Da Vila às Arabias

Em dezembro de 2010 um jovem tunisiano ateou fogo ao próprio corpo como protesto contra os regimes autoritários e as condições humilhantes de vida em seu país.

O ato, que culminou com sua própria morte, inspirou inúmeras manifestações, que, apoiadas pelas redes sociais, rapidamente alastraram-se por Tunísia, Egito, Síria, Iêmen e Barein, causando a queda de quatro ditadores, num conjunto de protestos denominado Primavera Árabe.

Desde o começo de 2011, países árabes do Norte da África e do Oriente Médio passaram por uma série de manifestações pró-democracia. Em três países já é possível notar mudanças: o presidente tunisiano Ben Ali foi deposto do poder pela revolução de Jasmim; no Egito, Hosni Mubarak renunciou ao cargo após 30 anos no poder; na Líbia, Muammar Kadafi foi morto baleado; e no Iêmen, Ali Abdullah Saleh transferiu o poder depois de 32 anos.

As manifestações agora estão na Síria, que tem atraído os olhares do mundo ao ser palco de intensos conflitos ao longo do ano. Há 11 anos no poder, Bashar al Assad mantém-se firme, apesar das acusações de oprimir violentamente as manifestações populares. De acordo com a ONU, que acusou o regime de crime contra a humanidade, mais de 32 mil pessoas já morreram nos conflitos.

Para o escritor libanês naturalizado brasileiro e morador da Rua Pelotas, na Vila Mariana, Assaad Zaidan, essa onda de protestos começa a escrever um novo caminho para a rica civilização árabe: “Hoje posso ver uma aurora de mudança com a revolução do povo oprimido, humilhado e explorado. Tenho grandes esperanças na mudança e a certeza de que o fim da ditadura já está traçado. Espero que antes do final do ano possamos festejar, ao lado do heroico povo sírio, o enterro do ditador sanguinário Bachar al Assad e suas quadrilhas assassinas, para que a Síria possa ser novamente o peito revolucionário e renovador do mundo árabe”, desabafa Zaidan, que nasceu em 1933, no vilarejo de Rwea El Balout – El Maten, no Líbano, e chegou ao Brasil em 1952.

O povo da milenar cultura que hoje pede liberdade tem uma tradição imensurável e é integrante do nosso dia a dia. A chegada dos árabes ao País ocorreu ainda no final do século XIX, quando se iniciou a marcha do Oriente Médio rumo às Américas, cujos principais destinos foram Estados Unidos e Brasil. A imigração ocorreu às pressas, dada a necessidade de fuga do terror imposto pelo Império Otomano, formado por islâmicos.  Até então proibida a entrada dos árabes no Brasil, foi Dom Pedro II, que aprendeu a língua árabe e tinha uma profunda admiração por essa cultura, que, ao se tornar imperador, deu permissão para que os sírios-libaneses palestinos imigrassem para o Brasil.

Pedaços de história

Em pleno século III d. C. os árabes já possuíam sua própria língua e letras, heranças dos povos antigos da região, como destaca Zaidan: “Os árabes, nesse período, já conheciam a astronomia, adivinhação, medicina dos babilônicos, genealogia e, também, já tinham contato com a poesia e a oratória. Cada poeta representava e defendia sua tribo, relatava sua história, suas glórias e trajetórias”. Foram eles os criadores das mais belas canções de amor, de alegria, como também os que mais as versificavam na poesia, que, para eles, era tida como o espelho da vida do homem.

A formação do idioma árabe, tanto na origem quanto na composição e gramática, encontrou como base sustentadora línguas de povos antigos, como os sumérios, acadianos, assírios, babilônicos, nabateus, gregos, coptas, aramaicos, hebreus, etíopes e indianos. Dessa forma, os diferentes dialetos falados foram se adaptando de acordo com a religião islâmica.

“Nos séculos passados a língua grega se alastrou pelo mundo antigo, seguindo as conquistas do exército Macedônio de Alexandre, o Grande, e helenizou todas as línguas que existiam no Oriente Médio, exceto a aramaica, por causa de sua riqueza. Contudo, a força cultural árabe prevaleceu, graças ao aperfeiçoamento de sua gramática e às heranças dos povos das primeiras civilizações”, explica Zaidan.

No pré-islamismo não existiam literatos nem professores e eram raros os que sabiam decifrar e escrever corretamente. Nas diversas tribos, contavam-se nos dedos as pessoas que sabiam ler e escrever. No século VI,  os árabes já tinham aperfeiçoado e unificado seus dialetos, bem como afinado  seu estilo oratório e poético. O Alcorão, escrito paralelamente ao surgimento do islamismo, incentivou os diferentes povos árabes a se alfabetizar. 

Para se ter uma ideia da importância do conhecimento para o Califado, Nem bem chegou a Bagdá, o Califa Al Ma’mun inaugurou a primeira escola pública árabe, e na Andaluzia, inúmeras escolas árabes espalharam-se pelo território espanhol.   

