Fim da linha

Quando era criança, Ayrton Camargo e Silva adorava passear pelas ruas do bairro acompanhado pelo avô Lysias Amaral Camargo. O destino predileto: a Estação de Bondes da Vila Mariana. “A presença dos bondes foi muito marcante durante a minha infância. Era impactante ver o passar dos bondes pela avenida, trepidando, barulhento, ele ia deixando rastros pelo caminho. E o passeio era fascinante!”, recorda o vizinho.

Arquiteto e Urbanista por formação, e hoje presidente da Estrada de Ferro Campos do Jordão (EFCJ), Ayrton lançou recentemente, pela Editora Annablume, o livro Tudo é Passageiro: Expansão urbana, transporte público e o extermínio dos bondes em São Paulo. Resultado das lembranças e de muito estudo.“Sou apaixonado pelos bondes e sempre me perguntei o motivo de sua extinção. Em 2005, fiz um mestrado sobre planejamento urbano e estudei o transporte de bondes em São Paulo. Foi com base nesse trabalho de mestrado que escrevi o livro”, explica.

O transporte público de passageiros, com operação regular, teve início na cidade de São Paulo em 1872. Foi nessa época que os bondes a burro começaram a ganhar as ruas da cidade. Com a chegada da eletricidade e a internacionalização da economia brasileira, em 1900, instalaram-se os bondes elétricos trazidos pela empresa canadense Light. “As linhas férreas que cortavam a cidade passavam longe do Centro. O objetivo da primeira linha de bondes foi transportar a população até a Praça da Sé”.

Expandido no decorrer dos anos, o grande tronco das linhas de bondes da cidade compreendia os eixos da Praça da Sé, bairro da Liberdade, Rua Vergueiro e Jabaquara. “Desses pontos saíam muitas linhas.”

A tarifa

O valor da passagem foi o primeiro entrave para o bonde não vingar como transporte público, afirma Ayrton. “O valor do bonde a burro era 200 réis desde 1872. Quando a Light instalou o bonde elétrico, ela investiu em postes, transformadores, fiações, trilhos; mesmo assim, a Prefeitura não autorizou o aumento da tarifa. A empresa aceitou então manter os 200 réis, até o momento em que a conta não bateu mais.”

Com a Primeira Guerra Mundial, a crise se agravou com a forte inflação. “A tarifa continuava congelada. A Light pressionou a Prefeitura, mas não obteve resposta.” A arrecadação do bonde não parou de despencar; e veio a Revolução de 24, que paralisou a cidade por muitos dias. “Em meio aos bombardeios, subestações foram destruídas e a Light teve um prejuízo enorme.” 

A estiagem de 1927 forçou a empresa a desativar algumas linhas e a diminuir os horários dos bondes, abrindo caminho para a introdução do ônibus na cidade. “Os ônibus passaram a ocupar as linhas desativadas. Para reverter isso, a Light — em 1928 — apresentou um grandioso Plano de Transporte Integrado, no qual propôs a construção de uma rede de metrô interligada aos ônibus e aos bondes. Em troca, ela duplicaria o valor da tarifa e o tempo de sua concessão e ainda teria o monopólio do transporte de carga.” A proposta insuflou um intenso bate-boca na imprensa e na câmara dos vereadores. “Foi o debate dos debates! Muitos afirmavam que 

a cidade seria vendida ao grupo monopolista.” 

Em 1929, Prestes Maia apresentou o Plano de Avenidas. “Essa foi a cartada principal para enfraquecer a Light e descartar os bondes, pois a prefeitura não entendeu que tinha que se pagar de modo justo os serviços prestados”. E chegou a Revolução de 30, uma década marcada por instabilidade política e abandono aos bondes.

“Foram as gestões públicas erradas que provocaram o desmonte do sistema de bondes da cidade”, diz  Ayrton. Primeiro, com a prefeitura de Prestes Maia, em 1937, quando decidiu acabar com os bondes, após receber uma carta da Light não querendo renovar a concessão. “Prestes Maia pensava numa cidade que se espraiasse; era contrário ao adensamento e à verticalização, apresentada pela Light em seu Plano de Transportes Integrados. Ele dizia que não queria colocar ‘espartilho’ na cidade.”

“Quando a Light saiu de cena, no final da década de 1940, os bondes passaram a ser operados pela recém-criada Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) e o sistema deu uma revigorada. Em poucos dias, a prefeitura autorizou a CMTC a fazer o que a Light não conseguiu em décadas: dobrar o valor da tarifa para 400 réis”. Ela investiu na rede na primeira metade dos anos 1950, num período instável, com prefeitos se alternando e a cidade sendo administrada por pouco tempo. Um corpo técnico interno, comprometido com inovações, deu vida aos bondes por mais alguns anos: instalou novos bondes; expandiu trilhos; inaugurou linhas entre os bairros. “Foi nessa época que a linha do Liceu Pasteur foi criada, e inauguradas as linhas São Judas e Vila Madalena.” 

