Cultura da violência contra a mulher

Os crimes praticados contra as mulheres são, segundo levantamento estadual, os que mais crescem na cidade. Todos os dias, mais 7 de sete mulheres são estupradas em São Paulo. O histórico desamparo da vítima desse tipo de crime explica, em grande parte, o medo instaurado no bairro após uma série de rumores sobre supostos estupros no Metrô Vila Mariana.

Os relatos começaram no sábado, dia 18 de agosto, e viralizaram via WhatsApp e redes sociais. Em pouco tempo apareceram novas versões. A primeira dizia que uma jovem tinha sido estuprada no metrô Vila Mariana; outra afirmava que duas alunas do bairro tinham sido estupradas; uma terceira versão alertava que as meninas estavam sendo puxadas para dentro de um carro e então estupradas…

Na manhã de segunda-feira (20), ao começar a apurar o caso no 36º DP, na Rua Tutoia, os rumores já estavam fora de controle, conta o investigador Silvio Cavallaro (50). “Era o único assunto no ar. Só que, em nosso sistema e no sistema do Metrô, não encontramos nenhum registro. Até então, não havia nada de concreto, apenas uma série de relatos, nenhuma vítima e jornalistas ligando sem parar”.

Enquanto a investigação para identificar a origem dos boatos prosseguia nas redes sociais, o medo já tinha alterado a rotina nas ruas do bairro e posto em alerta moradores, comércios e centros acadêmicos. “A coisa explodiu e mobilizou todo mundo: Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Civil Metropolitana, Metrô, Secretaria da Segurança Pública, imprensa… Virou um pandemônio”, relata o chefe de investigação.

A origem dos boatos foi identificada logo, esclarece Sílvio. “Eles foram publicados na manhã de sábado (18) por duas alunas do cursinho Poliedro. Elas passavam pelo terminal Vila Mariana e ouviram uma jovem relatar aos seguranças que tinha sido estuprada. Elas interpretaram como se o estupro tivesse ocorrido na estação e divulgaram”.

Para conter os rumores, que àquela altura já estava sendo veiculado na TV em tom sensacionalista, o Metrô publicou uma nota de esclarecimento. Nela, explicou que, na manhã de sábado (18), os seguranças da estação Vila Mariana abordaram uma jovem que disse ter sido estuprada. Após se recusar a fazer o Boletim de Ocorrência e ir à um hospital, ela foi conduzida por um carro do Metrô até a sua casa.

“Foi nesse instante que as alunas do Poliedro passaram, ouviram e espalharam a notícia falsa”, situa Silvio. O estupro da jovem amparada pelos seguranças do Metrô foi esclarecido na quarta-feira (21), quatro dias após o início dos rumores. Acompanhada da mãe, ela depôs no 36º DP.

A jovem de 18 anos, moradora do bairro, relatou em seu depoimento que, na noite de sexta-feira (17), foi a uma festa em São Bernardo do Campo acompanhada do seu namorado. Disse que beberam, se desentenderam e ela, sozinha, foi conduzida por cinco rapazes até uma casa em Diadema, onde passou a noite e foi estuprada.

Ao acordar na manhã de sábado (18), estava nua. Ela afirma não se lembrar do endereço da casa nem das pessoas que estavam nela; diz ter apenas flashes do estupro. Já pela manhã, uma senhora que estava nessa casa deu 10 reais para que ela fosse para a casa. Depois de um ônibus, ela pegou o metrô e desceu na estação Vila Mariana, onde foi abordada pelos seguranças na área externa.

“O estupro aconteceu em Diadema. Os relatos de estupros no bairro são Fake News, que é horrível em todos os aspectos, mas, nesse caso, que envolve a segurança pública, ela é ainda pior. A boataria instaurou uma onda de pânico no bairro e até uma ‘rua do estupro’ foi inventada”, diz o delegado titular do 36º DP Marco Antonio Dario, fazendo alusão ao apelido dado à Rua Capitão Cavalcanti pelas alunas do bairro.

As reclamações dos moradores sobre a falta de segurança na rua Capitão Cavalcanti, principal via de acesso entre o pedaço e o terminal Vila Mariana, têm sido recorrentes nos últimos anos. A iluminação precária torna o trajeto temido pelos moradores e faz dele um endereço de diversos crimes. Em março deste ano, a rua já havia ganho os noticiários de TV após uma câmera de segurança registrar um arrastão no local.

Questionada sobre a demanda nesse endereço, a prefeitura regional Vila Mariana afirmou que vai providenciar, junto à Eletropaulo, a melhoria na iluminação da rua. Segundo ela, os galhos das árvores estão bloqueando a luz. “A poda é realizada pela Eletropaulo e iremos solicitá-la”.

Entre as estudantes e as jovens do bairro que trafegam pelo trecho diariamente, instaurou-se um clima de tensão permanente. Para monitorar a segurança uma das outras, elas criaram grupos no WhatsApp e agora fazem o trajeto sempre acompanhadas. “Os caminhos até as estações são mal iluminados e não há segurança; o medo é real”, disse uma aluna.

A dimensão alcançada pelos rumores de estupros no bairro expôs alguns pontos sensíveis na abordagem desse crime. Na reunião do conselho de segurança da Vila Mariana, Paraíso, realizada no dia 28 de agosto na faculdade ESPM, a comunidade e as autoridades protagonizaram um longo embate sobre as medidas a serem tomadas. Nela, as estudantes cobraram das autoridades melhor trato do assunto.

