Afonso Borges

Escritor, jornalista responsável pela coluna MondoLivro, na rádio CBN, e produtor cultural, é também o criador e mediador do projeto literário Sempre Um Papo, um dos mais respeitados projetos literários do país. Nesta entrevista, ele revela algumas histórias memoráveis desses encontros, que acontecem duas vezes por mês no Sesc Vila Mariana — e que traz ao pedaço os principais nomes da literatura contemporânea — , fala sobre a importância da família em sua formação como leitor, o papel transformador da leitura e explica as dificuldades para manter um projeto desse porte no Brasil 

Pedaço da Vila: Sua formação como leitor se deve às influências familiares, especialmente de sua mãe, poeta. O quanto esses incentivos foram importantes para você?

Afonso Borges: O talento da minha mãe foi se revelando aos poucos. Hoje é uma poeta rara, com mais de 80 anos. Sua influência se deu pela leveza com a qual nos colocou a leitura. Nada obrigatório, imposto. Tem, até hoje, a letra mais linda que já vi na vida. Sempre leu e me influenciou por sua permanência e educação.  

P. da Vila: Você é escritor, jornalista e produtor cultural. Em que momento cada um se encaixa em sua vida profissional hoje?

Afonso Borges: No início do Sempre Um Papo, tudo se misturou. A dificuldade para tocar o projeto, no início dos anos 80, quando nem existiam leis de incentivo, me obrigava a ser dez em um. A Varig dava a passagem, o convidado se hospedava lá em casa e eu conseguia permutas para o jantar. Hoje, cada assunto mora em seu lugar. O escritor fica dormindo, esperando seu lugar. O jornalista atua na CBN, no Mondolivro e o produtor cultural, cem por cento do tempo, ativo. Dá pra conciliar, no limite do impossível.  

P. da Vila: Em sua coluna Mondolivro, na rádio CBN, você aborda diferentes temas ligados ao mundo da literatura, uma espécie de crônica sobre a leitura. Como seleciona os assuntos que serão abordados?

Afonso Borges: O mais importante é que decidi não fazer crítica literária radiofônica. Como você disse bem, faço crônica literária. O arcabouço do livro engloba todos os assuntos da humanidade – da cerveja à maternidade, passando pela importância do produção de soja em Goiás. Tento fazer uma coluna para os que ouvem rádio, no carro. Não dá para aprofundar, nem fazer construções longas. Tudo curto, breve, sintético e, principalmente, para o ouvinte. Mas com um foco muito definido: leiam livros — só a leitura forma pessoas.  

P. da Vila: Há quase trinta anos você criou o projeto Sempre Um Papo. Como ele nasceu?

Afonso Borges: De uma brincadeira em um bar onde eu tocava violão, profissionalmente. Meu primeiro convidado, Oswaldo França Júnior, foi o mentor e grande inspirador. Depois, veio Frei Betto e batizou “Sempre Um Papo”. Foi uma brincadeira que virou negócio e se transformou na minha vida. E, para ser bom tem que divertir. E me diverte até hoje, horas depois de um ótimo bate-papo com o Cristovão Tezza, no Sesc Vila Mariana. Estou no hotel, à uma da manhã, respon-dendo a esta entrevista. E feliz, depois de mais de 5.000 eventos nas costas.  

P. da Vila: Além de criador do projeto, você também faz as mediações dos encontros. O que toma como referência para garantir um bom encontro?

Afonso Borges: A conversa. A boa conversa. Não adianta o cara escrever o melhor livro da face da terra. Isso não é referência para um bom encontro. Ele tem que sentir o público que está à sua frente e falar para ele. Cada debate é um, e diferente do outro. Já rodei o Brasil fazendo debates com o mesmo escritor. Em cada dia da semana, em uma cidade. Todos foram totalmente diferentes um do outro. A magia do encontro, 

do olho no olho, de outros ouvindo um nunca será superada por nenhuma tecnologia.  

P. da Vila: Qual é a fórmula para ser um bom mediador?

Afonso Borges: Serenidade, preparação e janela — depois de cinco mil eventos, é mais fácil. É igual à piadinha da grama do Palácio de Buckingham. Perguntaram  para o jardineiro como ele mantém aquela grama tão verde. Ele falou: água, muita água. E 200 anos de cuidado.  

P. da Vila: Ao longo dessa trajetória você conheceu e se tornou amigo dos principais auto-res brasileiros. Quais histórias lhe marcaram?

Afonso Borges: Nossa.. você tem espaço??? Mas uma delas é tragi-cômica: fiz o Sempre um Papo com o Chico Buarque e o Raduan Nassar, no Palácio das Artes. Na hora da leitura, o Raduan resolveu fazer gracinha e trocou a leitura escolhida do livro do Chico. Não deu sorte — o trecho escolhido era uma “cantada” cheia de sensualidade. Ele come-çou a rir, rir, descon-certado e, de repente, todos no Palácio, mais de 1.800 pessoas, tiveram um surto de riso. Foi difícil parar. E foi gravado por uma TV universitária. O Chico me ligou, pedindo a fita. Eu comecei a cobrar do pessoal que tinha gravado e eles não me davam resposta. E o Chico me ligando, até que eu comecei a ficar com vergonha e mandava dizer que não estava. Até que a menina que gravou me revelou a verdade: tinham perdido a gra-vação. Aí fiquei mais uma semana mandando dizer que não estava, até tomar coragem de dizer pro Chico a verdade. Ele ficou decepcionado, assim como todos. 

