Uma Vida na Vila Mariana (OU “A VIDA NUMA ALDEIA”)

Nas pequenas aldeias que o amor por alguém – ou a paixão por um bairro – formam mesmo no meio das maiores cidades, cinco ruas são os muros da vila em que nasci, cresci, me apaixonei, casei, tive filhos e vivo até hoje. Minha aldeia está contida pela avenida Conselheiro Rodrigues Alves e ruas José Antônio Coelho, Pelotas (e sua travessa, Santo Aleixo), Humberto I (e sua Travessa Humberto I). E, hoje, a Rua Bagé. Saí dessa minúscula aldeia apenas três vezes: quando a família se mudou para a Cidade Vargas, no Jabaquara; quando casei (com um namorado que, por acaso, morava na Rua Áurea, 75…) e fomos para uma casinha de boneca no Centro, na rua Dr. Vila Nova, perto do Teatro de Arena, onde ele trabalhava, e da USP, onde eu estudava – e, depois, quando fomos morar na Europa por algum tempo. Na Lisboa onde nasceu o meu filho mais velho, Flávio Eduardo Guarnieri

RUA JOSÉ ANTÔNIO COELHO, 3 casas e uma escola

Nasci na Rodrigues Alves, antigo 95. Não sei onde ficava nem se ainda existe – as fotos são poucas, e me mostram bebê recém-nascido (um bebê muito feio!) no colo de minha mãe, pai e tias, perto de um muro de tijolos aparentes. Onde terão ido parar esses tijolos e a gaiola do canarinho Hansi, presa a ele? De lá, ao que me contaram, mudamos logo para a rua José Antônio Coelho, lá embaixo, no 700 e tanto, quase pegado a um armazém que virou lojinha de conveniência (ainda está lá, na esquina). É no jardim dessa casa que o nenê já aparece mais bonitinho, “aos 9 meses e meio” – portanto, em abril de 1937, como está escrito sob a foto na letra do meu pai, no álbum que ele fez para mim – e no colo da mãe mais linda do mundo. Vejam que sorriso, que charme, que chique… e que moda linda! O carro parado do outro lado da rua, é um …o quê? Não sei, um fordeco, um chevrolezinho… tão engraçado!

Na José Antônio Coelho passou-se uma parte grande da minha vida: quando meu pessoal foi para o Jabaquara, fiquei, por causa da escola (eu devia ter uns 8 ou 9 anos), na casa de duas tias e primos que eu adorava, no 386. A casa está lá, quase igual. Meus avós moravam no 693, onde hoje tem um prédio (em todo lugar as casas cederam o espaço aos prédios), uma casa simples mas com um quintal que ia até a rua Pelotas, e que foi meu grande palco de brincadeiras. No fundo desse quintal, cheio de árvores, morangos silvestres e pássaros, fui Alice, Robin Hood, a Wendy de Peter Pan, caçadora de tesouros e exploradora de florestas. Acho que comecei a “escrever histórias” no quintal da Vovó Ana e do Vovô Eurico, pais do meu pai, onde brinquei sozinha até quase os 6 anos de idade.

A ESCOLA – Colégio Benjamin Constant

Há no alto da rua José Antônio Coelho, com a entrada principal dando para a Eça de Queiróz, o prédio que mais influenciou a minha vida e a minha formação: a Escola Alemã Vila Mariana, depois Colégio Benjamin Constant, onde estudei dos 4 aos 17 anos e de onde saí direto para a Escola de Jornalismo Casper Líbero e, depois, para a USP. Mamãe já havia estudado lá, minhas primas também… e foi lá que descobri o que queria, dancei nos meus primeiros bailes, representei no palquinho do salão de festas, e me transformei numa moça que – como a vida mostrou – já sabia o que queria e como queria viver. E descobri que adorava escrever e representar!

RUA PELOTAS

Fiz 6 anos já numa casa nova, na Pelotas 13, esquina com Humberto I, onde hoje há um bar. É só olhar lá para dentro, até o fundo, e juro que vejo a cozinha e as salas onde festejamos os meus 6 anos de idade e o nascimento da minha irmã Laura – também ela uma moradora fiel da Vila Mariana. Hoje, casada há décadas e mãe de quatro filhos lindos, todos adultos (Daniel Frederico, o mais novo, também está nas páginas deste Pedaço) mora no prédio da Morgado Matheus construído onde ficava uma casa dos meus pais, casa onde já não morei. Na foto antiga, no terraço aberto do 1.º andar da casa da Pelotas (hoje fechado por um vitral), a menina de fitinhas no cabelo e saia de uniforme cor-de-vinho sou eu… acredito que em 1944 ou 45, por aí…

