Em movimento

Diana Sabagg (38) e Vinicios da Costa Silva (28) se ajeitam diante da câmera e começam a gravar mais um vídeo. Em pouco mais de dez minutos de uma conversa descontraída, eles apresentam e explicam como funcionam alguns acessórios usados por pessoas com deficiência visual para estudar, trabalhar e se comunicar. Um deles é a famosa máquina de escrever em Braile.

O vídeo, gravado no apartamento dela na Av. Cons. Rodrigues Alves, é um dos quatro produzidos para o canal no You Tube Olha Por Onde Anda, um espaço de diálogo no qual abordam os assuntos que fazem parte de suas rotinas. Logo no começo de cada gravação, o casal de noivos se apresenta ao público que os assistem: “Eu sou o Vinicios, sou deficiente visual”; “Eu sou a Diana, sou cadeirante”.

“Eu sou os olhos dele e ele é as minhas pernas. Daí nasceu o nome Olha Por Onde Anda”, explica Diana. “Criamos o canal para compartilhar as pérolas que vivenciamos juntos no dia a dia”, completa Vinicios. Uma delas está no primeiro vídeo publicado no canal, em que o casal Olha Por Onde Anda, como se definem, relembra o dia em que se perdeu a caminho do teatro e foi surpreendido por uma indesejada tempestade.

Diana afirma que o canal será importante para desfazer alguns tabus criados em torno das pessoas com deficiência. “A ideia é falar com leveza sobre todos os temas que nos mobilizam, sejam eles engraçados ou considerados tabus. Há uma imagem ultrapassada de que a pessoa com deficiência é incapaz, que ela fica presa em casa olhando para o teto. A realidade é outra. A gente estuda, trabalha, sai para beber, tem vida sexual… No canal, queremos expor todos esses temas”, afirma.

Ao mirar a câmera para o seu cotidiano, eles colocam em foco questões que atingem uma população de 2.759.004 pessoas na cidade. Segundo a secretaria municipal da Pessoa Com Deficiência (SMPED), esse é o número de moradores de São Paulo que declaram ter alguma deficiência; desses são 2.274.466 com deficiência visual; 127.549 com deficiência mental/intelectual, e 674.409 com deficiência motora.

Na Vila Mariana, bairro que concentra uma ampla rede de instituições de saúde e de ensino dedicadas às pessoas com deficiência, como a Fundação Dorina Nowill, para cegos, a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) e a escola bilíngue para surdos Helen Keller, os dados sobre essa fatia da população permanecem no escuro. Tanto a SMPED quanto a prefeitura regional VM não sabem informar o número de moradores com deficiência nem os seus perfis. “Não temos esse levantamento do bairro”, dizem.

Na rua, qualquer deslocamento representa uma longa batalha para a pessoa com deficiência. Os problemas de acessibilidade são velhos conhecidos e pouco mudam, lembra Diana. Ela os elenca: “calçadas esburacadas e desniveladas, falta de semáforos e rampas, comércios inacessíveis, mesas e cadeiras bloqueando a passagem, lixos espalhados, cocôs de cachorros… Em muitos casos, o cadeirante se vê obrigado a correr o risco e seguir pela rua. Eu, por exemplo, já perdi a conta de quantas vezes cai da minha cadeira no bairro”.

Já Vinicios, por sua vez, conta que os obstáculos enfrentados por deficiêntes visuais no espaço público são incontáveis. “De modo geral, as calçadas de São Paulo são muito ruins, cheias de buracos e degraus. No bairro, apenas a Rua Domingos de Morais é acessível. Nas demais áreas é muito difícil se locomover. Além disso, há também uma parcela da população que não colabora e joga o lixo na rua, que estaciona o carro em frente aos comércios e não deixa um espaço para o pedestre passar com segurança”.

A colaboração é sempre muito bem-vinda, avisa ele. “Principalmente na hora de atravessar as avenidas. Quanto mais as pessoas sem deficiência ajudarem as pessoas com deficiência, menores serão os riscos de acidentes”. E revela: “É muito comum alguém nos oferecer ajuda e, no meio da conversa, ir embora sem avisar. Isso nos deixa perdidos, plantados no lugar sem saber se a pessoa volta ou não”, avisa Vinícios.

Para a idealizadora e organizadora do Fórum da Pessoa com Deficiência da Vila Mariana, Márcia Norcia, a rua é um lugar hostil para a pessoa com deficiência. E justifica: “Muita gente nem imagina isso, mas o cocô de cachorro nas calçadas implica num grande problema para a pessoa cega. Ela suja a bengala e, em seguida, suja as mãos. Esse tipo de situação, que podemos evitar, é muito constrangedora e coloca a saúde em risco”.

