O escritor Marcelo Jucá
O vizinho Marcelo Jucá, 33 anos, estreou na literatura infantil em 2014 com A Coleção de Maya. De lá para cá foram mais de cinco obras publicadas; a última, Hora da Soneca, foi lançada este mês na Livraria NoveSete. A seguir, o autor fala sobre o novo livro, conta sobre seu processo de criação e quais os temas que embalam as suas histórias. E mostra como foi caminho até ser editado: “É preciso muita paciência e insistência para publicar um livro no Brasil”
Pedaço da Vila: Os livros fizeram parte da sua infância? Como foi o acesso às primeiras leituras?
Marcelo Jucá: A minha infância foi marcada pelos desenhos animados na TV. Eu era bastante fã de As Aventuras e Tintim e Scooby-Doo. A minha porta de entrada para a leitura se deu com os gibis. Eu até lia a Turma da Mônica, mas o que me formou mesmo foram as revistas em quadrinhos de super-heróis, especialmente as do Homem-Aranha, meu favorito. Eu sempre gostei dele porque ele não é perfeito, tem problemas em todas as áreas da sua vida e enfrenta tudo com muito bom humor. Mesmo que eu não entendesse isso naquele momento, o humor sempre me fascinou. A partir das leituras de gibis eu saltei para os livros infantis como Meu Pé de Laranja Lima e os livros do Pedro Bandeira. Apesar do gosto pelas histórias, música, cinema, ilustrações, eu demorei muito para me transformar num leitor. Posso dizer que isso aconteceu na vida adulta. E foi um caminho bastante solitário. Em casa eu não tinha quase nenhum livro. O máximo era o jornal no fim de semana e as revistas que eu consegui após convencer meus pais a fazer uma assinatura mensal. Era o que eu tinha para ler, pois o gosto pela leitura eu sempre tive, mas o acesso era restrito. A escola acabou sendo a minha porta de entrada para os livros. Muito raramente eu frequentava a Biblioteca Viriato Corrêa. O meu contato com os livros de modo mais frequente ocorreu quase no momento de entrar na faculdade. Foi então que a literatura passou a fazer parte de modo permanente do meu dia a dia.
Pedaço da Vila: Mas de onde surgiu tanta imaginação?
Marcelo Jucá: Eu sou filho único e desde cedo criava muitas histórias. Sempre desenhei, gostava de imitar os traços das revistas. Em casa, sozinho, eu vivia basicamente dos desenhos animados na TV e das ilustrações. Eu adorava desenhar. Queria ser desenhista. Mas, por falta de incentivo, esse desejo ficou apagado na entrada da adolescência. Eu só fui perceber o quanto eu realmente gosto de ilustração com a literatura, há poucos anos, vendo os trabalhos dos meus colegas ilustradores. Eu sempre tive uma ótima imaginação e era uma criança muito curiosa, queria conhecer o máximo possível. Eu tive a sorte de pertencer a uma geração que cresceu brincando na rua com os amigos. O brincar sempre foi uma experiência muito rica.
Pedaço da Vila: Em que momento passou a escrever as suas histórias?
Marcelo Jucá: A escrita se desenvolveu em paralelo à leitura. Na escola eu sempre gostei muito de redação. De um jeito ou de outro, a imaginação para criar sempre esteve comigo. Quando eu comecei a estudar jornalismo, foi uma forma de ir ao encontro da escrita. Mas demorou muito para eu entender a minha relação com a palavra. Eu não tive, nem dentro nem fora de casa, aquela pessoa para dar um empurrãozinho. Fui sozinho, meio no chute. Na faculdade eu sempre tive vontade de fazer uma revista, escrever histórias, mas, naquele momento, me faltava a clareza sobre isso. Enquanto eu fui me formando como leitor eu também fui me formando como escritor. Na faculdade, eu fui moldado para ser jornalista, e eu percebi que isso estava matando a minha imaginação. Os textos precisavam ser concisos e diretos, e eu ficava fabulando, fazendo mil referências.
Pedaço da Vila: Em 2013, depois de quatro anos trabalhando como jornalista, você decidiu se dedicar à carreira de escritor. Como foi essa transição?
