Pascoal da Conceição

A trajetória artística do ator e diretor Pascoal da Conceição (62) sempre manteve um forte diálogo com a realidade do país. Nascido na Zona Leste da capital e radicado na Vila Mariana há 22 anos, ele participa ativamente de debates públicos e cobra uma postura mais presente da classe artística nas causas sociais. Nesta entrevista ao Pedaço da Vila, o vizinho fala sobre a atual mobilização estudantil contra o fechamento das escolas pelo Governo do Estado, opina sobre a educação e cultura brasileira, fala sobre sua paixão pelo teatro e de seus personagens e revela o que gostaria de fazer como diretor teatral

Pedaço da Vila: Antes de se dedicar integralmente ao teatro, você estudou Letras e até foi bancário. Quais os caminhos que o levaram aos palcos?
Pascoal da Conceição: Desde cedo eu gostei de teatro, brincava muito de atuar em festas familiares. No primário, a minha professora, Maria Teresa Ruth, sempre me escalava para participar das atividades cívicas que ocorriam na escola, para ler poemas, e me dizia: ‘vai Pascoal, você fala alto e decora muito bem o texto’. Foi nesse momento que passei a gostar mesmo de representar e a ter afinidade com o público. Quando eu comecei a estudar Letras na USP, descobri o curso de teatro da EAD ,— que na época nem era EAD ainda — e me transferi. Na época, ser ator era uma profissão considerada marginal. Os pais incentivam os filhos a seguirem profissões como advocacia, medicina, ou então serviços técnicos. Para mim, que vim de uma família pobre, medicina ou advocacia era muito distante, pois era caro. O pobre era destinado a ser mão de obra mesmo, não dava para sonhar com outras possibilidades. Eu trabalhei em escritórios, como office-boy, e depois passei num concurso do Banco do Brasil, incentivado por meus pais, onde trabalhei por 12 anos ,— até decidir me afastar para me dedicar ao teatro.

Pedaço da Vila: O que o incentivou a trocar uma carreira segura no banco pelo teatro?
Pascoal da Conceição: Resolvi deixar o banco para me dedicar ao teatro quando conheci o José Celso Martinez, que estava lutando pela permanência do Teatro Oficina, no Bixiga. Queriam derrubar o teatro e transformar o quarteirão todo num shopping. Na época eu fiquei pensando: “não pode derrubar um lugar de uma importância tão grande”. Se tratava de uma luta da cultura, da preservação. O teatro era muito mais generoso com o Brasil do que um shopping. Isso me tocou, pois eu sou um brasileiro, um cidadão. Gosto do Brasil e acho que tenho um dever moral de trabalhar pelo meu país. Deixei a carreira no banco em nome do teatro, da minha vocação, que é atuar e trabalhar pelo bem-comum. Eu gosto e acho importante fazer isso, se doar para fazer pelo próximo. Toda vez que atuo no coletivo eu acho que é um acerto de caráter. 

Pedaço da Vila: Apesar de ter vivido personagens marcantes ao longo de sua carreira, você ficou marcado pelo grande público como o ganancioso Doutor Abobrinha, do Castelo Rá-Tim-Bum… 
Pascoal da Conceição: Quando eu estava trabalhando no personagem Doutor Abobrinha, eu me inspirei muito em uma sobrinha que tinha nascido pouco tempo antes. Reparava nela, nessa coisa do eu, na coisa infantil de achar que tudo é seu. O Doutor Abobrinha é avarento, é uma criança que quer tudo para ela, não compartilha nada. A riqueza precisa ser compartilhada. Para você ser rico, todo mundo tem que ser rico, e a natureza, com toda a sua riqueza, nos ensina isso. A riqueza é fruto de uma certa infantilidade humana, e ela produz a miséria. Eu fiz o Doutor Abobrinha pensando no seu papel. Era uma brincadeira, mas por trás do personagem estava a minha crítica e discordância em relação ao modo como ele agia em relação a cidade, esse egoísmo que ultrapassa as relações humanas.
 

Pedaço da Vila: Fazer arte no Brasil continua sendo um grande desafio, principalmente quando o assunto é dinheiro. Esse foi um problema para você?
Pascoal da Conceição: Sempre foi um problema. O dinheiro, na verdade, é um falso problema para todos nós, ele não é verdadeiro. A vontade de sermos algo, ator, professor, músico, esse sim é verdadeiro. Não podemos trair o nosso desejo de fazer algo em função do dinheiro. Quando pintou o desejo de ser ator, eu nunca pensei em dinheiro, e sim no desejo e na alegria de seguir minha vocação. Vivemos numa sociedade em que as pessoas que tem grana gostam de jogar quem não tem na paranoia. A grana não significa muita coisa, a não ser uma espécie de poder estagnado, que não vai para frente nem para trás. O dinheiro é uma fruta bonita que fica apodrecendo. Uma pessoa potente, um artista potente, é de uma riqueza que não precisa de um carrão, de uma carteirinha. O  dinheiro é a máscara da canalhice para que as pessoas possam impor a sua vontade; a pessoa transa, namora, come com a grana, e com a grana submete o outro. Precisamos valorizar o ser humano, não o dinheiro. 

