Feiras livres: a mais paulistana das paulistanas

A obra 100 anos de feiras livres na cidade de São Paulo, escrita pelos vizinhos Hélio Junqueira e Marcia Peetz, e lançada no dia 23 de janeiro no Museu Afro Brasil,  registra o papel social, econômico e cultural das feiras livres na formação da metrópole. Ponto de encontro da vizinhança, as feiras livres fazem parte da tradição do bairro!

“A mais paulistana das paulistanas, a feira livre é um palco de encontros que subverte a ordem do cotidiano”, diz o engenheiro agrônomo Hélio Junqueira, autor do recém-lançado livro 100 anos de história das feiras livres na cidade de São Paulo. Escrita em parceria com a economista Marcia Peetz, a obra registra o papel social, cultural e econômico das feiras no ambiente urbano.

Tanto Hélio como Márcia sempre acompa-nharam de perto as feiras livres da capital. “Nós sempre trabalhamos com abastecimento, no CEAGESP, na década de 1980, e ajudamos a implantar os sacolões e os varejões na cidade. Sentíamos muita falta de uma obra que documentasse a rica história das feiras paulistanas”.

O levantamento de material levou muitos anos. “O trabalho de garimpar as informações teve início na década de 1990, consultamos arquivos de jornais, museus, acervos pessoais de feirantes e fizemos entrevistas.” O projeto ficou pronto em 2013 para ser publicado em 2014, ano do centenário das feiras na cidade. “Por problemas burocráticos, só foi possível publicá-lo agora”, esclarece.

Em 312 páginas bilíngues e ilustradas por fotografias e pinturas, a obra contempla a evolução das feiras livres em São Paulo sem deixar, no entanto, de mergulhar também em suas origens medievais, passando pelas feiras populares europeias até a sua chegada ao Brasil, trazida pelos portugueses. “No período da colônia e início do império, essa função era desempenhada pelas quitandeiras escravas que vendiam alimentos nas ruas. Elas sempre estavam metidas em encrencas por conta do barulho, da higiene, do trânsito. A elite brasileira, que aspirava ser uma elite francesa, sempre se posicionou contra a venda nas ruas”.

Em São Paulo, as feiras só foram regulamen-tadas em 1914 pelo Ato 710, assinado pelo então prefeito Washington Luiz. “A vinda dos italianos e o forte movimento anarco-sindicalista organizado por eles na cidade, principalmente no bairro do Bixiga, forçaram a prefeitura a dar uma resposta para baratear os alimentos, baixando o custo de subsistência desse operariado que se formava na capital. Para baixar esse custo foram oficializadas as feiras livres, cujo nome, na verdade, é assim pelo fato de não pagar impostos”.

Hélio conta que a normatização das feiras foi uma ideia que partiu do Governo Federal e foi prontamente aplicada em São Paulo, após debates acalorados ocorridos na câmara. “Muitos acreditavam que nada de bom sairia ao regulamentar esse ‘mercado de vândalos que sujavam as ruas’. Como o Brasil sempre se preocupou mais com as culturas de exportação, como o açúcar, o café, o algodão, e não dava atenção ao abastecimento interno, as feiras supriram esse desequilíbrio.”

A primeira feira oficial na cidade de São Paulo foi armada no Largo General Osório, e contou com 26 feirantes; já a segunda, no Largo do Arouche, reuniu mais de 116. “Elas se expandiram rapidamente e, em pouco tempo, os trabalhadores começaram a reivindicar uma feira em cada bairro de São Paulo. Até a década de 1930, as feiras vendiam de tudo, massas, carne de porco, galinha viva… Essas modificações acerca do que pode ou não pode vender é um assunto que nos acompanha até hoje”. 

As feiras são ‘camaleoas’, diz Hélio. “No decorrer da história, ela foi se incorporando às mudanças sofridas pela cidade, adaptando-se às novas regras, aos conceitos de higiene, oferecendo os melhores produtos aos seus fregueses.” Sua morte já foi decretada inúmeras vezes: com a expansão dos supermercados, a partir da década de 1950, e com a presença dos sacolões e hortifrutis. “Mas elas nunca sairão de cena, pois a feira livre se adequa às necessidades de seu tempo”, explica o estudioso.

Desde sua regulamentação, em 1914, outras leis surgiram para determinar a disposição das feiras pelas ruas da cidade. “O decreto mais detalhado e amplo sobre o assunto foi o nº 5.841, de 1964, que reorganizou as feiras, determinando a sua formação, dimensões, disposição das barracas por ramo de comércio e tipologias”. Desde então, outros decretos foram aplicados quase que anualmente, fazendo pequenas complementações.