Marcelo Jucá: Quando eu troquei o jornalismo pela literatura infantil, senti uma grande dificuldade porque tudo o que a minha imaginação permitia parecia ser bobeira. Foi um processo de alguns meses para eu me permitir a criar de maneira livre, me desprender da secura jornalística. Para isso, eu assistia muitos filmes, desenhos e lia muito. Eu precisava soltar a minha imaginação para criar. Após quatro anos de jornalismo eu já estava de saco cheio. Foi uma questão de momento. Eu tinha acabado de sair da Folha de S.P e estava concluindo o meu mestrado. Como eu já escrevia sobre literatura infantil como repórter, as coisas foram clareando na minha cabeça. Aos poucos tive a certeza de que queria ser escritor. Essa mudança não teve nada de romântica, até porque o mercado literário é insano e é preciso ter um pouco de loucura para se lançar nele. Por correr atrás, esforço e um pouco sorte, as coisas aconteceram rápidas.
Pedaço da Vila: Qual foi o caminho até publicá-las?
Marcelo Jucá: Assim que decidi investir na ficção, eu sentei, no dia seguinte, e comecei a escrever de uma maneira insana, buscando histórias. Eu levantava cedo, ligava o computador e só desligava ao anoitecer. Pausava apenas para comer. Foi assim até sair um texto que eu achasse que renderia alguma coisa. Em quatro meses eu consegui escrever muitos textos. Então eu fiz uma pesquisa de todas as editoras infantis que publicavam obras com o mesmo perfil do que eu escrevia e comecei a mandar as histórias por e-mail para analisarem. Uma amiga me disse que a editora Pipoca estava buscando autores. Mandei meu texto e ele foi aprovado. Aos poucos eu comecei a receber respostas positivas de outras editoras de textos que eu nem lembrava mais que tinha mandado. As coisas foram acontecendo de uma forma muito natural. Publicar um livro no Brasil é um exercício de paciência e sobretudo de insistência. Como eu não tinha um agente literário — e ainda não tenho — tive que fazer tudo.
Pedaço da Vila: Seu novo livro, Hora da Soneca, acabou de ser publicado. Qual é o enredo?
Marcelo Jucá: Ele foi lançado em janeiro aqui na Livraria NoveSete, que é um espaço maravilhoso e uma referência em literatura infantil. Nesse livro eu trabalhei bastante a rima, a musicalidade das palavras. Ele nasceu de uma forma curiosa. Certo dia eu sentei para escrever e acabei cochilando. Achei engraçado e pensei numa história a partir disso, só que com animais, brincando com os lugares inusitados onde eles costumam tirar uma soneca. O livro não tem um protagonista. É uma viagem por diferentes paisagens para despertar a imaginação da criança. Enquanto escrevia o livro, eu também compus algumas músicas para cantar com as crianças.
Pedaço da Vila: O humor é um elemento sempre presente em suas histórias.
Marcelo Jucá: Sim. Os meus primeiros textos caíam para um ideal de final feliz, de tudo vai dar certo; eram açucarados. Aos poucos eu fui encontrando o meu estilo e comecei a arriscar mais pelo lado do humor. Nesse caminho de amadurecimento, comecei a perceber o humor na minha vida desde a infância, quando lia o gibi do Homem-Aranha, depois no jornalismo (sempre brincava, escrevia com a ironia), e, mais tarde, no meu mestrado, que teve como tema o riso a partir de várias correntes filosóficas. Além disso, percebi que a minha aproximação das crianças sempre foi por meio de brincadeiras. Então, quando eu descobri a importância do humor nos meus textos e me permiti deixa-lo transbordar, a minha literatura fluiu.
Pedaço da Vila: Você disse que sempre gostou de ilustrações. Como escritor, você participa da escolha de quem irá ilustrar as suas histórias?
Marcelo Jucá: Eu não participo ainda, infelizmente. Até hoje, no meu caso, as editoras já vêm com uma ideia pronta de quem irá ilustrar. Em alguns casos a editora me manda a história com as ilustrações prontas e eu dou o ok; já em outros, ela apresenta o trabalho do artista e o sugere. Mas ainda não aconteceu de partir de mim a indicação de um ilustrador ou ilustradora. Eu gosto muito das ilustrações dos meus livros, todas foram muito bem feitas.
