Lar Escola de dona Maria Hecilda

Pessoas fazem a diferença. Constroem e destroem, motivadas pela fé, necessidade, amor ou ideal. Com dona Maria Hecilda (1899-2005) não foi diferente. Ela poderia continuar, em 1932, a ser apenas uma fazendeira de Pindamonhangaba, cuidando da filha de três anos e da terra deixada pelo marido, que morreu quando ela tinha apenas 29 anos. Mas isso era pouco para a severa e determinada jovem senhora que vendeu sua fazenda e veio para São Paulo a procura de um sentido maior para sua vida.

Quem nos contou essa história, em 2003, foi Clélia Salgado Teixeira, filha de Maria Hecilda Campos Salgado, fundadora do LarEscola. “Mamãe não gostava da vida dos passeios e clubes e, levada pela amiga Pérola Byington, começou a trabalhar na Cruzada da Infância”, revelou. Como voluntária, visitou o Abrigo de Menores — hoje Fundação Casa — e teve a curiosidade de conhecer os meninos que ficavam em um lugar isolado, chamado pelos internos de cafuá. “Ali, em quartos fechados, treze aleijados estavam confinados e eram tratados com desprezo pelos demais. Mamãe ficou penalizada”, relembrou Clélia.

A partir daquele momento, Maria Hecilda não mais descansou. Contratou professores para dar aulas aos meninos abandonados que, em muito pouco tempo, começaram a ganhar força e, por isso, tornaram-se um problema para o diretor da instituição que não tardou a impôr a Maria Hecilda duas condições: — “Ou a senhora não vem mais aqui ou leve os meninos para onde quiser!”.

Passado o susto, Maria Hecilda saiu à procura de uma casa para alugar: “Vendemos a fazenda muito bem, sem pechinchas e mamãe utilizou uma porcentagem dessa quantia para comprar uma casa onde pudesse instalar os meninos e trazer a professora”. Ganhou, como aliado, o então secretário da Justiça, que a ajudou a montar uma casa, localizada à Rua Castro Alves, que logo se apresentou inadequada, com seus três andares, para abrigar os novos moradores.

Resolveu, então, mudar-se para a Vila Mariana, na Rua França Pinto, 783, onde hoje é o Bazar Samburá. O LarEscola permaneceu ali por alguns anos, enquanto outro lugar era construído, com a ajuda da população. Um local próprio para ser um centro de habilitação, em um terreno, doado pela Prefeitura, à Rua dos Açores, travessa da av. República do Líbano.

Durante esse período, Maria Hecilda reservou o pouco tempo que lhe restava para os estudos e decidiu especializar-se: “Logo depois da 2ª Guerra, ela ganhou uma bolsa de estudos da ONU e ficou por seis meses nos EUA, país adiantadíssimo na área de reabilitação”, contou Clélia, apontando um dos certificados, entre dezenas de diplomas e títulos pendurados na parede da grande sala onde Maria Hecilda trabalhou até os 90 anos. Para ela, o tratamento de pessoas com deficiência física era a constatação de que o processo de reabilitação era possível.

Com a determinação e severidade de Maria Hecilda — única filha de seis irmãos que, sem consentimento da família para estudar, frequentava a escola escondida, o LarEscola foi construído: “Mamãe era muito enérgica e sempre que a criticavam por sua dureza, ela dizia: — Não estou fazendo carreira para Santa!”, relembrou Clélia, que herdou de Maria Hecilda a presidência do LarEscola por alguns anos — hoje dirigida por Alfredo Goeye Junior. Durante nossa entrevista em 2003, Clélia confessou não ter a mesma firmeza da mãe: “Não sou determinada como ela, mas realizei seu sonho: um convênio com a UNIFESP”, orgulha-se. Durante toda sua vida, Maria Hecilda, por onde passava, dava a mesma resposta: “Não, não tenho um filho deficiente”. Sua motivação surgiu do amor àqueles que viviam na cafuá — palavra de origem africana que quer dizer cova, antro, esconderijo — e que, graças a ela, foram libertados e tiveram a possibilidade de sonhar.