TRAVESSA HUMBERTO I, 85

Quando voltamos da Cidade Vargas eu já uma adolescente de 16 anos, e Papai comprou uma casa muito gostosa na Travessa Humberto I, 85 – bem diferente hoje, mas ainda perfeitamente reconhecível (mudou o número, 87 talvez) – de onde eu ia para a faculdade, onde ganhei um quarto só para mim, onde lia, estudava e ouvia música, via tevê (a nossa primeira!), namorava no terraço sonhando com o Príncipe Encantado – e onde com ele me casei, em 19 de maio de 1958. Com uma festinha gostosa, para a família e os amigos do Teatro de Arena, onde meu marido, Gianfrancesco Guarnieri, havia estreado a sua primeira peça, “Eles Não Usam Black-Tie”. Na foto da festa de casamento, no terraço, quase todo o elenco da peça: Lélia Abramo, Miriam Mehler, Riva Nimitz, Oduvaldo Vianna, Flávio Migliaccio, Milton Gonçalves, o diretor José Renato… no meio, os jovens noivos, e a irmãzinha caçula, Maria Luiza. Muitos já se foram, mas com alguns ainda falo e me encontro.

FINALMENTE, RUA SANTO ALEIXO

Na volta da Europa, no início de 1960, procurando uma casa na Vila, encontramos a mais linda de todas. De propriedade de dona Aracy, viúva do escritor João Guimarães Rosa, nos apaixonamos imediatamente por ela.

Na rua Santo Aleixo, 112 (hoje, vá lá saber por quê, Augusto de Freitas, 122), aquela casinha de Branca de Neve, com seu jardim (que encheríamos de árvores), seus três quartos (que abrigariam o filhote portuguesinho, e, 1 ano e meio depois, o irmãozinho paulistano, de nome Paulo), e a grande sala que encheríamos de livros, música e amigos. Nessa casa vivi 28 inesquecíveis anos, de 1960 a 1988. Saí de lá triste, cheia de uma saudade que nada aplaca. Ainda é a casa dos meus sonhos.

Frase que repito para Regina, sua atual dona, e para os meus filhos e netos: Um dia ainda volto para lá! Apesar dos prédios imensos que agora a cercam e da feiura geral da rua, que virou passagem de carros para a Pelotas, ali ainda tenho amigos – Vânia e Cid, Mercedes (a mãe do Zé Eduardo, companheiro inseparável dos meus filhos), Maria Alzira, dona Laura – e tantas, tantas memórias!

A amoreira do jardim, plantada por nós, que deu tanta alegria, tanta brincadeira, tanto canto de pássaros e tanta geléia, a pitangueira e as duas goiabeiras, além disso guardam entre as raízes os cordões umbilicais dos meus filhos e do neto mais velho, Francisco. A amoreira morreu quando me mudei (acho que de cupim, mas a Regina diz que “foi de saudade”…), mas casa, jardim, quintal e edícula lá estão, à minha espera (ou das minhas cinzas – perdão, Regina, mas elas vão acabar adubando as suas plantas!).

A Casa, como a chamo (com “C” maiúsculo) assistiu a tanta coisa: o nascimento do Paulinho, o crescimento dos meninos, as brincadeiras por ruas então tranqüilas (passava um carro por semana), correrias na chuva, barquinhos na enxurrada, futebol, teatrinho, festas de aniversário, minha separação do pai das crianças, minhas mudanças de emprego, a primeira moto do Paulo, a segunda, o meu primeiro Fusca, amarelo, o segundo (o branco, na foto), o Chevette cor-de-vinho, depois uma série de Fiats…a partida de Paulo para o Rio de Janeiro, com a “fama” no cinema e na TV Globo – 20 anos de novelas! …e a luta contra a repressão, a recusa frontal e radical da “lei dos militares”, com suas reuniões, perigos e refugiados. Também festas (tantas festas!) e canções – de Carlos Lyra, Vinícius de Moraes, Edu Lobo, Gil, Caetano, Bethânia, Gal Costa, o Quarteto em Cy e o MPB-4… – gente de teatro, de cinema, de política, e do mais absoluto nada, também. Pessoas engraçadas, corajosas, inteligentes, pessoas com que compartilhávamos convicções, ideais e folia.

Coincidentemente, em 1988 o Brasil recuperava a sua liberdade e ganhava a sua nova Constituição. E fomos embora… Missão cumprida!

Moro há 16 anos no condomínio da Bagé 230, e onde mora a editora de nosso jornal. O apartamento fica no 15.º andar, com uma vista belíssima do Parque Ibirapuera, árvores, lagos, lindos pôres-de-sol. Para minha completa felicidade, meus filhos moram bem perto: um, o Flavinho, com a esposa Carla, duas quadras à direita. O outro, o Paulinho, com a Hérika e meu querido neto Lucas, duas quadras à esquerda. Dois netos – Francisco, 24 anos, e Carolina, 18, moram mais longe, mas também perto. Nessa minha aldeia cabe uma vida inteira.