Luiz Carlini

Para apresentar o guitarrista Luiz Carlini é só lembrar o solo da música “Ovelha Negra”, de Rita Lee. O líder do Tutti Frutti, que acompanhou Rita no começo de sua carreira nos anos 70, mantém a banda até hoje, toca e cria solos para artistas consagrados e  é convidado para abrir shows como o dos Rollings Stones e Johnny Winter.  No estúdio que montou com o filho Roy Carlini na Vila Mariana ele conta ao Pedaço da Vila sobre a longeva carreira,  a mágica história de sua guitarra e a experiência de trabalhar suas músicas agora no “reino digital”.

Pedaço da Vila: Como foi o início da sua carreira?

Luiz Carlini: Eu nasci na Pompeia, vizinho dos irmãos Sérgio e Arnaldo, dos Mutantes.  Fui criado com ele, íamos juntos à escola.  O irmão mais velho deles construía instrumentos musicais, e muitos artistas frequentavam a casa dos irmãos Baptista: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Eduardo Araújo, que iam comprar instrumentos, pois não havia instrumentos no Brasil. Foi ali que surgiu Os Mutantes, uma banda dos anos 60 com um som psicodélico, muito experimental. Eu tinha 17 anos nessa época, e veio o Woodstock. Quando eu assisti ao filme sobre o festival decidi que era isso que queria fazer da vida. Vi o filme umas cinquenta vezes, decorei todas as músicas, todas as falas. Ouvi o disco até acabar. Comecei a tocar na época da cultura hippie, época em que tivemos acesso a todas as informações culturais dos Estados Unidos e da Europa: escritores, cantores, pintores, festivais. Por isso, eu reverencio muito os anos 1970, pois foi a década das grandes influências. Os anos 1970 são constantemente revisitados pela música, moda, artes em geral. A arte dos anos 70 possui um valor muito precioso, a  sonoridade da música era diferente: não tinha tecnologia, mas tínhamos muita coragem!

Pedaço da Vila: Quando começou a tocar com a Rita Lee?

Luiz Carlini: Em 1973, quando ela saiu dos Mutantes – a banda tinha entrado numa trip de rock progressivo. Era o auge do LSD, momento em que o mundo passou do preto e branco para o colorido. Eu tinha nessa época uma banda que se chamava Lisergia, derivado do meu nome, Luiz Sérgio, Lisergia (risos). Quando eu comecei a tocar, já comecei também a compor. A Rita Lee sempre morou na Vila Mariana, na Rua Joaquim Távora e vinha, aqui, ensaiar. A foto do álbum Fruto Proibido foi tirada na casa dela. Eu e a Rita tínhamos bastante material e minhas músicas foram bem aproveitadas no início do Tutti Fruiti.

Pedaço da Vila: Qual foi a sua reação com a saída da Rita Lee da banda?

Luiz Carlini: Continuar o Tutti Frutti com outros músicos. Passou muita gente pela banda. Prosseguimos tocando música autoral. Nessa época, o cantor foi o Simbas, do Casa das Máquinas. Em 1980, lançamos um disco e o Nelson Motta me convidou para montar a  banda fixa da casa de shows que ele iria abrir em São Paulo. Ele disse: “adapte a Tutti Frutti para tocar na noite, com duas mulheres nos vocais, três metais …Deixa a banda grande”. A casa era a Pauliceia Desvairada, no Top Center, na Av. Faria Lima. Foi o Nelson Motta que me colocou para tocar na noite e foi um sucesso! Depois tocamos no Bar Vitória, no Latitude 2001 — um navio que a gente fez tremer em plena Av. 23 de Maio! O Tutti Frutti passou por várias fases, deu uma parada e voltou com outras formações. Meu filho é músico e também toca na Tutti Frutti. Ele mora na Vila Mariana onde fica nosso o estúdio. Nos últimos oito anos, tocamos muito, até que faleceu o baixista Mister Rufino, um amigo e integrante da banda desde o início.

Pedaço da Vila: É verdade que você tem uma guitarra mágica?