“Hoje, a mulher não se sente segura para ir até uma delegacia e dizer que foi estuprada. Expor essa violência física e emocional é muito doloroso. A polícia precisa ter mais sensibilidade com as vítimas desse tipo crime e oferecer as condições adequadas para que elas se sintam seguras para denunciar o abuso, o que ainda não acontece”, ressaltou outra aluna.

Essa desconfiança é um dos principais motivos da vítima pela escolha de não registrar o crime, lamenta Silvio. “As pessoas não fazem a denúncia porque acham que as suas intimidades serão expostas ou que, ao chegar na delegacia, serão atendidas somente por homens. Nesses casos de estupros, o atendimento é sempre feito por policiais mulheres. Se a vítima ainda preferir, ela pode escolher preservar a sua identidade no B.O”.

Em casos de estupros no bairro, a orientação é que o crime seja registrado na Delegacia da Mulher (DDM), na Av. 11 de junho, 89. Após o atendimento, a vítima é encaminhada ao Centro de Referência da Saúde da Mulher, o hospital Pérola Byington, onde realizará exames, iniciará os cuidados contra DST’s e gravidez e será assistida por uma equipe multidisciplinar.

CAMINHOS DO CRIME

Em 30 anos de carreira, o investigador Silvio diz que não há um perfil definido dos agressores. Mas o cenário é cristalizado. “Na maioria dos casos, a vítima conhece o agressor. É alguém próximo: amigo, primo, namorado, marido, padrasto…”

Em suas defesas, os relatos dos agressores costumam ser parecidos, ele observa. “Eles dizem não se lembrar do crime ou que a vítima consentiu com o ato”.

Nos últimos dois anos, período só até aonde alcança o histórico do 36º DP, foram registrados diferentes estupros no bairro. Em junho de 2017, uma jovem de 18 anos denunciou um estupro coletivo dentro do parque Ibirapuera.

Em dezembro de 2017, uma vizinha de 24 anos foi estuprada durante um roubo realizado na Rua Joaquim Távora. “O ladrão entrou no comércio, rendeu as pessoas, ordenou que elas ficassem nuas e estuprou a menina”, conta Silvio.

Na fuga desse agressor, a vítima ainda conseguiu correr até a janela e anotar um pedaço da placa do carro usado por ele. “Identificamos, mostramos a foto para a vítima, ela o reconheceu e ele foi preso no Jabaquara”.

No Carnaval deste ano, outro estupro foi registrado no pedaço, dessa vez num hotelzinho localizado na Rua Sud Mennucci. A vítima foi rendida na saída do Metrô VM, forçada a sacar dinheiro e então foi estuprada num quarto do pequeno hotel. Nesse caso, o estuprador também foi preso. “Ele fez compras com o cartão da vítima e o pegamos no bairro”. Na casa do agressor de 40 anos, na Aclimação, foram encontrados todos os pertences roubados da vítima.

O conjunto de provas oferecido pela vítima é crucial para a resolução desse tipo de crime, explica o investigador. “Toda informação é importante e ajuda na investigação: descrição de roupa, tom da voz, carro, arma… qualquer coisa!”.

Assim que o agressor é localizado é feito imediatamente o pedido da sua prisão temporária; as provas são recolhidas nos autos e é solicitada a prisão preventiva. “Daí em diante ele aguardará o julgamento na prisão”, informa Silvio.

Os registros oficiais, porém, não dão conta da real dimensão dos estupros acontecidos no bairro. No ano passado, por exemplo, a comunidade socorreu uma jovem que foi estuprada na rua Dr. Ferreira Rosa. Para a delegacia do bairro esse crime não existiu. “Não temos como apurar o que não sabemos. É por isso que reforçamos a importância de fazer o Boletim”, rebate o delegado titular Marco Antonio Dario. Com a prisão do estuprador, o caso é encerrado para a polícia, para a vítima o caminho para restabelecer a saúde física e emocional está apenas começando.

As mulheres que chegam à Casa Eliane Grammont, na Rua Dr. Bacelar, 20, estão nessa batalha silenciosa para retomar as suas vidas após as violências que sofrerem. Por mês, a casa ampara cerca de 200 mulheres de diferentes idades e classes sociais vítimas de violência doméstica.

A secretaria estadual de direitos humanos, responsável pela administração da unidade, afirma que os agressores são, em sua maioria, companheiros e ex-companheiros das vítimas.

Além das agressões dentro da própria casa, as mulheres que procuram a unidade também relatam violências no ambiente de trabalho, como assédios moral e sexual.

Na casa Eliana de Grammont, inaugurada no bairro há 25 anos, as vítimas recebem apoio de psicólogos e assistentes sociais e participam de rodas de conversas, palestras e oficinas.

Apesar dos avanços no combate ao crime doméstico proporcionado pela Lei Maria da Penha, que completa 12 anos neste mês, os rastros da violência só aumentam no país. Em casa, nas ruas, nas empresas, no transporte, na escola… a violência contra a mulher ocupa todos os espaços e expõe a urgência de repensar nossa cultura machista e violenta.

Essa violência se alastra aqui e ali num psiu, num gostosa, num beijo forçado… O limite é simples: depois do não dado pela mulher, tudo é assédio, tudo é violência… tudo é crime!