Pedaço da Vila: Você sempre teve uma forte participação nas causas sociais e culturais, e agora está se apresentando nas escolas ocupadas. O que o fez participar desse movimento?
Pascoal da Conceição: Foi bem intuitivo. Reorganização escolar é uma coisa aparentemente simples. Você tem um volume de 4 a 5 milhões de estudantes, você reorganiza os espaços para eles, coloca-os em outras escolas, sobram 94 espaços, e você faz um projeto social para esses espaços, que pode ser creches, asilos… Pensando de uma maneira bem-intencionada, você tem a sociedade a favor. Ocorre que essa reorganização tem interesses econômicos por trás, pois esses prédios ficarão vazios, permitindo que, mais cedo ou mais tarde, sejam negociados, já que são terrenos grandes, que servirão para movimentar um grande volume de dinheiro. Educação mesmo, na verdade, não existe. Agora, quando os estudantes se colocaram contra, querendo debater a reorganização, imediatamente, logo no primeiro dia, a escola Fernão Dias foi cercada por policiais. Eu vi aquilo e pensei: “nossa, que violência é essa!”. Eu achei que era importante, como cidadão, estar presente. Os policiais estão lá com gás lacrimogênio, cassetetes, armas… E isso é muito perigoso. Eu fiquei estarrecido porque a diretora e a polícia resolveram cortar a água, a luz, não permitiam entrar comida, obrigando os estudantes a deixar a escola. O que está norteando esse tipo de ação é uma coisa assassina. Como assim, cortar a água e a comida? Tipo um sequestro? Isso é uma atrocidade. Isso não está certo, não é possível. Era preciso ter alguém para conversar com os estudantes, não os sitiar. Eu fui lá para dizer: não é assim que se faz, não pode fazer desse jeito. 

Pedaço da Vila: E porque preferiu ir de Mário de Andrade e não como Pascoal da Conceição?
Pascoal da Conceição: Eu sou ator. E o que me coloca publicamente são os meus personagens, o Doutor Abobrinha, o Mário de Andrade… O Mário é um personagem que é ligado à Educação. Foi ele quem fez os primeiros parques infantis da cidade, ele que tornou popular as bibliotecas públicas. A presença do Mário de Andrade é muito importante neste momento. Se ele estivesse vivo, é lógico que estaria hoje nessas ocupações ao lado dos estudantes. Então, isso me dá muito mais verdade para fazer o personagem, dá mais força… Eu vou lá e falo como o Mário de Andrade. 

Pedaço da Vila: Falta uma postura mais atuante da classe artística brasileira em causas públicas como essa?
Pascoal da Conceição: O artista também tem uma responsabilidade pública, e não pode traí-la, precisar cumpri-la. A arte, de um jeito ou de outro, sempre irá servir a uma ideologia, sempre! É bom que o artista se coloque politicamente. Como eu já fiz em outros momentos, achei importante participar agora. Na arte, você se aproxima do personagem, conhece-o, para saber tratá-lo e, sobretudo a não ter medo dele. Assim ocorre na sociedade, com o governador. Precisamos chegar perto dele, pois é uma pessoa como nós, que erra e acerta. Se a gente acha que ele está errado, precisamos conversar sobre isso. A primeira coisa que o Geraldo Alckmin falou foi que essa ocupação é coisa política. Claro que é política! Tem que ser, a vida é política! Ele disse isso como querendo afirmar que a política é uma coisa que ele faz, mas as pessoas não podem fazer. A política está precisando da nossa participação. Como tem pouca gente participando, ela está se deteriorando, ficando como está. Precisamos de novas ideias, mais participação para superar essa onda de ressentimento e se mobilizar para melhorar o país.

Pedaço da Vila: Como tem sido a sua leitura dessas ocupações estudantis?

Pascoal da Conceição: Vejo como um importante gesto dos estudantes, mas isso diz respeito a muito de nós, que não somos estudantes. Eles estão fazendo isso, se descobrindo, mas eu fico pensando sobre o quanto nós não fizemos e temos que fazer por eles. Não se trata apenas de aplaudir os estudantes, precisamos participar. Como é que nós não tomamos essa iniciativa antes?  Eu, que estudei em escola pública, eu, que sei, assim como todos, como está a Educação no país, não fiz nada? As escolas no Brasil estão podres, os nossos professores estão ganhando pouco, é preciso dar mais atenção a isso. As ocupações me fizeram pensar em mim, na minha atitude, me levaram a mim a mesmo. Como é que eu permito, como ator, como cidadão, que a polícia faça isso com os estudantes. Como permito que esses raciocínios nazistas, fascistas, sobrevivam em minha cidade, em meu país. Esse raciocínio não pode se proliferar. A vida pública precisa de nossa participação todos os dias. O divertido da vida é participar pelo bem comum. O que é cômodo, estagnado, mata a vida. 

Pedaço da Vila: Você tem uma longa trajetória no teatro como ator, mas também já dirigiu espetáculos teatrais. Tem algum trabalho que gostaria de levar ao palco?
Pascoal da Conceição: Eu quero muito montar o espetáculo Orestéia, de Ésquilo, que é uma peça linda, uma trilogia. É um espetáculo sobre vingança num momento em que a Justiça era uma questão particular. Uma história grega em que sucessivos assassinatos familiares e traições colocam Orestes diante de um júri popular formado por velhos anciões. Ele, que havia matado a mãe, estava atormentado. Os anciãos discutem e a decisão, se ele iria viver ou morrer, empata. A Deusa Minerva, Atenas, é chamada para decidir. E ela diz o seguinte: toda vez que uma decisão significar uma vida humana, a gente vai decidir pela vida humana, então Orestes viverá. Ésquilo inaugura um novo momento da relação humana, pois a decisão deixa de ser privada e familiar e passa a ser pública. A partir daquele momento, quem irá orientar a escolha entre viver ou morrer será a vida, sempre. É um espetáculo sobre a construção de um novo modo de pensar.