Mãos Unidas para o Futuro

Longe dos olhos da maioria dos moradores classe AB aqui do pedaço, as condições e estilo de vida na mini-favela da rua Dr. Mário Cardim remetem ao mesmo cenário das zonas periféricas da cidade. Mais de 400 famílias, num total de 2.000 pessoas (90% de migrantes nordestinos), vivem apinhadas em 200 casas, todas já de alvenaria. Apenas oito vielas estreitas dão a dimensão do quintal e passagem da comunidade, que sofre das mesmas carências que todo bolsão de exclusão. O desemprego é a principal delas.

De todos com idade hábil para o trabalho, 20% estão literalmente desempregados, 30% integram a PEA – População Economicamente Ativa, e o restante atua na informalidade e depende do famoso bico. É o caso do José Bezerra Araújo, o Zeca, que – desde 89, diariamente das 10h às 20h – ganha a vida numa das vendinhas e bares internos que abastecem os moradores. Após o expediente, para reforçar mais o bolso, ele vara a madrugada trabalhando de manobrista numa danceteria. “Tem que se desdobrar e correr atrás para sustentar a família”, confirma. A distância é o principal empecilho ao acesso adequado aos serviços públicos.

Os postos médicos e colégios infantis mais próximos requerem a travessia da rua Sena Madureira e uma caminhada de cinco a seis quadras adiante. As mães que trabalham perdem muito tempo para buscar e levar seus filhos, salvo as que, com seus parcos recursos, pagam transporte. Apesar de a Subprefeitura ter estabelecido um convênio escolar na imediação, a demanda de vagas não é suprida, porque o contingente de crianças até 8 anos é alto e compõe 20% da população da favela. A origem de toda essa circunstância caótica ocorreu há quase 40 anos, quando ali se formaram os 12 primeiros barracos de madeira, sobre área com esgoto a céu aberto. Naquela época, o local era uma fábrica que pegou fogo, foi desativada e – por dívidas com o poder público – passou a pertencer ao Instituto Nacional de Seguridade Social.

Na ocasião, o terreno ficou sem uso social e um grupo de sem-teto iniciou uma ocupação crescente, lenta e silenciosa. Até pouco tempo, ainda aconteciam muitas brigas e discussão entre moradores e governo quanto à reintegração de posse. A rua era constantemente fechada com lixo e entulho em forma de protesto. Atualmente, a situação está mais branda, pois todo o espaço foi incluso, ano passado, no Plano Diretor Regional do Município, como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS). Nada de caráter comercial pode ser implantado em detrimento da favela, que possui projeto incipiente de legalização e urbanização junto à Secretaria Municipal de Habitação. Sobre a possibilidade da construção de um conjunto habitacional no estilo Cingapura, a questão gera polêmicas e pode até dividir os moradores.

“Enquanto não houver proposta concreta, não queremos ainda tocar nesse assunto nem provocar conflitos aqui dentro. Pois, com a padronização do tamanho das moradias, a medida vai beneficiar os que residem em espaços menores, e outros, com edificações maiores, se sentirão prejudicados”, afirma o líder comunitário e presidente da Associação Mãos Unidas – AMU, Luciano Guedes (os esforços e parcerias da entidade para inclusão social da favela está no box da pág. 3). Às voltas da Comunidade Mário Cardim paira um clima residencial e de tranqüilidade, o que não maquia os focos de violência e tráfico de drogas existentes. “A presença desses problemas não é maior nem pior que no resto do país e são praticados por uma minoria com a qual estabelecemos uma convivência har- mônica”, declara Guedes. Já a relação com a Polícia é um tanto conturbada.

Segundo o ex-presidente da AMU Francisco de Assis, pai de dois dos poucos universitários da favela, a discriminação fica evidente: “Nossos jovens, estudantes de boa índole, passam constantemente por situações constrangedoras frente às outras pessoas do bairro. Sofrem batidas diárias e até maus- tratos. Também é comum a realização de cercos policiais impedindo a entrada e saída na favela”. Apesar da diferença social, os moradores da favela Mário Cardim sempre buscaram o bem-estar com a vizinhança. Lá, diferentes gerações se formaram e, como nós, utilizam-se dos mesmos serviços e áreas de lazer disponíveis nas redondezas. Num pedaço onde o metro quadrado está cada dia mais valorizado, somos vizinhos de quem convive com esta triste realidade: aqui, escondida pelos altos prédios de luxo.