SUBVERSIVA E FESTEIRA

Aos olhos da sociedade, as feiras livres sempre se apresentaram como espaços subversivos, pois ali era apresentada a arte popular. “A elite paulistana, apesar de se sustentar à custa dos feirantes, posicionava-se contra a feira, afirmando que era coisa de comunista. A Igreja também não as tolerava, considerando-as caminho para a perdição, uma vez que era ponto de bebedeiras e jogatinas. Por isso, a feira é subversiva por natureza, pois ela muda a ordem do cotidiano: todos conversam, pessoas se conhecem, trocam receitas, fazem a festa. Em um supermercado a atendente nem olha nos olhos do cliente!”. 

Para o autor, a feira preserva a sabedoria popular. “Ela tem vida própria, tem sua vitalidade, promove a festa, subvertendo a ordem do cotidiano. O sucesso da feira e o modo como ela influencia a vida urbana estão ligados ao caráter social, trazendo o ambiente rural para a vida urbana”, explica Hélio.

A feira livre foi se aperfeiçoando para não perder a freguesia, ampliou a diversidade de alimentos frescos ano após ano e conquistou a clientela mais exigente. “No início, os feirantes, a maioria imigrantes, também eram os produtores e vendiam a colheita em diferentes feiras. Isso se perdeu ao longo dos anos e novas formas de abastecimento foram se tornando mais comuns, como o CEAGESP, por exemplo, onde a maioria dos feirantes se abastece hoje”, informa Hélio.

Ícone da cidade e eternizado pelos paulistanos em verso e prosa, o pastel ganhou uma pesquisa à parte. “Ele é o rei da feira e mereceu um capítulo especial, pois é o principal protagonista de conflitos, ora por questão de higiene, ora por questão de segurança; sempre surge um novo motivo para vetar o pastel da feira. Ele foi proibido, depois voltou, e hoje, ao lado do caldo de cana, forma a dobradinha mais famosa das feiras na cidade”, conta Hélio.

No palco do feirante, o show é de bom humor. “O feirante encena, brinca, dança, faz o pregão para anunciar o desconto e o ambiente se torna uma festa, há uma leveza popular. A performance do feirante faz parte de seu talento. Tudo começou na época da Colônia, quando as negras forras eram obrigadas pelos fiscais a gritar os nomes dos alimentos que vendiam, pois sobre determinados produtos havia impostos”, observa o autor.

O feirante mais antigo do pedaço, Francisco Fábio de Oliveira, dono de uma barraca de frutas com os filhos Luiz e Fabinho, hoje vende na feira de sábado, na Rua França Pinto. Ele iniciou seu trabalho com o pai, ainda menino, em 1949, em uma banca na antiga Av. 8 de Novembro, hoje Dante Pazanese. “A avenida era linda. A feira existe até hoje, às terças-feiras, na Rua Joinville”.

A feira onde ele trabalha foi inaugurada no dia 12 de dezembro de 1957, originalmente próxima à Rua França Pinto, e chegava até a Av. Cons. Rodrigues Alves. Depois passou para a Rua Joaquim Távora com a Áurea, até à Rua Morgado de Mateus. “Aliás, era onde os frangos eram mortos!”, recorda-se. 

Mais tarde, a feira desceu para o estacionamento do DETRAN; porém, com a construção do Cebolinha, iniciada em 1996, mudou-se para o início da Rua França Pinto. “Antigamente os donos de barracas eram todos estrangeiros: portugueses, espanhois, alemães; hoje, donos são poucos… Daquela época, só eu continuo nessa feira…”, conta.

A cidade de São Paulo abriga hoje 871 feiras livres e agregam mais de 13 mil feirantes (veja box com os locais das feiras no bairro). Seu papel social e cultural rompe as barreiras do cotidiano e é registrada na arte por diferentes olhares: na teledramaturgia brasileira, filmes, em desfiles de escolas de samba, e em pinturas famosas, como a obra Feira, de Tarsila do Amaral.

“As feiras livres sempre inspiraram a arte popular e enriqueceram a vida do paulistano”, conclui o autor. “A única coisa que o supermercado não conseguiu derrubar foi a feira!”, garante Seu Fábio, como é conhecido pela freguesia.

Conheça as feiras da Vila Mariana.