Lasar Segall – O Pintor Humanista

Lasar Segall sublinhou as atrocidades da guerra e do sofrimento humano através da arte. Recebeu a admiração dos principais artistas e intelectuais do país e influenciou o Modernismo brasileiro. Na Vila Mariana, viveu e morreu na casa-ateliê onde, desde 1967, passou a ser o Museu Lasar Segall. Para comemorar o centenário da primeira exposição do artista no Brasil, o museu abre suas portas para apresentar, além das produções mais representativas,  o seu arquivo pessoal.

Nome central do Modernismo brasileiro e considerado um dos maiores artistas do século 20, Lasar Segall desembarcou no Brasil pela primeira vez no final de 1912, para uma permanência de oito meses. Luba Klabin, sua irmã mais velha, que já morava em São Paulo e com quem o artista mantinha estreita relação intelectual, foi quem patrocinou sua viagem e o hospedou na residência de dona Berta Klabin.

Foi ali que Lasar Segall conheceu uma importante figura da época, o influente senador José de Freitas Valle, mecenas das artes e anfitrião da Vila Kyrial, situada na Vila Mariana, na época à Rua Domingos de Morais, nº 300 — que reunia os principais artistas e intelectuais do período. Freitas Valle, impressionado diante do jovem artista e suas obras, decidiu realizar uma exposição de seus trabalhos, tida como a primeira exposição de arte moderna do país.

O lugar escolhido para abrigar a mostra foi um pequeno sobrado na Rua São Bento, no centro da cidade. Ocorrido no dia 1.o de março, o vernissage recebeu artistas, jornalistas, amantes da arte e os principais membros da família Klabin, no dia seguinte, a exposição foi aberta ao público, apresentando 52 obras, divididas entre pinturas a óleo e a pastel e desenhos originais, em trabalhos influenciados pelo Impressionismo alemão e pela pintura holandesa.

Embora fosse desconhecido, Segall foi bem acolhido pela crítica e pela classe artística, que viram em suas obras um artista promissor, em boa parte, graças às relações e influências de Freitas Valle, que apadrinhou a exposição do jovem de 22 anos, e da família Klabin. Em junho do mesmo ano, Segall expõe no “Centro de Ciências, Letras e Artes”, em Campinas, e pela primeira vez surge um artigo do crítico que melhor compreendeu suas obras, Abílio Álvaro Miller, publicado no jornal Comércio de Campinas. Nele, o crítico reconhece em Segall um artista talentoso: “O pintor de almas”.

Quando retornou a Dresden, Segall não tirou da cabeça as cores e as paisagens que encontrou no Brasil. Em seus novos trabalhos, atento ao impacto dos dramáticos anos de guerra, dedicou-se a pinturas relacionadas ao martírio judeu, reproduzindo o ambiente catastrófico de sua cidade natal. A triangulação ondulosa que marcava suas obras foi substituída por um estilo mais narrativo, com as formas suaves preenchidas pelo colorido que encontrou na paisagem brasileira.

Retrato do artista quando jovem

Nascido no dia 21 de julho de 1891 na pequena comunidade judaica de Vilna, capital de uma Lituânia mantida sob o domínio da Rússia czarista, Lasar Segall, um dos oito filhos de Abel Segall e Esther Ghodes Glaser Segall, executou desde cedo sua vocação artística. Pelo pai, escriba de textos sagrados, era o encarregado de desenhar as letras maiúsculas nos rolos da Torá, o que lhe permitiu esboçar os primeiros traços e grafismos.

Para aprimorar o talento, o artista, aos 15 anos, viajou para estudar na Alemanha sob o incentivo de Lev Antokolski [1842-1942], seu primeiro mestre na Academia de Desenho de Vilna. Em Berlim, frequentou a Escola de Artes Aplicadas e a Academia Imperial Belas-Artes. Ao mesmo tempo em que se submeteu à rigidez acadêmica da Academia de Belas-Artes, encantou-se com a pintura livre dos artistas Max Liebermann e Lovis Corinth.

Das impressões que levou da arte sem as amarras acadêmicas, o artista descreveria, mais tarde: “Já então eu sentia o que na arte é essencial: os artistas, munidos de todos os conhecimentos técnico-profissionais, devem empenhar seus esforços em compenetrar-se dos problemas da época, para em seguida dar-lhes forma artística adequada; eles devem participar da constituição de uma arte viva, isto é, de uma arte que costumamos chamar de moderna”.