Luiz Carlini: É a guitarra que uso até hoje… Eu queria comprar uma Gibson Les Paul. Como a Rita Lee ia viajar para Nova York, pedi para ela comprar uma para mim. Expliquei o modelo e as lojas onde ela poderia encontrar o instrumento, que custava trezentos e poucos dólares. Meu avô me emprestou o dinheiro e depositei para ela retirar no Citibank. Depois de 15 dias de ansiedade, fui esperá-la no Aeroporto de Vira Copos. Quando ela desceu do avião, não tinha nada em suas mãos; ela retirou todas as malas e eu não vi a guitarra. Ela me contou que o dinheiro não havia chegado. Fiquei péssimo, estava sem dormir esperando…  No dia seguinte, viajamos para o Rio de Janeiro para gravar o disco Atrás do Porto Tem Uma Cidade. Eu estava arrasado sem a minha guitarra. À noite fui passear pelos bares cariocas e saiu um cara do meio da multidão e me disse: “do you wanna buy a Gibson Les Paul guitar? “ (você quer comprar uma guitarra Gibson Les Paul?). Eu nunca esqueci essa frase…  Eu disse: “yes, of course! “ (sim, claro!). A guitarra estava num hotel na Rua Visconde de Pirajá e fui com ele até lá. O rapaz era um compositor austríaco que comprou a guitarra em Londres, e, ao chegar ao Rio de Janeiro, torrou o dinheiro que precisava para ir à Argentina. Por isso queria vender a guitarra. Isso era num sábado e combinei o negócio para segunda-feira de manhã. Não dormi mais (risos). A guitarra era do modelo e da cor que eu tinha pedido para a Rita comprar! O cara nunca tinha me visto! Segunda-feira cedinho, eu peguei o ticket do depósito e fui para o Citibank, esperei o banco abrir. Quando o gerente chegou, contei toda a história e ele foi procurar o dinheiro por telefone — na época, você discava o zero e demorava meia hora para voltar. No fim, achou meu dinheiro! Fui correndo para o hotel comprar a guitarra, dei tudo o que tinha no bolso para o músico austríaco. Desci as escadas correndo e encontrei o Ezequiel Neves. Contei para ele que tinha comprado uma guitarra igual à do Jimmy Page, ele achou ela demais, me pagou um almoço e ainda me deu a grana do ônibus para eu voltar. Atrás da guitarra, achei uma inscrição de I Ching e, já em São Paulo, fui falar com o artista plástico Roberto Campadello, que conhecia bem o assunto. Ele disse que a inscrição dizia que a guitarra foi enviada para mim, era para ser minha. O símbolo estava ali para que o instrumento chegasse até mim! Ela demorou a chegar, mas era minha. O solo de Ovelha Negra foi gravado com essa guitarra.

Pedaço da Vila: Considerado o melhor solo do rock brasileiro….

Luiz Carlini: Mesmo com o disco gravado e mixado, analisando a música “Ovelha Negra”, percebia que estava faltando alguma coisa. Pensei tanto num solo de guitarra para o fim da música que sonhei com ele e acordei assobiando. Quando contei no estúdio a minha ideia, escutei: “você está louco? A música está ótima, não precisa de solo nenhum!” Todos foram contra a ideia. Falei de novo, insisti; foi só na terceira vez, já de madrugada, que o produtor pediu para eu mostrar. Quando eu terminei o solo, todos acharam muito bom e ele foi gravado de primeira! A música estourou nas emissoras de rádio. Todo mundo aprendeu a assobiar o solo, feito com meia dúzia de notas. Isso foi em 1975. Nos shows, todo mundo ficava esperando o solo, o que me dava grande responsabilidade — poderia decepcionar o público. Aprendi muito com isso, como músico e como pessoa. Fiquei observando o poder da música. Na nossa primeira turnê, em Belém do Pará, vi uma pessoa local assobiando o solo. Essas informações foram importantes para a minha formação, fundamental para o meu conhecimento. Sou guitarrista melódico, penso bastante, gosto de criar. Agora vou gravar um solo para o disco novo da Blitz. Guitarrista tem que tocar para o público, não para os outros guitarristas. No Brasil há uma comparação, meio infantil, de guitarristas. A arte é incomparável.

Pedaço da Vila: “Ai, ai meu Deus, o que foi que aconteceu com a música popular brasileira? “, diz um trecho de “Arrombou a Festa” (1976),  parceria sua com a Rita Lee. Quarenta anos depois, como vê a música popular brasileira?

Luiz Carlini: Se já falávamos nisso em 1976, era porque já sentíamos um débito cultural — imagine hoje? A cultura foi para o saco! Toquei com muitos artistas, como o Erasmo Carlos, com quem fiz vários discos; toquei com verdadeiros poetas da música, como Guilherme Arantes. Hoje vemos pessoas cantando qualquer coisa e dançando barulho, e todo mundo achando que é músico. O mundo anda, os valores mudam. Logica-mente existe um termômetro para avaliar alguma coisa e saber que aquilo tem pouco valor cultural.

Pedaço da Vila: Que bandas você costuma ouvir?

Luiz Carlini: Eu ouço gente morta (risos). Sou fã de Johnny Winter, do Keith Richard dos Rolling Stones. Eu abri o show dos Stones com o Ultraje à Rigor, no Maracanã. Eu tirei uma foto com eles! Agarrei o Keith, falei um monte para ele (risos). Eu abri também dois shows do Johnny Winter, um no Rio e outro em São Paulo.

Pedaço da Vila: Você é de uma geração que não dispunha de tecnologias. De que modo, para o bem ou  mal, a tecnologia revolucionou o rock?

Luiz Carlini: No estúdio, claro, a gente usa a tecnologia digital, ela resolveu muita coisa. Mas no nosso estúdio a bateria é acústica, não é eletrônica. Gostamos da sonoridade dos anos 1970. Logicamente, as edições digitais são fantásticas. Eu fiz um curso para entrar no reino digital, aprendi a fazer milagres! A tecnologia deixou os músicos mais vagabundos. Se alguém errou um solo, corrige-se com os programas. Quando eu comecei a tocar não existiam essas falhas que podiam ser corrigidas, não dava para remendar. Ouvia os discos do Johnny Winter, os caras que eu gostava, solando e errando alguma nota, e pensava: como isso foi para o disco? Sabe por quê? Porque ele não vai perder esse momento de tocar com o coração. Nisso sou totalmente tolerante.  Às vezes, estou ouvindo uma música no rádio com atenção e percebo que o cantor está lendo, a música está fria… Ouvindo o som da guitarra dá para sentir o temperamento da pessoa que está tocando — a música entrega!