviventes de uma guerra provocada por Dom João VI para colonizar a região do Rio Doce, que pertencia aos nossos antepassados. Foi nessa região que se estabeleceu a siderurgia, local apelidado pelos brancos de Vale do Aço. Na primeira década do século passado, essas famílias foram reduzidas a vários grupos em diferentes regiões do Rio Doce. No interior de São Paulo, perto da cidade de Tupã, há uma reserva que se chama Vanuire e tem famílias indígenas Krenak, levadas para lá pelo serviço de proteção ao índio na década de 1950/60, numa tentativa de despejar esses índios do Rio Doce para o interior de São Paulo. Essas poucas famílias que foram levadas vivem junto com os Kaingang e Guaranis, e sobreviveram, constituíram famílias, prosperaram e continuam crescendo, apesar de terem experimentado o risco da quase extinção, pois foram reduzidas a umas 50 pessoas. Hoje a população dos Krenak está na casa de 600 pessoas espalhadas nessas duas regiões.

Pedaço da Vila: E esses dois grupos mantêm contato?

Ailton Krenak: Sim, estão em contato intenso. Os jovens dessas duas regiões se casam e as famílias cooperam, há intercâmbio entre as duas regiões, eles fazem atividades culturais juntos, inclusive no trabalho de restaurar a língua materna, o Borun, que é a fala dos Krenak. Somente os mais velhos, que tinham mais de 70 anos de idade na virada do século, eram os falantes naturais dessa língua. Os jovens repetem as falas dos mais velhos, mas não têm uma fala fluente. As escolas, uma em cada aldeia, têm feito um trabalho de recuperação e preservação da língua por meio da produção de textos, gravações de narrativas. 

Pedaço da Vila: Na juventude, você saiu de Minas e foi para o Paraná. Em que circunstância se deu essa mudança?

Ailton Krenak: Eu costumo falar ‘terceiro período do exílio’. Os índios eram despejados em algum lugar, uma realidade de gente que estava com seu território ocupado por fazendas e sem permissão de voltar. Muitos passaram décadas sem poder retornar às suas aldeias de origem. Houve dois despejos grandes do povo Krenak na década de 1960 e 70, com violência; muitos foram amarrados em cima de caminhões, transportados e despejados em locais distantes. E quando os índios reagiam, eram reprimidos violentamente, a tiros. Muita gente morreu, foi muito traumático. Isso coincide, inclusive, com o período militar brasileiro, quando a terra dos Krenak foi transformada num reformatório, numa espécie de colônia penal. Foi preciso lutar por mais de trinta anos para restabelecer o domínio sobre essa terra. Tivemos que brigar na justiça. O movimento indígena que passei a integrar na década de 1980 foi exatamente a força que fez com que essas terras voltassem a ser indígenas. Se não tivéssemos nos organizado nesse período, criando a União das Nações Indígenas e o Movimento Indígena, que culminou mais tarde com a nossa participação na Constituinte de 1988, já teríamos sido jogados na beira da estrada.

Pedaço da Vila: Ao longo dos anos, você se tornou em um dos principais ativistas na luta pelos direitos indígenas. Quando isso teve início?

Ailton Krenak: Percebemos desde cedo que havia indígenas espalhados pelo país e que sofriam as violências que nós sofríamos no Rio Doce. Então, comecei a procurar referências de onde os povos indígenas estavam e de que maneira estavam lutando contra essas injustiças. Os crimes eram muitos: um índio kaiowá foi assassinado por um fazendeiro no Mato Grosso do Sul em 1979; o índio Ângelo Cretan foi assassinado no Pará; a Liga das Nações Indígenas do Nordeste era escorraçada pelos usineiros; os Pataxós, no Sul da Bahia, tiveram a terra ocupada pelo cacau e foram criminalizados. Eu comecei a entrar em contato com essas tribos, o que despertou vivamente a minha consciência de que, assim como os outros setores da sociedade brasileira estavam reagindo à ditadura e às perdas dos direitos humanos, nós, os índios, também precisávamos nos organizar. 

Pedaço da Vila: E de que maneira ocorreu essa organização?