Pedaço da Vila: Por meio de enredos simples você aborda temas ligados ao imaginário das crianças e suas relações com o outro, como a aceitação…
Marcelo Jucá: Eu descobri que o riso é um caminho da minha criação, mas eu ainda estou em processo de construção do meu estilo e tenho feito muitas experiências de histórias, em termos das questões dos temas. Por enquanto apareceram bastante animais em minha literatura. Eu amo os animais, acho que eles dão histórias divertidas. Eu ainda estou descobrindo novos temas. Eu sempre tento buscar temas universais que, ao mesmo tempo, são individuais e íntimos. Todos os meus livros, de uma forma ou de outra, tratam de relações humanas, a questão da aceitação, da família, da sociedade, relação com a morte, com a dor, com os prazeres, e da relação com o outro. A partir dessas relações, eu faço desfilar as histórias.
Pedaço da Vila: Seu primeiro livro, A Coleção de Maya, foi lançado exclusivamente na versão digital. Outros, Meu Cãopanheiro eO que você quer ser quando comer?, estão nas duas versões. Como você analisa o livro digital hoje?
Marcelo Jucá: Quando recebi o convite para publicar A Coleção de Maya na versão digital, eu tinha acabado de ler o meu primeiro livro digital e estava começando a me aprofundar sobre esse universo. Queria entender o que era uma leitura digital. Eu achei fascinante perceber que eu poderia trabalhar esse lado do livro. Pesquisei como o livro digital estava sendo visto na Europa, nos Estados Unidos, na Índia… A partir desse material de pesquisa eu comecei a fazer cursos sobre o assunto. Fazer um livro na versão digital é tão caro quanto o impresso. As pessoas costumam ter a ilusão de que é mais barato. Os primeiros preconceitos sobre a leitura digital estão passando. Há muita gente que precisa descobrir o livro digital. Hoje o acesso está muito mais fácil e ele entrará cada vez mais em nosso dia a dia.
Pedaço da Vila: Em cinco anos você publicou seis livros. Eles são encontrados em bibliotecas públicas?
Marcelo Jucá: Alguns. Esse é um trabalho que parte mais da editora e o que estão nas bibliotecas foram por meio de doações. Eu acabei doando alguns livros meus nas bibliotecas em que trabalhei como educador para que as crianças pudessem conhecer e ter uma referência, pois sempre me cobravam — tinham muita vontade de conhecê-los. Eu por receio, temia parecer exibido e não levava meus livros. Mas, como foi um pedido que partiu das crianças, eu acabei levando. Eu gostaria que eles estivessem em todas. Já combinei com as bibliotecas onde eu atuava e, ao fim desses lançamentos, quero voltar lá para fazer uma oficina com as crianças. Acho extremamente importante esse contato.
Pedaço da Vila: A literatura o aproximou das crianças. Como tem sido ministrar oficinas e ampliar esse contato?
Marcelo Jucá: É um processo que está intensificando-se cada vez mais e é incrível. Fazer literatura no Brasil é muito difícil, principalmente a infantil. Acho uma pena ver, mesmo em lançamentos de autores consagrados, o número pequeno de crianças – é uma tristeza. O que realmente me aproximou e me fez ter uma vivência diária com as crianças foi o trabalho de educador. Eu trabalhei bastante com crianças das periferias, que vivem em outro universo. É muito bom sair da caixinha da classe média.
Pedaço da Vila: E quais as diferenças entre as crianças de classe média e da periferia?
Marcelo Jucá: Na periferia os problemas estão mais na cara. Eles existem em todas as classes sociais, mas, lá, parece ser mais escancarado. As crianças estão menos protegidas e aprendem as dores muito cedo. Apanham mais da vida e não conseguem frequentar uma escola, não têm um casaco, não têm comida. Se a escola é um ambiente de escape para uma criança de classe média, para a criança da periferia acaba não sendo. É um cenário muito difícil. O acesso a tudo é muito restrito. Os pais levam uma vida muito dura. Precisam cumprir uma jornada de trabalho absurda para ganhar o mínimo. Tem que atravessar toda a cidade para trabalhar e não conseguem ficar com os filhos. Para as crianças da periferia, o preço de um livro é a refeição do dia. Falta muito escape artístico para elas. Elas têm apenas a televisão. E não é por acaso que a maioria quer ser jogador de futebol, pois é o que podem fazer ali na rua, sem custo. E o que o País, o Governo Estadual e a Prefeitura estão fazendo para mudar isso? O Brasil repete o mesmo erro há décadas.