MARINA ALONSO GUIMARÃES

Ela nasceu e cresceu no pedaço. Deficiente visual, foi educada para ter autonomia e, embora tenha tido dificuldades de encontrar uma boa escola, formou-se e hoje é funcionária pública. Desde os 10 anos faz aulas na Associação de Ballet de Cegos Cia Fernanda Bianchini e está se preparando para estrear, no dia 26 deste mês, o mais novo espetáculo: Dom Quixote. A seguir, ela fala sobre sua vida, preconceitos, a dificuldade de andar por nossas ruas, além do grande prazer de ser bailarina.

Pedaço da Vila: Sua deficiência visual é de nascença?

Marina Alonso Guimarães: Nasci de seis meses e o oxigênio da incubadora, onde fiquei 47 dias, queimou minha retina.  Quando eu era pequena ainda enxergava cores e formas, conseguia pegar objetos próximos. Mas com o tempo não consegui ver mais nada, e hoje não me recordo direito, pois não tenho certeza de minhas lembranças. Por exemplo: penso no azul, mas não sei se é o azul exatamente — e não terei como saber, já que cor não se explica. Quem nunca viu a claridade não sabe como ela é… Não tem como saber, nem imaginar.

P.daVila: Desde quando você mora na Vila Mariana?

M.A.G.: Desde que nasci. Muita gente me conhece, ando bastante pelas ruas. Se por um lado é fácil, pois recebo muita ajuda, por outro as calçadas são muito ruins, faltam semáforos sonoros… E como já disse, nasci prematura e não gosto de esperar! (risos)

P.daVila: Nos sonhos você vê imagens?

M.A.G.: Vejo o geral, nunca na minha vida consegui ver detalhes.

P.daVila: Você teve uma criação muito diferenciada?

M.A.G.:  Desde que minha mãe se deparou com a deficiência, sempre buscou informações. Ela decidiu optar por me fazer independente, sempre me deixou livre para fazer o que eu quisesse. Criança tem de brincar e pode cair e se machucar. Isso faz parte da infância, e minha mãe não me privou, sempre teve essa compreensão — lógico que com o maior cuidado. Imagine, eu adorava brincar no trepa-trepa, andar de patins e de bicicleta!

P.daVila: E as outras pessoas, como se relacionam com você?

M.A.G.: Só quando as pessoas se familiarizam com um deficiente o tratamento se torna natural. Dá até pra esquecer a deficiência — minha mãe esquece, meu namorado também! Por outro lado, gente que não está acostumada e não tem informação sobre pessoas que têm alguma espécie de deficiência, achando que somos frágeis, nos trata com pena e fica se comunicando no diminutivo. Acredito que melhor seria se elas tratassem os deficientes como outra pessoa qualquer. Afinal, eu tenho discernimento! Vou dar um exemplo: como ando muito sozinha pelas ruas, muitas pessoas, a maioria de igrejas, me param para me dar CD, foto,  dizendo que isso me fará mais feliz. Tem gente que não entende que sou uma pessoa como outra qualquer: tem dia que estou pensativa, tem dia que estou triste, mas me considero uma pessoa feliz! Sou igual à maioria das pessoas!

P.daVila: Onde você estudou?

M.A.G.:  Até o 9º ano do Fundamental II, estudei no Instituto Padre Chico, um colégio especializado. Lá aprendi a ler em braile, mexer em computador e a andar sozinha na rua. Depois fui para um colégio público, o Caetano de Campos, pois no Instituto Padre Chico não havia Ensino Médio. No colégio estadual foi horroroso, pois o professor não estava preparado para lidar com deficientes. O que salvava era a sala de inclusão, com um professor especial que sabia braile e transcrevia nossas provas para os outros professores — além de nos ajudar.

P.daVila: Você tem informação se isso melho-rou hoje em dia?

M.A.G.: Acredito que não, pois esse tipo de treina-mento deve ser ensinado na faculdade de Pedagogia, Letras, Matemática. Para se ter uma ideia, fui para o Caetano de Campos, uma escola pública, porque nenhuma escola particular me aceitou, alegando que não estava preparada para atender um deficiente.  Acredito que a falta de informação gera o preconceito — pré-conceito daquilo que você não sabe o que é nem como é.

P.daVila: E como diminuir preconceitos?

M.A.G.: Com mais campanhas e informações por meio dos meios de comunicação.

P.daVila: Você trabalha em quê?

M.G.A.: Sou funcionária pública, trabalho no Juizado Especial Cívil.

P.daVila: Quando o balé entrou na sua vida?