Desde a criação do Fórum, em 2016, Márcia Norcia tem mobilizado moradores com e sem deficiência para debater, junto aos representantes de instituições de assistência do bairro, alternativas para melhorar as acessibilidades física e comunicacional da população com deficiência na região. As demandas levantadas são encaminhadas ao poder público. “A acessibilidade é uma vocação do bairro e precisamos ajudar”, diz.

Márcia explica que o Fórum desempenha na região o papel que deveria ser feito pelo Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência (CMPD), localizado no centro da cidade e que, hoje, encontra-se distante das demandas regionais. “O Fórum é uma espécie de núcleo regional informal do CMPD. O nosso propósito é fortalecê-lo para conseguir criar o núcleo do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência da Vila Mariana. Isso irá facilitar para colher as demandas e promover debates”, adianta.

Além de estabelecer um canal de diálogo com o poder público, o Fórum também realiza campanhas de conscientização no bairro. “Em setembro passado, lançamos uma campanha chamada Cãozinho Educado. Por meio de encontros e panfletos, pedimos às pessoas que possuem animais para recolher os cocôs da calçada. “A nossa luta é por um bairro mais limpo e humano, um bairro que possa acolher a todos”, afirma a vizinha.

Nesses dois anos de atuação do Fórum da Pessoa com Deficiência da Vila Mariana, Márcia Norcia diz não ter dúvidas de que a má qualidade das calçadas é a demanda mais urgente para a região. “Elas são prioridades, pois têm muito desníveis, são irregulares e esburacadas. E oferecem muitos riscos tanto às pessoas com deficiência quanto às pessoas sem deficiência, como os idosos, que possuem mobilidade reduzida”.

A prefeitura regional VM diz estar atenta às demandas dos moradores e afirma se esforçar para cumprir no bairro o Plano Emergencial de Calçadas (PEC 2008) – lei nº 14.675/2008, que determina a reforma ou a construção de calçadas acessíveis na cidade.

A primeira fase do Plano readequou 6.200m² de calçadas da rua Pedro de Toledo. A próxima etapa, em curso, contempla as ruas Loefgren, Borges Lagoa e Diogo de Faria, localizadas numa área hospitalar de tráfego permanente de pedestres com mobilidade reduzida. “A previsão é que sejam revitalizados 53.400 m² de calçadas no bairro”, diz a PRVM.

De acordo com a SMPED, a PRVM também receberá, nas próximas semanas, um lote de piso tátil de alerta. “O piso tátil é fundamental para garantir a autonomia das pessoas com deficiência visual”, ressaltou o secretário da pasta Cid Torquato, sem especificar, no entanto, a quantidade nem o local onde o piso tátil de alerta será implantado no bairro.

Nos espaços públicos ou privados, a acessibilidades física e comunicacional para as pessoas com deficiência ainda engatinham no bairro, considera Márcia Norcia. “O cardápio em Braile, por exemplo, mesmo sendo determinado por lei, raramente é encontrado em algum bar, restaurante, padaria ou hotel da Vila Mariana”.

Ao perceber que seus pacientes encontram muitas barreiras nos comércios do bairro, a ACCD elaborou e disponibilizou gratuitamente em seu site um guia para melhorar a experiência das pessoas com deficiência. Além de orientações sobre acessibilidade, especialmente a física, o Guia de Atendimento a clientes com deficiência apresenta ao comerciante um glossário de termos corretos e incorretos sobre o assunto. “Portador de deficiência”, por exemplo, é um dos incorretos. O correto é “Pessoa com deficiência”.

As dificuldades dos comércios do bairro de se readequarem para receber as pessoas com deficiência se refletem no número de autuações nos últimos anos. Em 2017 a PRVM registrou 832 apreensões de objetos por motivos de infrações de acessibilidade. No primeiro semestre de 2018 foram apreendidas 469 mesas e cadeiras por falta de autorização (TPU) para coloca-las nas calçadas. De janeiro de 2017 a setembro deste ano, a fiscalização aplicou 47 multas a edificações particulares do bairro, após também identificar infrações relacionadas a acessibilidade. 

E a responsabilidade é somente do poder público, esfera em que as pessoas, com ou sem deficiência não se sentem representadas? Ledo engano… A dificuldade também está na falta de educação da população. “Se fossemos representados pelo poder público teríamos calçadas e comércios mais acessíveis; se fossemos mais respeitados pelos cidadãos, os moradores não jogariam o lixo nas rua e recolheriam o cocô de cachorro das calçadas… Coisas que não acontecem”. 

05/11/2018 – Edição 187 – Out/2018

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