Alma das Ruas

Os números de moradores de rua nas grandes cidades atingem níveis alarmantes. A Vila Mariana abriga em torno de 260 pessoas nessa dolorosa situação, dormindo pelas calçadas, barracas e carroças. Para entender a complexidade que envolve essa triste realidade, conheça alguns trabalhos realizados em nosso bairro pela Assistência Social da Vila Mariana (SAS) e pela Associação Beneficente & Comunitária do Povo (ABCP) com a missão de resgatar essas pessoas “invisíveis” aos olhos da população

No terminal de ônibus Ana Rosa, enquanto pessoas aguardam a condução para casa, o catador de latinhas Luis Silvério se prepara para dormir. Ao contrário de nós, ele não tem uma cama, muito menos um casa para morar; há dez anos dorme no velho banco de concreto do terminal.

Andar pela cidade de São Paulo e deparar-se com cenas como essas, em que pessoas se encontram largadas por aí, já se tornou algo natural, uma triste realidade que não para de crescer.

O número de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, segundo o último censo realizado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), em 2011, superava 14 mil. O levantamento  foi  estabelecido com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), da prefeitura. 

Na Vila Mariana, esse quadro não é diferente. De acordo com a Supervisora da Assistência Social da Vila Mariana (SAS), Roseli Gomes Arrifano Venturi, “o bairro abriga hoje em torno de 260 pessoas em situação de rua, numa faixa etária entre 26 e 55 anos, sendo 71% homens”.

Além dos moradores permanentes, há também os migratórios, que passam pelo bairro a trabalho e não estabelecem vínculos com ele, como o carroceiro baiano Noel Conceição (37), morador de rua do bairro do Glicério, que há 15 anos recolhe materiais recicláveis na Rua Domingos de Morais. “Desde que larguei o meu emprego eu passei a trabalhar como carroceiro aqui, na Vila Mariana. No ano que vem eu pretendo sair da rua definitivamente”, almeja Noel.

Segundo Roseli, o motivo que os leva a morar nas ruas, quase sempre, está ligado a algum trauma ou decepção: “A maioria foi parar nessa situação após problemas familiares, perda de emprego e abuso de álcool ou drogas. Normalmente, eles vêm de regiões periféricas ou até mesmo de outros estados, e sempre revelam ter tido algum vínculo com o bairro no passado; muitos trabalharam aqui quando eram jovens”.

Para os moradores de rua, a Vila Mariana é um dos bairros mais atrativos, “principalmente nesse período de final de ano, quando inúmeras famílias carentes saem das periferias para pedir no bairro”.  A localização, a zona comercial e a alta renda dos moradores do bairro são fatores que contribuem para isso. “Eles sempre têm ajuda:  tomam café em um bar, almoçam em outro..”, observa Roseli.

As primeiras abordagens realizadas pelos sócioeducadores, que saem diariamente às ruas, é para estabelecer vínculos com os moradores de rua e entender um pouco suas histórias: “O que os levou a essa situação, se desejam ou não sair dela, para que lugar desejam ir, as dificuldades que têm encontrado, e se preferem retornar a suas casas ou fazer uso de algum equipamento municipal de acolhida”, explica a Gerente de Serviço do Centro de Referência da Assistência Social (CREAS), Leiza Lopes.

Todas as informações coletadas são cadastradas em um sistema denominado SIS Rua. Nele, constam os dados dos moradores de rua que foram abordados na cidade ou passaram por algum centro de acolhida. “A partir desses dados é possível traçar um plano para cada um deles sair da rua,  com o auxílio de programas como Transferência de Renda e Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego)”, informa Leiza.

No entanto, a maior preocupação tem sido o fácil acesso às drogas, especialmente às mais nocivas, como o crack. Na Vila Mariana, embora o número de usuários seja baixo, eles estão muito próximos da criminalidade. “O problema daqui é que os consumidores de drogas integram um grupo organizado que comete furtos e invade residências abandonadas, onde passa a morar”, alerta Roseli.

“O uso de drogas é um grande problema, mas a maioria das pessoas resolve ir para as ruas sem tê-las usado antes. Existe um problema de fundo, de ruptura de laços com família e emprego, que leva as pessoas para as ruas; sem sentido de vida, elas acabam usando drogas (ou não). Acredito que a parte mais ‘intangível’ dos moradores de rua, que temos na reintegração, seja a falta de sonhos”, explica o presidente da Associação Beneficente & Comunitária do Povo (ABCP), Murilo Melo.