M.A.G.: Na época em que estudava no Instituto Padre Chico. Em 1996 tiveram início aulas de balé com a professora Fernanda Bianchini, que também é fisioterapeuta. Como eu sempre topava fazer as coisas para as quais me convidavam, aceitei fazer as aulas, sem saber direito o que era. Tinha algumas amigas que faziam balé, mas eu não dava muito valor. Aí, comecei a aprender e não parei mais!

P.daVila: O que o balé mudou em sua vida?

M.A.G.: Para falar a verdade, eu tinha apenas 10 anos quando comecei a fazer as aulas, então não sei. Na época fazia natação, mas, com o tempo, parei para me dedicar somente ao balé. O que meu professor de mobilidade dizia era que as meninas que fazem balé têm mais confiança e equilíbrio. Eu sinto isso.

P.daVila:  Foi coincidência a Associação de Ballet dos Cegos Fernanda Bianchini estar localizada aqui, no pedaço?

M.A.G.: No final de 2003, o grupo encerrou suas atividades na Instituição Padre Chico — época em que começamos a nos apresentar. Isso fez com que o trabalho da Fernanda crescesse, pois muitos deficientes visuais que não estudavam no colégio tiveram interesse de fazer balé. Então, meus pais, com os pais de outras alunas, começaram a procurar outro espaço para dar continuidade às aulas. E eles encontraram o espaço na rua Humberto I, nos fundos da Igreja São Bonifácio. Em 2004, a associação de Fernanda Bianchini iniciou suas atividades aqui, na Vila Mariana.

P.daVila: Quando o Ballet dos Cegos foi descoberto pela TV?

M.A.G.: Foi aos poucos. A grande matéria que impulsionou a mudança e o crescimento da associação foi a do Jornal Nacional, em 2003. Fomos convidados a fazer uma apresentação para o Ballet da Dinamarca, que estava no Brasil. O JN foi para fazer a matéria do Ballet da Dinamarca, mas deu o maior destaque para nós! Depois disso, inúmeras matérias, em várias emissoras e revistas, foram feitas sobre a associação. Em 2006, por conta da novela América, em que havia uma personagem cega que fazia balé, a associação virou notícia novamente. Isso rendeu à Fernanda alguns convites; um deles foi para ir ao Faustão. Nesse dia, a produção do programa realizou um sonho da Fernanda — e nosso também: de apresentar o balé no Teatro Municipal. A matéria foi um sucesso; tanto que, além de conseguirmos alguns patrocínios para a associação, fomos novamente convidados para ir ao Faustão. Muita coisa boa aconteceu a partir daí… Recebemos a visita de Mikhail Baryshnikov e, depois, da Cia de Nova YorK Person’s Dancing. Também tivemos a oportunidade de dançar com Ana Botafogo e a Orquestra de João Carlos Martins, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Já havíamos nos apresentado com o maestro, mas dessa vez foi especial! Ah! Este ano, dançamos pela primeira vez fora do Brasil: em Buenos Aires.

P.daVila: Como a Associação de Ballet dos Cegos se mantém?

M.A.G.: Atualmente, com as apresentações: uma parte do cachê vai para os bailarinos, a outra para a associação, além das contribuições de pessoas físicas e jurídicas. Sempre buscamos patrocínio, e quem quiser ajudar, basta entrar no nosso site www.ciafernandabianchini.org.br ou ligar para o telefone 5084-8542.

P.daVila: Esse mês vocês vão estrear um novo espetáculo. Fale sobre ele.

M.A.G.: Baseado no capítulo 20, do segundo volume de Dom Quixote, a obra é um conjunto de coreografias que remontam à epoca desde 1740. A versão mais famosa e duradoura é de 1860, com a música de Ludwig Minkus e coreografia do francês radicado na Rússia, Marius Petipa – embora companhias do mundo inteiro até hoje façam suas próprias adaptações. No nosso caso, além da Fernanda Bianchini, outros 7 coreógrafos adaptaram a obra. 

P.daVila: A estreia será dia 26 de novembro. Você está com aquele friozinho na barriga?

M.A.G.: Estrear sempre é muito bom! É a primeira vez que vamos estrear um trabalho que ensaiamos o ano inteiro. E sair do palco satisfeita é a recompensa de tantos ensaios durante tanto tempo, além de incentivar a gente a fazer cada vez melhor! Convido a vizinhança a ver nosso trabalho: dia 26 de novembro, no Teatro Brigadeiro. Os ingressos (20 reais) podem ser adquiridos na rua Humberto I, 298 ou no site: www.ciafernandabianchini.org.br.