Em busca de maior liberdade para criar, não demorou muito para que Segall aderisse a Freie Sezession, em 1909, aban-donando de vez a Academia, mesmo que o estilo Impressionista que marcava esses movimentos não o atraísse por muito mais tempo. A linguagem que encontrou foi o Expressionismo. Em Dresden, cenário artístico influenciado pelo Movimento A Ponte, primeiro agrupamento unificado do Expressionismo, e regido sob influência de Cézanne, Gauguin, Van Gogh e Munch, ocorreu o seu amadurecimento como artista.

Nesse período, suas pinturas já revelavam um artista disposto a retratar suas vivências pessoais, em obras marcadas pelas influências acadêmicas (como Viúva e Filho, 1909) e pelo Impressionismo (Figura do homem com violino, 1909). Desde então, seus desenhos revelaram-se mais simplificados, predomi-nando as cenas trágicas, a maioria delas extraídas de suas recor-dações de Vilna, e evidenciando suas preocupações humanitárias.

Em busca de novos aprendizados e experiências, Segall realizou algumas viagens e conheceu outros países; um deles marcaria sua vida e obra: o Brasil. Diante da exuberância de cores, paisagens e raças do País, e especialmente pelo caloroso acolhimento, ele confessaria mais tarde. “O Brasil revelou-me o milagre da luz e da cor.”

Brasil, uma nova pátria

Após dez anos de sua primeira visita ao Brasil, a pressão exercida pelas dificuldades financeiras de uma Europa pós-guerra trouxeram o artista novamente ao país. Acompanhado pela esposa Margarete Quack, em 1923, retornou disposto a fixar moradia; na bagagem, trouxe os últimos trabalhos produzidos na Alemanha.

Enquanto procurava uma casa para morar, o artista se hospedou por dois meses na residência de outro irmão que também vivia em São Paulo, Oscar Siegel, em um casarão na esquina da Rua Abílio Soares, no Paraíso. Mas os primeiros meses no país foram marcados por dificuldades: primeiro em decorrência da adaptação ao novo estilo de vida e, principalmente, pela escassez de dinheiro.

Tão logo passou a morar na região, não demorou a retornar à Vila Kyrial, naquele momento já conhecido e admirado pelos jovens modernistas que se reuniam nos eventos promovidos por Freitas Valle. Sua presença exerceu profunda influência no cenário artístico da cidade. Entre 1932 e 1935, realizou intensa atividade à frente da SPAM (Sociedade Pró-Arte Moderna), como um dos seus fundadores e principal animador, responsável por organizar bailes de Carnaval a fim de arrecadar fundos para as exposições de artistas nacionais e estrangeiros, o que possibilitou o intercâm-bio cultural entre artistas e admiradores da arte: um processo que culminaria com o nascimento do Museu de Arte de Moderna (MAM).

Em meio a um clima de apreensão devido a prováveis golpes políticos, o artista e a esposa vão morar na casa de dona Berta Klabin, em uma chácara na Vila Mariana, reaproximando Segall da jovem Jenny Klabin, uma das filhas de Berta. No ano seguinte, já separado de Margarete e casado com Jenny, tornar-se o mais novo membro do império dos Klabin. “O casamento com Jenny Klabin permitiu a ele uma vida confortável, no sentido de não precisar vender obra para sobreviver”, conta o diretor do Museu Lasar Segall, Jorge Schwartz.

Artista múltiplo, Segall executou trabalhos em diferentes linguagens, entre elas o foi o desenho. Dedicado, mergulhou em uma série de retratos que de fez de Lucy Citti Ferreira, uma jovem pintora de traços marcados no rosto e olhares vagos, que lhe serviu de inspiração durante anos, na pintura, no desenho e na escultura. O artista também retratou inúmeras personalidades da vida cultural e intelectual do país, como o poeta Guilherme de Almeida, o escritor Mário de Andrade e o escultor Victor Brecheret.

Ao longo de sua carreira, sempre se mostrou comprometido com as causas humanitárias. Em suas telas, recontou as histórias das almas sofridas e abandonadas, exprimindo os dramas mundiais, como o da II Guerra Mundial, em obras de grandes dimensões:  Pogrom, 1937; Navio de Emigrantes, 1939 e Campos de Concentração, 1945, entre outras.

