A natureza onírica e provocadora de Lenz

O Coletivo Teatral 28 Patas Furiosas foi criado em 2011, a partir do encontro entre dez estudantes de artes cênicas que desejavam criar um grupo de teatro com encenações próprias e experimentar novas linguagens dramatúrgicas.

Instalado no Espaço 28, em um bar desativado na Rua Dr. Bacelar, desde março de 2013, o grupo mantém atividades permanentes no local com a Ocupação Büchner — uma lacuna ou falha no texto original?, projeto que contou com bate-papos, abertos ao público, com a presença de nomes destacados da dramaturgia brasileira atual, como Alexandre Mate, Antônio Rogério Toscano, Roberto Alvim, Caetano Vilela e Cibele Forjaz.

Planejado para ser uma espécie de ateliê para jovens artistas e Centro Cultural, o local também é usado para os ensaios e as apresentações do coletivo de música eletroacústica NME, do diretor Diego Moschkovich e do coletivo Quizumba!.

Os materiais cenográficos que configuram o espaço, inspirados na novela de Büchner, são compostos por objetos que reforçam a atmosfera cheia de referências artísticas do texto, como papelão forrando o chão, um carrinho de supermercado, uma porta deteriorada, além de inúmeras miudezas artesanais que dialogam com os desenhos estilizados que cobrem as paredes.

No decorrer dos treinamentos, chamados de “vetores”, o grupo deu início a pesquisas/experimentos em torno da obra Lenz para montar o espetáculo inaugural do Espaço 28, intitulado lenz, um outro, que também marca a estreia na direção do jovem cenógrafo e iluminador Wagner Antônio.

Para conseguir expressar teatralmente o texto do dramaturgo alemão, o Coletivo criou uma instalação contendo luz e cenário que é manipulada pelos atores em cena, num jogo em que o público é convidado a vivenciar os “vazios” büchnianos num quebra-cabeça de peças imaginárias.

“Estamos desenvolvendo o nosso próprio treinamento para conquistar um experimento cênico que esteja alinhado às nossas propostas dramatúrgicas, cujos projetos não se limitam a estrear espetáculos, mas também a pensar alternativas para a viabilização e articulação de seus trabalhos na cidade”, diz Wagner.

O autor

A brevidade da vida de Georg Büchner (1813-1837), morto de tifo aos 24 anos, não corresponde à longa jornada e ressonância alcançada por sua obra, composta por duas peças completas (a tragédia A Morte de Danton e a fantasia Leonce e Lena), a peça inacabada Woyzeck, a novela incompleta Lenz, um apanhado de correspondências, e o panfleto político O Mensageiro de Essen. 

Escritor que teve uma vida agitada, Büchner se apropriou de temas importantes de sua época e os trouxe para dentro de sua ficção, utilizando uma linguagem moderna e sempre se valendo de seu olhar crítico. No entanto, o reconhecimento de seu feito ocorreu apenas no início do século 20. 

Considerado um gênio à frente de seu tempo, sua obra já apresentava temas estéticos e morais que se tornariam influências para escritores como Albert Camus e Franz Kafka, dramaturgos como Bertolt Brecht e movimentos vanguardistas como o expressionismo alemão.

O universo inquieto e questionador do autor na breve novela Lenz, publicada em 1835 e inspirada na vida do poeta e dramaturgo esquizofrênico Jakob Lenz (1751-1792) — integrante do grupo alemão pré-romântico Tempestade e ímpeto —, é levado aos palcos pela primeira vez no país pelo Grupo, que faz uma releitura livre da novela no espetáculo lenz, um outro. 

Transformar em linguagem cênica uma obra insólita e onírica como Lenz, quase desprovida de diálogos e figuras concretas, vai além de uma simples transposição de gênero literário, como explica o dramaturgo Tadeu Renato, responsável pela adaptação. “Para não corrermos o risco de enfraquecermos todos os fluxos que movem o texto, preferimos recriar a fábula, dando ênfase à noção de esquizofrenia não como patologia, mas como força propulsora para a afirmação da estética da existência.”

