Na Carne
Aqui ao lado, na Rua Tutoia, n.º 921, instalou-se, em 1970, o porão dos porões da ditadura, comandado por um dos mais temidos órgãos repressores criados pelos militares: o Destacamento de Operações de Informações (DOI), subordinado ao Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), criado para prender, torturar e matar aqueles que se manifestassem contrários ao regime imposto.
O poder do Doi-Codi não tinha limites: a ditadura armava emboscadas, torturava e assassinava opositores, ainda que apenas por delito de opinião. Os presos eram recebidos com a frase “aqui é a sucursal do inferno”. Lá, os últimos a morrer foram o operário Manoel Fiel Filho e o jornalista Vladimir Herzog.
Com o término do período ditatorial, em 1985, o centro deixou abertas as feridas de uma página da história política brasileira, ainda manchada, mas que começa a ser reescrita pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva.
A comissão realizou, em 29 de novembro, na Assembleia Legislativa, audiência pública para pedir o tombamento do prédio onde hoje funciona o 36.º DP. “O que move o tombamento não se relaciona à arquitetura do lugar, já alterada e comprometida, mas à memória que o espaço representa”, explica o presidente da Comissão, deputado estadual Adriano Diogo (PT). “Já existe um processo pedindo o tombamento em tramitação no Conselho de Defesa do Patrimônio Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat)”, destaca.
O presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e ex-preso político, Ivan Seixas, foi quem propôs o tombamento. “Queremos que o lugar seja transformado em um museu da memória da ditadura, assim como tantos outros, como o Memorial da Resistência (antigo Dops) e o Museo de La Memoria, na Argentina, ex-Escola Superior de Mecânica Armada (Esma), onde funcionou de 1976 a 1983 um centro clandestino de repressão”, informa Ivan, que teve o pai morto no Doi-Codi, em 1971.
O pedido de tombamento tem o apoio de entidades como o Conselho de Defesa da Pessoa Humana, Núcleo de Preservação da Memória Política, Grupo Memória e Verdade, Ministério Público Federal, Fórum dos ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado e do Grupo Tortura Nunca Mais. O processo, em análise no Condephaat, tem o prazo de seis meses para ser concluído. “Durante esse período, o processo caminhou em sigilo para que não houvesse alteração na arquitetura do espaço”, explica Ivan.
Se tombado, o local será um memorial de luta contra a ditadura. “É a sociedade brasileira condenando a tortura em todas as suas formas, não somente as que ocorreram no período da ditadura militar; e em breve teremos um parecer” adianta Ivan.
“Estamos convocando pessoas que passaram pelo Doi-Codi para fazer uma reunião, em janeiro, a fim de desenhar o espaço e mostrar o que funcionava em cada um dos cinco prédios”, adianta Débora Neves, historiadora do Condephaat e responsável pelo caso.
A principal referência para o tombamento é o Museu da Resistência, antigo Dops, que recebe em torno de 5 mil visitantes ao mês, na maioria jovens. “Hoje é o sexto espaço mais visitado dos 48 museus da cidade”, diz Maurice Politi, membro do Núcleo de Preservação da Memória Política.Sandra Kishi, procuradora regional da República, também destaca o tombamento como um avanço na prática da justiça. “Trata-se de um lugar que resguarda cicatrizes dolorosas da violência da ditadura, o tombamento será um meio de reparar as injustiças históricas.”
Amargas memórias
Preisioneiro do Doi-codi, Ivan descreve: “O espaço abrigava cinco prédios, por onde passaram dezenas de presos que sofreram torturas, muitos deles até a morte. Da Rua Cel. Paulino Carlos era possível ouvir seus gritos, pois não havia isolamento acústico, apenas uma janela de vidro que separava a cela da rua”.
O médico Reinaldo Morano relata que presenciou a entrada de José Maria Ferreira de Araújo, codinome Arariboia, torturado e morto no mesmo dia. “Ele foi levado para a sala de tortura, e da minha cela eu ouvia seus gritos, que em menos de uma hora cessaram. Em seguida, um carcereiro avisou que ele havia morrido.”
Preso em 1972, ainda estudante de Medicina, o vereador Gilberto Natalini (PV) permaneceu quase quatro meses nas celas do centro de repressão. “Assim que cheguei fui interrogado diretamente pelo Cel. do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Doi-Codi de 1970 a 1974. Fui severamente torturado e achava que seria morto.”
Artur Scavone, estudante de física na USP, passou nove meses no Doi-Codi, preso em uma emboscada em 1972. ”Fui recebido com socos no rosto e interrogado com choques na cabeça; fiquei tão mal que tive de ser levado para o hospital”, conta.
Scavone recorda detalhes: “A tortura era constante, de dia ou noite, com choques, palmatória, pau de arara, mas, sobretudo emocional. O barulho das chaves era aterrorizante, pois sabíamos que os carcereiros se aproximavam e levariam algum de nós para a tortura”, revive.
Olhares sobre o tombamento
– Acho importantíssima a criação desse memorial para que aquele horror não se repita – Juca de Oliveira, ator
– Sou a favor. Para mim, foi um horror ter de entrar lá duas vezes, quando roubaram meu carro. Até hoje me sinto mal quando passo perto. – Cecilia Thompson, jornalista
– Sim, sou a favor do tombamento. – Cecília Thumin Boal, dramaturga e diretora, viúva de Augusto Boal
– Sou a favor do tombamento; é um lugar que resguarda energias muito fortes das pessoas que lá foram mortas. O sofrimento nesse lugar foi tão grande, tão pesado, que as paredes devem estar carregadas de energia negativa, provenientes do sofrimento, do horror, da dor, de pedidos inúteis de socorro e do sentimento horrível que deve ser a aproximação da morte. Por isso, nem pretendo visitar o prédio do Doi-Codi. – Regina Helena de Paiva Ramos, jornalista
– Sou a favor do tombamento das instalações do Doi-Codi – de tristíssima memória – desde que seja mais no estilo do que foi feito em Buenos Aires na antiga ESMA, e não no espaço pasteurizado que transformou as antigas instalações do Dops em anexo da pinacoteca do Estado.- Sérgio Muniz, cineasta
– Sou a favor do tombamento, sim. Especialmente se ele for tornado um museu ativo sobre o que aconteceu durante a ditadura. Ou seja, em um museu que pesquise o período e atraia as escolas, informando alunos e professores. Nós estivemos presos lá sem ser torturados, mas vimos os torturados em nossas celas. Anistia política não é esquecimento político.- Ottaviano e Elizabeth de Fiore, sociólogos
– Somos a favor do tombamento e uso cultural do espaço, desde que nos moldes sugeridos por Ottaviano e Elizabeth.- Fátima e Fernando Pacheco Jordão, sociólogos
– Trata-se de um período tristemente importante da nossa História e da nossa história pessoal. Somo totalmente a favor do tombamento e da preservação da nossa memória.- Ercilio e Nilce Tranjan, publicitários
– O Doi-Codi deveria ser derrubado, não tombado. A idéia é muito difícil para quem esteve lá dentro por meses. – Ana Maria de Cerqueira Leite, jornalista