O artista na Vila

Dentre todos os lugares em que morou, em nenhum deles Lasar Segall se sentiu tão confortável como em sua casa-ateliê, na Rua Afonso Celso, na Vila Mariana. Nesse endereço morou com a esposa Jenny Klabin e seus dois filhos, Maurício Segall (morador da Rua Caravelas) e Oscar Klabin Segall. A casa foi projetada, em 1932, pelo cunhado e arquiteto russo Gregori Warchavchik. “Assim como a série de casas tombadas na Rua Berta e a Casa Modernista, na Rua Santa Cruz”, situa Jorge Schwartz.

Homem  robusto, de olhos vivazes e penetrantes, com tem-peramento cortês e bem-humorado, Lasar Segall gostava de estar próximo aos amigos. Alheio às agitações da boemia em bares e cafés, preferia celebrar as amizades em sua própria casa. “Sua residência era muito frequentada pela elite cultural de São Paulo”, ressalta o diretor do museu.

Extremamente cuidadoso com suas coisas, Segall fez a decoração de sua casa. Além das paredes, que eram tomadas por suas obras, deixava em cada detalhe um toque pessoal. Entregue ao ofício, passava quase o dia todo trabalhando em seu ateliê, ora desenhando, ora pintando e esculpindo. Durante a noite, costumava caminhar pelo bairro e visitar os amigos da vizinhança. 

Em sua última década de vida, Segall criou duas séries principais, as Erradias e as Florestas. Em 1951, realizou uma exposição retrospectiva no Museu de Arte de São Paulo e recebeu um a sala especial na I Bienal de Arte Moderna de São Paulo, o que  se repetiu na III Bienal, em 1955. No ano seguinte, passou a sofrer os primeiros sintomas da enfermidade cardíaca que o deixou impossibilitado de participar de outras exposições. Lasar Segall faleceu em sua residência, hoje museu, no dia 2 de agosto de 1957.

No país em que se naturalizou, tomando-o como segunda pátria, Lasar Segall sublimou, por quase quatro décadas, suas tristes recordações. “Segall teve sempre uma sensibilidade muito voltada para os seres marginalizados. Eles faziam parte da paisagem urbana alemã do pós-guerra, tomada pela fome, por epidemias, por desempregados, pela inflação. E mesmo no Brasil, quando ele descobre a região do mangue no Rio de Janeiro, local tradicional de prostituição”, explica Schwartz.

Sobre a atmosfera triste comumente observada nas telas de Segall, o poeta e amigo Guilherme de Almeida escreveu, certa vez: “É triste a pintura brasileira de Lasar Segall, como é triste a nossa modinha, o ritmo do nosso samba, o ritual dos nossos costumes antigos, o fundo macambúzio do nosso Carnaval”. Já o artista, questionado sobre a tristeza tão presente em suas obras, costumava responder que suas pinturas possuíam uma “alegria elevada, não a alegria superficial que se opõe à tristeza”.

Centenário da primeira exposição de Lasar Segall no Brasil

O Museu Lasar Segall, idealizado pela viúva de Segall, Jenny Klabin, criado, em 1967, por seus filhos Maurício Segall e Oscar Klabin Segall, preparou uma ação celebrativa pelos 100 anos à sua primeira exposição no Brasil, que inclui uma mostra intitulada “50 obras do Acervo”, e a divulgação do arquivo pessoal do artista, com mais de 3 mil itens.

“50 obras do Acervo” apresenta uma seleção das mais representativas obras de Lasar Segall: é possível acompanhar a trajetória percorrida por sua arte na Alemanha, da admiração pelos impressionistas até sua inserção no movimento expressionista, e também obras inspiradas pelas paisagens brasileiras.

Outro projeto que está interligado às comemorações é a digitalização do arquivo documental do artista, composto pelo arquivo pessoal de Segall, que inclui cor-respondências, documentos pessoais, recortes de jornais, livros autografados — a maioria deles colecionados em vida pelo próprio artista — que agora podem ser consultados no site criado especialmente para abrigar suas memórias.

Museu Lasar Segall: Rua Berta, nº 111. TEL.: 2159-0400. www.museusegall.org.br