Ailton Krenak: Comecei a procurar os homens da minha geração, como Álvaro Tucano, do Amazonas; Paulo Bororo, do Mato Grosso; Ji Ajuri Karajá, de Goiás; os Guaranis, do litoral de São Paulo, para conversar, e percebi que a gente enfrentava problemas semelhantes. Desses encontros, começamos a articular um movimento indígena que se tornou, mais tarde, a União das Nações Indígenas. O que nos motivou foi o risco de os índios desaparecerem como cultura e povos diferenciados no contexto das lutas políticas, que estavam ocorrendo naquela época, principalmente com a perda de nossos territórios, pois, assim como os Krenak estavam sendo expulsos do Rio Doce, os Xavantes e os Guaranis também estavam perdendo as suas terras para condomínios, madeireiras, mineração, agronegócio. Só existe o agronegócio hoje porque primeiro ocorreu o roubo das terras indígenas. Ainda temos muito a avançar na conquista dos direitos fundamentais para que os seres humanos tenham condição de viver com segurança, para que possam produzir o alimento necessário para a base de sua felicidade. Aliás, o direito à felicidade é um princípio que está na Constituição brasileira e as pessoas esquecem… 

Pedaço da Vila: Você cresceu ouvindo e falando o português…

Ailton Krenak: Costumo dizer que sou autodidata, porque eu não fui alfabetizado em banco de escola, a minha alfabetização é contínua. A língua portuguesa não é brincadeira, e, além de você aprender essa língua, também precisa se virar para preservar a sua língua materna, em risco de extinção, que é o caso das línguas indígenas brasileiras hoje em dia. Mas eu cresci aprendendo e falando português, pois não estávamos vivendo num momento ideal, em que a cultura era livremente manifestada, pelo contrário. Ser índio e falar a língua indígena era proibido. As escolas ensinavam apenas o português, e os índios que se virassem para aprender, pois era proibido falar outra língua que não fosse o português. Havia uma pressão muito grande para a gente ir passando por um processo de embranquecimento, numa imitação da cultura americana. Foi a Constituição de 1988 que ofereceu a possibilidade da educação bilíngue aos índios. Quando o deputado Xavante Mário Juruna, em meados da década de 1980, quis fazer o discurso de posse na língua xavante, ele foi impedido pelo presidente da câmara. Esse é um caso típico de uma época marcada pelo obscurantismo da ditadura militar, que deixou a terra e a cultura arrasadas.

Pedaço da Vila: As conquistas asseguradas pela Constituição de 1988 se refletem na vida cotidiana dessas tribos?

Ailton Krenak: O Ulisses de Guimarães a chamou de Constituição Cidadã. Foi nesse amplo movimento que os índios também estiveram inseridos no artigo 231, com seus parágrafos que estabelecem a obrigação da União de demarcar as terras indígenas, respeitar a diversidade dessas culturas, assegurar a sua livre manifestação, inclusive em relação à língua e a possibilidade de que as novas gerações reproduzam culturalmente seus valores e suas tradições sem ter que se integrar a uma sociedade dominante, sem aquela ideia de que os índios, passo a passo, iam ser aculturados e se integrar à cultura brasileira. A Constituinte rompeu com essa ideia que já estava cristalizada. A todo o momento, porém, querem fazer emenda para retirar o que os índios conquistaram na luta, na década de 1980. A Constituinte não foi uma doação; ela foi uma conquista, muita gente lutou e morreu para garantir esses direitos. E não podemos assistir ao assalto a esses direitos como se fosse uma modernização da política brasileira. 

Pedaço da Vila: A transmissão dessa cultura e desses valores é algo que lhe preocupa?

Ailton Krenak: Se as novas gerações tiverem sabedoria para aprender com os mais velhos e se souberem usar essas novas tecnologias de informação, a cultura e a tradição sobreviverão. Eu mesmo ajudei a estruturar a Rede Povo das Florestas, que incluía levar tecnologia de informação para as comunidades indígenas que estavam em lugares remotos da Amazônia e em diferentes regiões do país, acreditando que o uso dela também é bom e que pode ajudar no registro, na recon-figuração desses textos e narrativas que nossos velhos ainda são capazes de transmitir, e passar isso na forma de filme, documentário, textos; hoje tem muita gente produzindo material assim. Eu acho que vamos sempre descobrir novas maneiras de transmitir aos nossos filhos os valores que consideramos fundamentais para nossa identidade. Hoje temos um número significativo de indígenas fazendo mestrado e até doutorado. Isso é muito importante, pois eles ajudarão a melhorar cada vez mais a nossa participação social na vida do país. 

Pedaço da Vila: Perto da natureza?

Ailton Krenak: O único jeito de os índios viverem é nesses locais onde a terra descansa, transpira e respira, dando-nos vida. Para isso, tem que ter uma cabeceira de nascente. Se você transforma os nossos córregos e rios em lugares de despejo de esgoto, o que você está devolvendo para a mãe terra? Você está dizendo que ama a terra jogando esgoto nela? Se for possível pensar em algo mais importante do que o território, é a possibilidade de continuar praticando seus ritos, suas culturas, suas tradições, que alimentam esses povos, pois não se renderam à mercadoria. O yanomami Davi Kopenawa costuma dizer: “o mundo do branco é o mundo da mercadoria.” Se pararmos para pensar, é isso mesmo que está virando o mundo. E aí eu pergunto: e os seres humanos?