Triste Coincidência

Há meio século, as ruínas da antiga fábrica de Ceras Record, localizada num terreno de 9 mil metros, intrigam os moradores que passam pela av. Cons. Rodrigues Alves. O jornal Pedaço da Vila foi resgatar sua história e surpreendeu-se com a apressada demolição da construção

Velhas bananeiras despontam por trás do enorme e mal cuidado muro, que serve de apoio a seis outdoors, única utilização aparente do imenso terreno vazio em plena área nobre da Vila Mariana – av. Conselheiro Rodrigues Alves, próximo ao número 500. As ruínas da antiga fábrica da Cera Record (marca de ponta nos anos 40/50), que inspiraram muitas idéias boas para ocupar aquele terreno ocioso, são parte de uma história bem guardada pela família Mofarrej, dona atual do lugar. Isso, depois da Família Basile, fabricante da cera, ter loteado as áreas contíguas a esses terrenos e desativado a fábrica, no início dos anos 60. Pode ser coincidência (!), mas alguns dias depois de nova tentativa de entrevistar os proprietários do local, para fazer esta matéria, a memória da época fabril na Vila Mariana começou a ser derrubada.

Quem ainda não reparou, vale a pena dar uma olhada. Além da conhecida avenida, a área de cerca de 9.000 m2 (!!) engloba dois terrenos e tem laterais com mais três ruas: Humberto I, Hildebrando T. Carvalho e Octávio de Moraes Dantas. É nesta última, no nº 88, que se localiza a grande casa branca, com piscina coberta e protegida, ligada por uma porta a uma bonita horta, escondida por novo muro, onde se destaca uma janelinha de madeira, quase sempre fechada. Na garagem da casa, além dos carros, há um grande cão fila, fazendo jus à grande placa que o anuncia em tom intimidatório. Residia nesta casa, até poucos dias atrás, um rapaz de 36 anos, chamado Mário, que viveu ali desde a infância, cercado de acompanhantes, educadores, psicólogos e curiosidade. Os vizinhos concordam, em vários pontos.

Todos sabem que o terreno é da família Mofarrej, dona, entre outros empreendimentos, de famosa rede de hotéis de luxo. Há consenso sobre o desperdício daquele imenso terreno e a feiúra que causa naquele pedaço bonito do bairro. A outra constatação, mais delicada, é o sentimento de solidariedade a Mário e de amizade das crianças que cresceram junto com ele na rua. O menino, segundo os vizinhos, com deficiência mental, muito inteligente e curioso, foi educado naquela casa, sabe falar cinco idiomas, lembra a data de aniversário das amigas da rua, entre outras coisas. E, dizem, cuida da horta como terapia. O herdeiro da família Mofarrej parece ter sido levado para a casa da mãe, entre os dias em que os operários destelhavam a velha construção. Ninguém soube informar o que acontecerá no terreno.

Um dos trabalhadores disse que levantariam um condomínio. Outro contou que demolirão as ruínas da fábrica, apenas. Informação semelhante à dos vizinhos. Numa cidade como São Paulo, tão necessitada de áreas verdes, parques, espaços para todo o tipo de atendimento ecológico e social, entre tantas outras coisas, é estranho ver área tão imensa ficar sub-utilizada por quase meio século. Vizinhos contam que já houve interessados, anos atrás, citam o Pão de Açúcar, falam em shopping, muita especulação e muito segredo. Tanto o Estatuto da Cidade (de 2001) como o Plano Diretor, recentemente aprovado em São Paulo, estabelecem funções sociais para a propriedade. De acordo com a legislação federal e municipal, os proprietários de terrenos não edificados ou sub-utilizados devem ser notificados a dar melhor aproveitamento aos imóveis, com sanções que podem chegar até à desapropriação. O imposto sobre a propriedade urbana progressivo pode ser aplicado de várias maneiras: em função do valor do imóvel, do seu uso, da sua localização, da eventual ociosidade ou sub-utilização.

E o “direito de preempção” dá prioridade ao município na aquisição dessas áreas se postas à venda, áreas de que ele tem necessidade para implantar, escolas, creches, equipamentos públicos, bem como abrir novas vias. Entretanto, como ninguém citou essa área no Plano Diretor Regional da Vila Mariana, não houve a notificação, não existe o questionamento Talvez, se o Mário pudesse decidir, fosse nobre o destino da área onde viveu sua adolescência e juventude e onde cultiva sua horta – as verduras cultivadas eram vendidas pela janela no muro, por um empregado, em pequeno período do dia. Talvez, aquelas ruínas fossem preservadas, restauradas e transformadas em espaços para a comunidade, mas o arame farpado dos muros não nos deixa ver. Apenas vemos as velhas árvores e resta-nos acompanhar a mudança dos “outdoors” e a demolição de uma parte da memória da Vila Mariana, que continuaremos a resgatar.