O projeto dos bondes na cidade ia bem até Adhemar de Barros assumir a prefeitura. “Ele fez uma gestão corrupta e sem melhorias no transporte público”. Ao retornar, em 1961, Prestes Maia encontrou uma prefeitura falida. “Ele só não acabou com os bondes porque não tinha recursos nem para fechar uma linha e colocar quinze ônibus no lugar. Passou a gestão inteira saneando o rombo de caixa do seu antecessor”, observa Ayrton.

O golpe final para a extinção dos bondes caberia a Faria Lima, que recebeu a prefeitura no ‘azul’ e ainda contou com a reforma tributária que aumentou o caixa do município feita por  Castelo Branco, primeiro presidente militar, em 1964. “A gestão desse prefeito foi de muitas obras.  Concluiu o Plano de Avenidas de Prestes Maia e pôs um ponto final na história dos bondes da cidade de São Paulo.” E foi no dia 27 de março de 1968 que Faria Lima participou da última viagem oficial de bonde, em um camarão 1543. “Acabaram com os bondes aos poucos…”

Carros X Bonde

A cidade de São Paulo se desenvolveu sem um projeto inicial de transporte público. Os bondes, cada vez mais carentes de melhorias, foram perdendo usuários que preferiam usar o carro.“A classe média deixou de usar os bondes por serem lotados, barulhentos e desconfortáveis”, diz.

Em uma cidade como São Paulo da época, sem faixas para pedestres e sem sinalização de duas mãos, as disputas pelo espaço público entre carros e bondes se acirraram. “A falta de engenharia especializada travava o trânsito. Era um caos!” 

A classe motorizada achava que os bondes atrapalhavam o trânsito, e ainda o bonde conquistou um inimigo declarado: o prefeito Prestes Maia. “Ele criou a imagem de que era o bonde o problema do trânsito na cidade e a classe média apoiou.” 

Para o autor, um estudioso e apaixonado pelo tema, o bonde foi o modelo de transporte mais respeitoso que a cidade já teve. “Por ser elé-trico, o bonde não polui o ar, e ainda contribui para diminuir os carros nas ruas.” 

Estação Vila Mariana

A Estação Vila Mariana de bondes foi construída em 1912 e operou até 1968. Sua estrutura foi demolida três anos depois para a implantação da linha Norte-Sul do Metrô. “A estação era linda, na Rua Domingos de Morais, esquina com a praça Dr. Theodoro de Carvalho, e servia as linhas da Zona Sul. Era toda de tijolinhos, em estilo inglês, e contava com dois galpões anexados e um grande pátio”, descreve Ayrton.

A estação no bairro chegou a acolher 100 bondes e servia a diferentes linhas, entre elas: Bosque da Saúde (que truncava na Praça da Árvore e descia até o antigo Bosque da Saúde); a linha São Judas (no entorno da Igreja São Judas); a linha do Liceu Pasteur…  E a da Vila Clementino, construída sobre o trajeto usado pelo trem a vapor de Alberto Kullmann, que transportava carnes ao antigo mercado verde da Praça da Árvore. “Havia uma ramificação na Av. Cons. Rodrigues Alves que seguia pelo Ibirapuera e tinha o ponto final um pouco depois do Rio Pinheiros”, situa. 

Os bondes não eram iguais e o mais famoso era o Bonde Camarão. “Como muitas pessoas não pagavam a passagem, os bondes foram fechados para controlar a arrecadação”. Mais tarde, sob o comando da CMTC, outros bondes foram fechados, para a segurança do usuário.

Para atender a zona mais periférica da cidade, a Light abriu novas linhas de bondes operários. Essas linhas foram abertas em troca dos anéis tarifários: a cada 3 km, pagava-se 200 reis. “Esses bondes, com a tarifa pela metade, circulavam somente no período da manhã e da tarde, levando e buscando os trabalhadores e, nos finais de semana, eles não circulavam. Eram mais presentes nos bairros da Lapa e Brás.”

Estamos em 2016, e as disputas pelo espaço público no dia a dia da cidade continuam acirradas. A cidade cresceu e o carro continuou sendo o “dono” da rua.“O automóvel é uma espécie de traça que vai comendo o espaço público”, conclui Ayrton.