Essência Alimentar

Cada vez é mais difícil comer sem culpa. Posso explicar. Outro dia, ao entrar num restaurante, me deparei com a seguinte descrição de um dos pratos: espaguete (preparado com trigo ancestral), regado ao molho de tomates (orgânicos), coberto com mussarela bovina (com comprovação de origem de rebanho feliz)… R$ 28,90. 

Posso estar pecando, mas tudo aquilo me passou a impressão de ser uma tremenda pilantragem. No impulso levantei e fui embora, com fome, e só de raiva tracei um hambúrguer de origem mais que duvidosa na primeira lanchonete com aspecto limpinho que encontrei. Aí me deu um arrependimento; primeiro por não ter dado ao proprietário do estabelecimento o benefício da dúvida, segundo por não ter lido os outros itens do cardápio. Quem sabe eles me dariam a certeza de que eu não tinha me enganado. 

Não pensem que sou a favor de que nossas peludas amas de leite sejam tratadas sem a dignidade que lhes cabe, mas rebanho feliz é mais difícil de digerir do que um copo de leite pasteurizado — mistura do leite de muitas amas infelizes. 

Logo depois me lembrei do que Luiz Felipe Pondé escreveu num de seus artigos: “A maioria das pessoas quer apenas comprar, divertir-se, ter uma autoestima alta, gozar livremente, não sentir culpa alguma; enfim, ter uma vida moral de crianças de dez anos de idade”. 

Gostaria que ele não tivesse razão, afinal não quero me identificar com tais pessoas. Também penso que as crianças de dez anos não merecem serem comparadas a tais, mas, tirando isso, acho que ele tem razão. Aplicada à indústria gastronômica e aos que fazem uso dela, a frase do Pondé faz sentido. Na indústria vejo um cinismo generalizado, disfarçado pela pecha da boa vontade com o meio ambiente e o bem-estar do consumidor, por parte de predadores vorazes tentando tirar vantagem dos incautos. Por outro lado, existe uma parcela considerável de consumidores, indiferentes a qualquer ética, que praticam descaradamente o hedonismo à mesa. 

Talvez algum leitor objete que é fácil fazer da gastronomia uma reflexão cultural ou moral, quando se está de barriga cheia. Mesmo assim não há como desconsiderar duas vertentes comuns ao nossos dias. De um lado, chefes de cozinha se ocupam em discutir novas técnicas de cocção, como a “baixa temperatura”, ou a retomada dos produtos “terroir”; por outro, muitos do campo acadêmico tentam fazer prevalecer a ideia, não menos tacanha, de que fora do enquadramento da fome falar de “comida” é sinônimo de “frescura”. Tal antagonismo não faz justiça a nenhuma das partes. 

Comer com qualidade é, sim, uma necessidade física, mas também uma necessidade sensorial, e a premissa de que os pobres comem por necessidade, e os ricos, por prazer é mais do que falsa. Por outro lado, tomadas as devidas proporções, tanto os de uma classe como da outra deveriam fazer do sentar-se à mesa não só um exercício de escolhas gustativas, mas também éticas. 

Quanto à indústria? Essa abandonou tal perspectiva e continuará a dar de ombros até que o desejo regulador do mercado consciente seja economicamente cada vez mais relevante, ou até que as classes menos favorecidas tenham um mecanismo político que as representem nas suas reivindicações, não só pela comida premente, de qualidade, mas por uma vida mais prazerosa. Até lá, o esturjão de onde é retirado o caviar, o atum do sushi de alguns ou o nosso “terroir” palmito jussara estará com seus dias contados.

Moqueca de Palmito Pupunha

INGREDIENTES:

1 kg de palmito pupunha cortado em cubos médios; 2 pimentões vermelhos, cortados em rodelas; 2 cebolas grandes cortadas em rodelas; 3 tomates maduros sem a pele cortados em rodelas; 2 dentes de alho laminados; ½ xícara de chá de óleo; sal e pimenta dedo-de-moça a gosto; 200 ml de leite de coco; 3 colheres de sopa de azeite de dendê; ½ litro de caldo de legumes 

PREPARO:

Disponha todos os ingredientes de forma alternada numa panela de fundo grosso (que possa ir ao forno) tampe e cozinhe em forno baixo por 2 horas. Se necessário, junte o caldo de legumes aos poucos para não deixar queimar.

Felipe Ciutat é chefe de cozinha, banqueteiro, consultor de gastronomia internacional e vegetariana. Email felipeciutat@gmail.com

INFORMAMOS QUE FELIPE CIUTAT NÃO É MAIS O CHEF DE COZINHA DA PADARIA GÊMEL