Viagem de um brasileiro a Porto

Porto, Portugal, junho de 2008, comoção nacional, a empolgação com os feitos da ‘equipa’ de futebol impregnava até os mais sisudos lusitanos. Olhos e demais sentidos voltados para a Suíça, uma das sedes da Eurocopa e onde desfilavam os novos heróis do orgulho pátrio. Por mais que procurasse, o fado não se fazia ouvir em parte alguma. Pelas ruas

Se pelas ondas do rádio, ávido procurava pelo soar tonitruante da guitarra, mas no turbilhão da catarse futebolística portuguesa não havia lugar para seu timbre melancólico. Ao invés do fado, eis que minha “primeira comunhão” cultural em terras do Velho Mundo se dá ao som do… reggae! Sim, caro leitor, junto a venezuelanos, portugueses, espanhóis, angolanos e outros brasileiros, sob as bênçãos de Bob Marley, tomava parte num banquete antropofágico na contra-mão do que imaginara nosso Oswald de Andrade.

Dezenove de junho, as atenções se volvem para Basiléia. Estamos já na etapa de quartas-de-final, alea jacta est, é a frase a sair da boca de alguns (bem poucos é verdade) milhões de Césares portugueses. O adversário, a Alemanha, tamanha tradição no jogo da pelota, mas desta feita um azarão frente aos intrépidos filhos de Camões. Mas em meu passeio pela orla do Douro, na histórica Ribeira, núcleo inicial de povoamento da cidade e área tombada pela Unesco como Patrimônio Histórico da Humanidade, pressinto uma ambivalência no entusiasmo dos que aguardam a transmissão do jogo por intermédio de imenso telão instalado quase às margens do rio: concomitante ao otimismo advindo com a performance do selecionado, uma atávica rede de complexos de natureza cultural parece povoar a imaginação dos presentes. Ao observador mais atento, pode-se perceber uma outra batalha que se insinua no íntimo daqueles espectadores e que se desenrola é verdade, por meio de seus antepassados, desde uma época que retroage ao próprio aparecimento do nobre esporte bretão: a imagem da glória e grandiosidade do país na expansão da cristandade e da civilização ocidental contrasta com o espectro da decadência, traço da “psicologia coletiva” portuguesa que aponta para um estágio de estagnação e atraso do país na confrontação com a “marcha” do desenvolvimento, que não é só de ordem econômica, mas também cultural, tecnológica, intelectual e cientifica, de outras nações do continente. Imerso nestes pensamentos, acompanho negligente o rolar da bola. O juiz apita: final da partida, o placar, 3 X 2 para os germânicos. A tristeza paira sobre o Porto, mas não há choro, afora algumas reações impetuosas, a melancolia é a protagonista naquela noite de fim de primavera. Retorno ao acanhado hotel em que me hospedara no centro da cidade, seu nome é sugestivo, a se considerar as divagações a que me entreguei horas atrás: Avis, Residencial Avis. Lá não estaria a me esperar uma realeza que entoara seu réquiem com a derrocada de Dom Sebastião, o Encoberto, nas areias do atual Marrocos, mas sim a legião de jovens espanhóis, as falantes norte-americanas de ascendência nipônica, o compatriota brasileiro residente em Londres, os dois casais de simpáticos franceses e a gentil camareira que me auxiliara na ingrata tarefa de arranjar o nó da gravata. O dia seguinte seria de trabalho, começaria enfim o congresso científico que estava na origem da razão de minha viagem à cidade. Era uma quinta-feira, noite de clima agradável, não resisti ao convite de meu companheiro de quarto para um passeio pelas redondezas. Como em dias anteriores, as ruas estavam quase desertas, não tive tempo de descobrir se era próprio da região central, mas o fato é que a diversão etílica naquelas paragens da noite portuense era conquistada com uma certa dose de sacrifício dos pés, da paciência e, last but not least, do bolso.  

Vinte e três de junho, o congresso chega ao fim, em cerca de aproximadamente 24 horas partiria para Madri e daí de volta a São Paulo. Havia o jantar de encerramento, porém, pouco cerimonioso, optei pela rua, afinal, era noite de São João, o padroeiro do Porto. A comparação com a festa de mesmo nome realizada no Brasil é uma tarefa árdua, até porque tais folguedos não são exatamente equivalentes nas diversas regiões da ex-colônia lusitana. Mas a festa foi divertidíssima, estupenda, a cidade ganhara um colorido inimaginável: fogos de artifício para os olhos, música para os ouvidos e vinho, bastante vinho para a alma.

A Eurocopa transcorria nos gramados suíços e austríacos, porém, o canto sedutor da integração continental, repousado aqui no brilho da conquista da Europa por intermédio do futebol cedera lugar ao impasse provocado por outros dilemas da mesma integração. Restara sua face pouco luzidia, refletida pela Irlanda e seu “não” ao Tratado de Lisboa, espécie de proposta de reforma da União Reforma; pela alta do preço dos alimentos, provocada pelo aumento do preço do barril do petróleo e os virulentos protestos dos transportadores daqueles gêneros, os caminhoneiros de lá. A empolgação se evadiu do território português, o sonho da redenção ficou no domínio da quimera. Foi embalar o delírio de seus vizinhos de península, com os sucessos da Fúria Roja e ainda do prodígio Rafael Nadal, que triunfara semanas atrás no saibro de Roland Garros e em pouco destronaria Federer na grama de Wimbledon. Mas essa, já é uma outra história, a ser contada por outros viajantes. 

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