Bagdá era repleta de escolas, livrarias e bibliotecas, abrigando em média de cinco a dez livros para cada pessoa, e Al Ma’mun ampliou para as demais cidades do Califado  o interesse em produzir obras literárias e traduzir outras para o árabe.  Em sua dinastia, foram traduzidos livros de Aristóteles, Platão, Hipócrates, Galeno, Arquimedes etc, o que fez surgirem cientistas, médicos, filósofos, escritores e pensadores fundamentais à cultura mundial. “Do berço intelectual de Bagdá muitas obras foram levadas para o Ocidente (Cairo, Kairwan e Andaluzia). Esses livros que chegaram ao conhecimento ocidental exerceram grande influência em seu desenvolvimento, pois o Ocidente ainda permanecia encoberto pela escuridão cultural proporcionada pelos regimes bárbaros e doutrinas religiosas”, explica Zaidan.

A cultura árabe no Brasil

Os imigrantes que desembarcaram em solo brasileiro e não tinham conhecimento literário nem sabiam latim sentiram enorme dificuldade para se adaptar à língua portuguesa, pelo fato de o idioma ser tão diferente da língua árabe, tanto na escrita quanto na pronúncia. Isso obrigou os imigrantes a falar e pronunciar o português com sotaque e som característicos de cada região da qual vieram, e criou-se uma diversidade sonora, como elucida Zaidan. “Os que vieram de Trípoli e Líbano pronunciavam o português com um som ‘musicado’; os de Beirute e Damasco, com um som ‘chorado’; os de Halab e da Síria com um som ‘rezado’; os de Homs, com um tom ‘cantado’; e assim por diante: cada um empregando um tom de acordo com sua terra natal.”

De maneira natural e crescente, a cultura árabe se enraizou na brasileira, e na Vila Mariana não foi diferente. É possível notá-la nas inúmeras comunidades árabes sediadas na região, em sua forte presença no comércio, nos restaurantes, nos nomes de ruas e na Catedral Ortodoxa Antioquina, localizada na Rua Vergueiro, n.º 1515, inaugurada em 1954.

Para Zaidan, a influência exercida pelas letras árabes no Ocidente é histórica e contemporânea. A literatura brasileira obteve valiosas obras escritas pelos imigrantes intelectuais, muitas no próprio árabe, outras em português e algumas bilíngues. Essa rica influência é encontrada em obras dos mais notáveis escritores brasileiros, como Olavo Bilac, João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, dentre outros amantes confessos da poética árabe.

“Na língua espanhola existem aproximadamente cinco mil palavras árabes; em Portugal, dezenas de cidades possuem nomes árabes, como Fátima, Alenquer, Alcaria; já na língua portuguesa existem mais de mil palavras

árabes, como as relacionadas em meu livro Letras e História, mil palavras árabes em língua portuguesa.” (veja o box) A segunda edição da obra é da editora Escrituras (aqui da Vila Mariana), em parceria com a Edusp.

Vivendo há mais de sessenta anos dividido entre o Líbano e o Brasil, Zaidan encontrou na Vila Mariana o acolhimento ideal entre a comunidade árabe que aqui vive. “Viajei do Oiapoque ao Chuí e conheço o Brasil como poucos brasileiros conhecem. Isso me deu a oportunidade de visitar colônias e comunidades libanesas, sírias e palestinas que estão em território brasileiro. Mas esse bairro sempre teve minha preferência, pois é um lugar simpático e acolhedor, e que me faz afirmar que o Brasil é a minha segunda pátria. Tenho muitos amigos queridos que, como eu, residem na Vila Mariana; detesto viver longe deles.”

Exemplos de palavras árabes na língua portuguesa

Apetite (Cabiliat); Azul (Azawarde), Bairro (Dahiat ou Thahiat), Bússola (Bussola), Canal (Canat) Café (Kahwa-Gahwa), Cifra (Cifr); Deixar (Dachir) Dengue (Thangue), Divã (Divan-Diwan); Enfarte (Infrat), Escutar (Skut), Farra (Farha), Férias (Furass); Garfo (Garfa), Gato (Gutt), Gelo (Thalg);  Heresia (Hartcat), Histeria (Histiria); Ícone (Ayconi), Ida (Ida), Jarra (jarra), Javali (Jabali), Laranja (Naranj), Leilão (Al-Alan);  Máscara (Maskhara), Massagem (Massah), Moda (Modah),  Noturno (Natour), Nunca (Nuha); Oceano (Al-Muhit-Okeanos, Oxalá (in-xa-allah); Papagaio (Babagha), Papel (Burda-Papirus), Presépio (Az-zariba); Quilate (Quirat), Quintal (Kuntar), Real (Ariel), Refém (Rehen-Rahin); Sabão (Sabão),  Salada (Salada); Tapa (Tabbi), Tênis (Tanyss), Ternura (Tarno); Urna (Aran), Utopia (Tauba), Vagina (Ghimd), Vale (Uali), Xadres (Xatranj), Xarope (Xarabe), Xereta (Xerira); Zebu (Zebu), Zorra (Djarra).

Letras e História – mil palavras árabes na língua portuguesa, de Assaad Zaidan. Editora Escrituras (287 pág.) R$ 35,00