P. da Vila: Você já cogitou a possibilidade de reunir essas histórias em um livro?

Afonso Borges: Um dia. Desde que eu encontre o formato certo. Não quero fazer um anedotário.  

P. da Vila: O Sempre Um Papo se tornou um bom parâmetro para medir o interesse do público pela literatura e seus autores. Como você analisa esse cenário ao longo desses anos de projeto? O público está mais interessado? Há mudança de perfil do público para cada gênero literário ou autor?

Afonso Borges: O segredo do meu trabalho é a contemporaneidade. Procuro fazer o lançamento mais recente do autor. Só assim consigo tirar dele o seu melhor, naquele momento. Acima disso, a palavra chave: qualidade. Uma palavra subjetiva, mas livro e autor bom, não se discute. 

Com relação ao cenário, estamos vivendo uma virada de geração. Preste bem atenção – em cinco anos, tudo será diferente na literatura brasileira.  

P. da Vila: Quais são os principais desafios hoje para realizar o projeto?

Afonso Borges: O de sempre: patrocínio. Público, autor, imprensa e frequência são problemas menores.  

P. da Vila: O Brasil, hoje, está disposto a investir em projetos assim? 

Afonso Borges: Sim. Mas precisa de mais, muito mais. A leitura e a literatura têm que ocupar um espaço proporcional à sua importância na vida das pessoas. Todos têm que se conscientizar de que a realidade é simples: sem leitura, não há nada. O contrário da leitura é ignorância — isso devia bastar para que os parlamentares e administradores públicos movessem céus e terra para um cenário mais voltado para a educação.  

 P. da Vila: Quais são os critérios na escolha de um autor para participar do Sempre Um Papo?

Afonso Borges: A minha escolha pessoal. Demorei 28 anos para ter coragem de dizer isso.  

P. da Vila: Há projeto para ampliar o evento e conseguir trazer mais autores de outros estados brasileiros?

Afonso Borges: Este é um sonho. Procuro fazer, no limite das minhas possibilidades. Em  24 de junho, consegui: vou trazer Ismael Canepelle, de Porto Alegre, e Socorro Acioli, de Fortaleza. Queria poder fazer isso sempre. 

P. da Vila: De que maneira você entende que a leitura pode transformar uma pessoa? Há alguma história relacionada a isso que presenciou?

Afonso Borges: Dezenas. Uma, só: lançamento de livro do Bartolomeu Campos de Queirós, na Savassi. Me chegou uma senhora, com o marido e dois filhos. Disse que tinha ido ali só para me agradecer, coisa que deveria ter feito há anos. Ela esteve numa palestra do Zuenir Ventura, no lançamento de 1968, o Ano que não Terminou em 1988, no Palácio das Artes, em BH. Era professora primária, então. Depois daquele dia, decidiu mudar sua vida. Graduou-se em outra profissão, começou a dar aulas na UFMG, onde conheceu seu marido, e foi lá para me apresentar seu dois filhos. E agradecer. Só esse caso já valeram os 28 anos. 

P. da Vila: Nos encontros, você faz questão de tocar no assunto da leitura com os entrevistados, ressaltando suas trajetórias e formação. Isso demonstra que a ideia do projeto serve tanto para leigos no assunto quanto para quem seja mais especializado, não?

Afonso Borges: Sim. Mas eu tenho um foco: a formação de leitores. Não deixo que o autor aprofunde o tema a ponto de se tornar incompreensível. As suas histórias devem ser contadas para que as pessoas se sintam estimuladas a prosseguir lendo. O que está no pano de fundo de tudo isso é que a leitura é uma coisa chata. De fato, é. A leitura exige concentração, cuidado, atenção. Não dá pra ler vendo tv, digitando no celular, comendo, assoviando. Tem que prestar atenção. E atenção dedicada é um prato raro no mercado, hoje.  

P. da Vila: O Projeto Sempre Um Papo percorreu algumas cidades do país. Como foi a recepção dele e qual o sentimento que ficou desses encontros? Esse projeto itinerante continua?

Afonso Borges: Continua, sim, mas basicamente em cidades do interior de Minas. Tenho saudades do interior do Amazonas, de Belém, de Porto Velho, de Rio Branco. Deveria haver uma política furiosa de leitura dedicada aos centros mais distantes. FURIOSA.  

P daVila: Para você, qual é a maior lição tirada desse projeto e qual a maior recompensa em fazê-lo?

Afonso Borges: A maior lição é que não existe um dia igual ao outro. E que todo ano a gente começa de novo. Não tem espaço para vaidade, para papo furado. A maior recompensa é um simples muito obrigado, tímido, que as pessoas falam na saída dos eventos. É uma alegria sem tamanho.