Kaíque, que está no Centro desde os 3 anos, é um exemplo do amor e empenho de Maria Hecilda: “Ele não tem uma perna, os dois braços, o maxilar e a língua, mas sempre foi muito esforçado”, destacou Clélia. Kaíque sonhava em ter um filho e, hoje, aos 60 anos, é um homem realizado e feliz com emprego e um filho. “Mamãe, até os 80 anos, dizia que a pessoa que mais aproveitou o LarEscola foi o Kaíque”. Tempos depois, ao completar 90 anos, a mesma pergunta foi-lhe feita pelo padre Calazans (monsenhor que fundou o Instituto Lareiras, à Rua Áurea) e, naquele momento, percebeu que sua missão havia sido cumprida: “A pessoa que mais aproveitou o LarEscola fui eu!”, respondeu.

A mulher que fundou, e durante 48 anos tomou a frente do Lar Escola, faleceu no dia 8 de setembro de 2005, mas sua coragem e determinação vive em cada deficiente físico que hoje tem o direito de estudar, trabalhar, sonhar e ter uma vida digna e respeitada.

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                                                            QUEM QUER AJUDAR?                                                       

Muitos moradores do pedaço ainda não conhecem o trabalho desenvolvido pelo Lar Escola São Francisco, apesar dos seus 68 anos de existência. O LarEscola, hoje, é um Centro de excelência técnico científica em prevenção, educação, reabilitação e inclusão com foco na pessoa com deficiência física. Uma referência na área da filantropia. Em parceria com a Unifesp faz cerca de 1.000 atendimentos diários, a maioria encaminhados pelo SUS — Sistema Único de Saúde, nas áreas de fisiatria, reumatologia, pneumologia e gerontologia.

A dependência do Centro de Reabilitação, localizado à Rua dos Açores, 310, no Ibirapuera, abriga a Oficina Ortopédica, que produz mensalmente mais de 1,2 mil produtos ortopédicos, e a Escola de Educação Especial para alunos de 4 a 15 anos com deficiência física.

A instituição também oferece o SOE — Serviço de Orientação à Empregabilidade, que propõe soluções para a inclusão dos atendidos no mercado de trabalho. Além disso, o atendimento odontológico, feito por consulta particular, que disponibiliza tratamento com uma técnica de sedação segura para o controle de medo, dor e ansiedade, diminuindo os riscos para esses pacientes com alterações físicas, mentais, comportamentais e/ ou sistêmicas.

Na Rua França Pinto, o LarEscola conta com o Bazar Samburá, que recebe produtos doados, como roupas, sapatos, brinquedos, móveis, objetos de decoração, eletrônicos, informática etc.,  e os comercializa, revertendo a renda para a manutenção do Centro de Reabilitação.

Um dos voluntários é o vizinho Darcio Vilela, que  presta trabalho  na Escola de Educação Especial: “Comecei no LarEscola como voluntário, em março de 2007, já no setor escolar, onde continuo até hoje. Apesar da instituição ter espaço para voluntários em outros departamentos, em todo esse período não senti vontade de mudar. Tenho muito prazer em ajudar os professores nas atividades de classe, lidando diretamente com as crianças”. Ele destaca que o trabalho realizado pelo LarEscola é fantástico. “É uma experiência de vida incrível acompanhar o desenvolvimento dessas crianças, a evolução na escola e suas vitórias a cada dia. Ao mesmo tempo, acredito que para elas é importante contar com outras pessoas, que não os professores, durante as aulas: São experiências, histórias e novidades que os voluntários trazem e que agregam ao processo de desenvolvimento.”

Atualmente, o LarEscola passa por grandes mudanças administrativas, visando melhorias e a manutenção dos serviços prestados. Hoje, conta com 80 voluntários em diversas áreas da instituição, o que é imprescindível para a melhoria contínua do trabalho. Mesmo assim, necessita de contribuição financeira de pessoas físicas e jurídicas. 

“Costumo dizer que para mim a semana sempre começa bem, pois, a energia, o aprendizado e o astral que vejo ali, eu levo para o resto da semana. Se você tem algum tempo disponível e pensa em fazer um trabalho voluntário, procure o quanto antes uma instituição com a qual se identifique. Vale muito a pena!”, orienta Darcio.

Para fazer doações para o Bazar Samburá, entre em contato: Rua França Pinto, 783 – Vila Mariana, tel.: 5908 7899  (agende a retirada dos produtos). Para contribuições financeiras, ligue para 5904 8030 ou 5904 8024 e informe-se. Para ser voluntário, ligue 5904 8023.

Alessandra Ribeiro Barros