Há sete anos trabalhando no auxílio e no resgate de moradores de rua da região, a ABCP conta hoje com 53 voluntários. Entre eles está a empresária e moradora da Vila Mariana, Cristina Gomes, que ajuda a ONG há três anos e reafirma a importância de cada um fazer a sua parte. “Hoje vivemos em um momento muito delicado, no qual o número de moradores de rua tem aumentado muito. Eu não poderia ficar esperando os governantes tomarem as providências”, determina.

De acordo com Leiza Lopes, mais da metade das pessoas que residem nas ruas da região não quer sair dela.  Ela costuma ouvir deles: — “Vou trabalhar pra quê, tia, se aqui na rua eu ganho 350 reais por dia?”. No final do ano, ocorre, ainda, a distribuição de brinquedos para as crianças, que vêm pedir no Parque Ibirapuera. “Uma prática que incentiva sua permanência na rua”, complementa Roseli.

Entre aqueles que encontraram na Vila Mariana um lugar para pedir e furtar nas ruas, está o jovem César Augusto da Silva (20), que passou a infância no bairro. “Minha referência estava na rua, e foi nela que comecei a usar maconha e cocaína e a fazer coisas erradas. Somente quando minha mãe faleceu é que a ficha caiu e vi que precisava dar outro rumo à minha vida, o que consegui graças às ajudas que tive, como a da ABCP, que me deu cuidado e carinho”, agradece César, que hoje mora com mais dois amigos em um apartamento na Av. Lins de Vasconcelos,  trabalha no setor administrativo da Igreja Batista do Povo e já tem novos planos para o futuro: estudar teologia e cursar uma faculdade de direito.

Murilo comemora: “Queremos que essa nova realidade, de uma vida fora das ruas, com amigos, trabalho, saúde, seja refeita ou construída às pessoas que nos procuram”. É o que a ABCP promove, com projetos que oferecem acompanhamento com assistentes sociais, serviços voluntários de médicos, dentistas e psicólogos, entre outros atendimentos. “Os que se dispõem a mudar de vida, longe das drogas e do álcool, são encaminhados para a república de adultos, onde podem ficar até alcançarem a estabilidade”, conta.

Existe uma oferta da rede de assistência social (incluindo organizações e pessoas que atuam de forma voluntária) para a alimentação, mas não para a moradia, e muito menos condições que auxiliem essas pessoas a saírem da rua. “A maior dificuldade é oferecer suporte holístico ao indivíduo, como assistência psicológica, médica, social, e trabalho. Existe uma fragmentação muito grande do sistema, não conseguimos um apoio efetivo para, por exemplo, quem tem problemas mentais”, lamenta Murilo.

Outro problema deflagrado pela SAS do bairro é a falta de respeito e cuidado com os moradores de rua por parte de órgãos públicos, como os hospitais. “A população de rua é invisível aos olhos das pessoas, como também das instituições. Um morador de rua doente encontra dificuldades para ser atendido; muitos médicos se recusam a atendê-lo por estar sujo. Isso tem sido um problema. Para reverter esse quadro, realizamos um trabalho constante com os residentes do bairro e com as instituições”, explica Roseli. Segundo Murilo, o atendimento deve ser realizado no sentido amplo do termo. E com um agravante: “Após uma cirurgia, a pessoa não tem um lugar intermediário, limpo e higienizado onde possa receber cuidados básicos”.

Há três anos distante das ruas e das drogas e hoje coordenador da república da ABCP, João Euclides de Almeida (52) conta a dificuldade que teve para receber atendimentos hospitalares quando estava na rua.  “Quando viam que eu não tinha endereço nem documentos, os hospitais se recusavam a me atender”, revela João, que foi parar na rua aos 35 anos e viveu nela durante dez. 

“Nunca tive, na rua, uma noite tranquila de sono. Às vezes, passava dias sem dormir e usava todos os tipos de drogas, era uma situação muito triste. Na rua via muitas pessoas se matarem por nada. Quando comecei a adoecer muito, sem conseguir andar direito, eu busquei ajuda na ABCP”, recorda João, que hoje trabalha para resgatar pessoas que residem na rua. 

O Natal busca despertar a ação de graças de cada um ao comemorar o nascimento de Cristo, que pregava: “Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei”(João 13,34-35).  Contudo, evita-se olhar para o semelhante como uma pessoa. “Imaginar que eles não ‘são moradores de rua’, mas que ‘estão moradores de rua’ é um passo importante para mudar a situação”, aconselha Murilo.

ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE & COMUNITÁRIA DO POVO – ABCP: Rua Afonso Celso, 1185, Vila Mariana. Telefone 5679-7813.