Personagem emblemático e solitário, a quem as palavras não passavam de apenas ruídos, nada além do que sons ecoando no espaço, o jovem poeta de Lenz se vê atacado pelos primeiros sinais da loucura, desvelando a estrutura estilhaçada de sua existência. De acordo com o diretor do espetáculo, Wagner Antônio, “a loucura e o delírio aparecem na encenação formalmente, numa tentativa de construir e destruir os fluxos das cenas num deslocamento contínuo da peça, em que as cenas nascem delas mesmas e jamais fecham uma ideia”.

Afora a textualidade pulsante e intimista que caracteriza a narrativa original — travada quase que inteiramente na mente doprotagonista — outro elemento se tornou um grande desafio para a encenação: a polifonia de Jakob Lenz. 

“A novela se desenvolve em um emaranhado de questões, passando por provocações estéticas, filosóficas e religiosas que configuram um olhar político quase que enigmático, e numa explosão psicológica que se relaciona neste mundo de incertezas que vivemos hoje”, reflete Wagner.

Na composição do espetáculo, o ponto de partida para encarar o texto lacunar da novela se estabelece no desprendimento de quaisquer truques teatrais, como assegura o diretor: “O universo que ronda essa obra é algo que exige uma abordagem singular. Lenz é, em si, uma provocação à linguagem, pois a esquizofrenia que o acomete está contaminando sua existência, e a percepção que tem do mundo já não lhe diz nada. Além disso, nos deparamos com as famosas lacunas de Büchner, que, para serem trabalhadas cenicamente, nos forçam a deixar de lado todos os jogos simplistas e truques já conhecidos. Não acredito que seria possível montar essa peça sem nos despirmos das nossas certezas”.

Para a atriz Sofia Botelho de Almeida, que dá vida ao jovem poeta na peça, “a experiência de vivê-lo no palco se configura numa busca por materializar palavras tão complexas, densas; é vivenciar cada momento do espetáculo e se deixar ser afetada pela lama, pela água, pelos atores em cena, e estar de poros abertos e expostos para o público”.

O duplo

Em sua novela fragmentária — a narrativa é entrecortada por lacunas —, o dramaturgo alemão se lança numa investigação profunda da mente perturbada e descrente do jovem poeta radical Lenz. 

Em suas andanças solitárias por vales montanhosos, como quem pisa sobre os próprios sentimentos, ora tomados pela calmaria, ora revoltosos e sofríveis, Lenz é hospedado e acolhido como um filho pelo mestre Oberlin, pároco de uma pequena aldeia que tenta, em vão, confortar-lhe a alma.

Assombrado por ideias fixas, como a morte de uma jovem menina em um vilarejo vizinho e os dilemas de sua própria existência, Lenz mergulha em seu conturbado mundo íntimo e revolve as angústias que atormentam sua vida. 

Quando seus olhos cansados miram o céu, na busca da divindade pregada pelo mestre Oberlin, se depara com imenso vazio, o nada.

Trancado em seu quarto a maior parte de seus dias, nem mesmo o tempo ocioso é capaz de lhe dar esperanças, pois se encontra condenado ao tédio interminável, como confessa ao mestre em uma passagem: “Sim, senhor pároco, veja, o tédio, o tédio! Oh!, tanto tédio, não sei mais o que devo dizer, eu já desenhei as figuras todas na parede”.

Dividido entre as belas paisagens do vilarejo e o quadro sombrio que pinta em sua mente, o jovem esquizofrênico não reconhece nem mesmo a sua própria imagem diante do espelho; já não é mais o mesmo, não há mais retorno, está fadado a ser um duplo; ora um, ora outro, jamais um único.

lenz, um outro

Dramaturgia: Tadeu Renato

Direção: Wagner Antônio

Onde: Espaço 28 – Rua Dr. Bacelar, nº 1219 – Vila Mariana

Quando: De 22/03 a 04/05/2014; sábados e domingos, às 19h

Ingressos: R$ 30,00 e R$ 15,00 (meia entrada)

Informações: (11) 94835-6395