Música dos Anjos

 Numa tarde de dezembro de 2006, a oportunidade de passara tarde com o maestro Sílvio Baccarelli, (1931-2019)

Uma pequena atitude pode salvar uma alma ou milhares delas. O maestro Sílvio Baccarelli, 76 anos, presença ativa na vida musical de São Paulo nas últimas quatro décadas, há 10 anos vem mudando a perspectiva e resgatando a dignidade de milhares de crianças e adolescentes em vulnerabilidade social. Tudo começou no ano de 1996, quando diante da TV, ficou penalizado ao assistir o incêndio na favela de Heliópolis – próxima ao bairro do Ipiranga: “Fiquei agoniado vendo as condições de vida daquelas crianças”, recorda.

Neste momento veio a inspiração: na mesma semana foi à favela decidido a ensinar música às crianças. Como não sabia por onde começar, resolveu bater na porta de uma escola pública: “Quando disse à diretora meu propósito, ela respondeu que não tinha dinheiro para me pagar! E falei: não, eu quero fazer de graça!”. A diretora ficou surpreendida e prometeu ligar para o maestro na semana seguinte: “Ela não ligou e quatro semanas depois voltei à escola. Quando a diretora viu o maestro falou: “De novo aqui! Como o senhor é teimoso!”.

E foi assim, meio que forçada pela persistência de um senhor teimoso que a diretora da escola Gonzaguinha selecionou um grupo de 36 crianças, de 10 a 15 anos, para iniciar o ensino de instrumentos e orquestra: “Aluguei um ônibus e trouxe as crianças para a Vila Mariana” – é aqui na rua dos Otonis com a Estado de Israel que o maestro tem sua Maison e Auditório – “Elas nem imaginavam o motivo do passeio e quando mostrei um violino, nem sabiam o que era…” O projeto não engrenou logo nos primeiros anos: “Fiquei quatro anos aqui na Vila Mariana, mas percebi que o casal de músicos que eu havia contratado para dar aulas às crianças era um fracasso!”, conta Baccarelli, que inicialmente assumiu o projeto com recursos próprios.

Com um novo professor, o maestro resolveu procurar uma casa mais próxima à Heliópolis: “Foi quando descobri uma antiga fábrica de suco no bairro de Sacomã”. Nesta mesma ocasião, profissionais ligados ao maestro decidiram inscrever o projeto na Lei Nacional de Incentivo à Cultura / Lei Rouanet. Então foi possível buscar patrocinadores para ampliar a atividade. Baccarelli relembra da primeira apresentação: “Comprei tudo, os garotos não tinham roupas, sapatos…. Fiz questão de convidar os pais e os professores para ver o que ia acontecer. Foi a primeira transformação interna”. Novos alunos foram surgindo: “Trabalhamos atualmente 5 escolas e a cada ano aquela sementinha se multiplica. A música é o ensino da civilidade”, ressalta. Micaela é exemplo disso.

Há três anos aprende música e escolheu a flauta: “Antigamente minha mãe reclamava que eu não saía da rua e hoje em vez de rua, canto no coral!”, diz a aluna de 12 anos. Novecentas crianças e adolescentes, de 7 a 25 anos, participam atualmente de vários projetos gerenciados pelo Instituto Baccarelli: a Sinfônica Heliópolis (prática orquestral), a Orquestra do Amanhã (iniciação e aprimoramento em estudos de instrumentos); o Coral da Gente (iniciação e aperfeiçoamento em canto coral e técnicas de expressão cênica); e o projeto Encantar na Escola (iniciação em canto coral aplicado em escolas da rede pública). Os alunos se apresentam nos mais importantes equipamentos públicos da cidade – o Coral da Gente inaugurou recentemente a árvore de Natal do Parque Ibirapuera.

Em plena expansão, a instituição está construindo no Largo São João Clímaco, uma sede de 5000 m2 e que será uma das maiores escolas de música da América Latina, com capacidade para três mil alunos. A qualidade musical dos alunos surpreendeu um dos maiores regentes do mundo, o maestro Zubin Mehta que visitou o Instituto em 2005. Ao assistir a Sinfônica Heliópolis, conduzida pelo maestro Roberto Tibiriçá – diretor artístico do Instituto -, tirou o paletó e resolveu assumir a regência do grupo. O jovem Adriano Costa Chaves, 19 anos – que começou a estudar música aos 15 – chamou a atenção de Mehta. Emocionado ao vê-lo executar uma parte do Concerto para Contrabaixo de Domenico Dragonetti, ofereceu ao aluno uma bolsa de estudos na Academia da Orquestra Filarmônica de Israel.

No dia do seu embarque, Adriano sussurrou no ouvido do maestro Baccarelli: “Deus haverá de recompensar o senhor”. Conhecer o Instituto Baccarelli é emocionante. Em uma sala espaçosa crianças de até 9 anos cantam em inglês, francês e italiano acompanhadas de um pianista. Durante o percurso, Sílvio Baccarelli é parado inúmeras vezes para receber abraços e beijos. “O segredo é o trabalho fundamentado no amor”, diz. O maestro até hoje se emociona ao ver o desenvolvimento dos alunos, seja ao passar pelos estúdios, onde estudam compenetrados ao lado do professor, seja durante apresentações, como a do dia 27 de novembro, ao ver o Quarteto de Cordas na Série de Concertos ao Meio-Dia do Mosteiro de São Bento: “Uma coisa eu tenho certeza, as crianças que passaram por aqui nunca serão bandidas.” Esse é o verdadeiro milagre!

Dezembro/2006

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