Jacqueline Moraes Teixeira

Graduada em Teologia pela Faculdade Batista e Universidade Presbiteriana Mackenzie, a doutoranda em Antropologia Social pela USP atua como pesquisadora assistente no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), aqui no pedaço, onde desenvolve estudos sobre educação e religiões contemporâneas. Nesta entrevista ao Pedaço da Vila, Jacqueline Moraes Teixeira fala sobre a relação entre religião e Estado, destaca a presença da religião na política e seu discurso fundamentalista, explica o crescimento das igrejas neopentecostais no país e aponta um momento importante nas relações interrreligiosas

Pedaço da Vila: Há quanto tempo você estuda as religiões contemporâneas e qual é a sua linha de pesquisa?

Jacqueline Moraes Teixeira: Eu comecei a estudar quando estava na graduação, em 2007, dentro do curso de Ciências Sociais. Tudo começou com um projeto de pesquisa sobre a relação entre religião e saúde, e como se dava essa relação. A todo o momento, minha pesquisa esteve relacionada também em pensar as denominações evangélicas no Brasil e o seu crescimento. Eu sou de uma família de tradição muito religiosa, protestante; então, sempre me interessei por religião, pois era muito importante em minhas relações familiares. 

Pedaço da Vila: A forte influência exercida pelo pensamento religioso nas relações sociais tem se tornado uma das características centrais deste início de século 21. Essas grandes religiões caminham em comunhão com os anseios da sociedade contemporânea?

Jacqueline Moraes Teixeira: Sim e não… De alguma forma, a religião, tomando como exemplo o segmento evangélico, que é bastante difundido e que tem muitas diferenças, pois são milhares de denominações, trabalha questões que servem de apoio às pessoas mais carentes, moradores de periferias de grandes centros urbanos como São Paulo. Na maioria dos casos, essas áreas são carentes de políticas públicas e contam com a ajuda da igreja, que acaba prestando alguns serviços sociais, o que faz com que ela tenha um papel de maior relevância para essas pessoas. Então, é possível perceber, no Brasil, uma relação muito forte dessa emergência da Classe C com o movimento teológico, a chamada teologia da libertação, algo muito praticado por igrejas neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus.

Pedaço da Vila: Nos últimos anos, presenciamos o crescimento da participação política das igrejas neopentecostais. Em um país laico como é o Brasil, o que representa essa incursão e qual deve ser a atuação política dessas igrejas?

Jacqueline Moraes Teixeira: A religião sempre ocupou uma posição central no processo de formação do país. No Brasil Colônia, e mesmo após ser desenhado como um país laico, as organizações católicas sempre tiveram uma relação muito importante com o Estado, principalmente oferecendo apoio em práticas de caridade, entre outros serviços. Até pouco tempo, havia leis que protegiam a Igreja Católica em função dessa relação. No caso das denominações evangélicas, principalmente as neopentecostais, que foram as que mais cresceram, o que se percebe é que existe uma ideia de laicidade, que é defendida para ser usada contra a Igreja Católica. Então, para proteger o Estado da influência católica, defende-se o Estado laico. Por outro lado, a emergência desses atores religiosos na política, chamados fundamentalistas, traz algumas implicações que, de alguma forma, aumentam e produzem o endurecimento em relação a uma série de questões, como ser contra a legalização do aborto, a legalização das drogas, contra bandeiras relacionadas à homossexualidade, o que acaba alimentando um discurso homofóbico. Essas bandeiras morais têm fortalecido esse fundamentalismo religioso. O presidente da Câmara, por exemplo, Eduardo Cunha, que é um pastor evangélico, defende claramente um modelo de família no qual a homossexualidade não pode ser admitida, defende que o aborto se torne crime hediondo; então, suas pautas são morais e os argumentos que ele usa são alicerçados dentro de sua filiação religiosa. A consequência disso é um aumento da tensão: projetos de leis fundamentalistas sendo aprovados. Mas, eu acho, também, que vivemos um momento de pluralização de ideias, um momento de publicização dessas ideias, aumentado pelas redes sociais.

Pedaço da Vila: Em que momento se inicia esse crescimento tão grande das igrejas neopentecostais no País?

Jacqueline Moraes Teixeira: O crescimento das denominações neopentecostais se dá, na verdade, no final da década de 1970, e as igrejas travam uma dura batalha por seus direitos na década seguinte. Esse crescimento passa a ter visibilidade e a produzir diferenças dentro do nosso campo religioso a partir da década de 1990. Se comparados os Censos de 2000 e de 2010, por exemplo, percebemos uma diferença muito grande na quantidade de denominações evangélicas. Somente nesta primeira década do século 21, tivemos um crescimento de denominações superior ao de todo o século 20. 

Pedaço da Vila: A religião tem se mostrado, sobretudo nesses últimos anos, um negócio muito lucrativo, a ponto de o dízimo ser uma prática muito questionada. O que se perde e o que se ganha nesse modo financeiro adotado pelas igrejas?

Jacqueline Moraes Teixeira: O dízimo realmente é uma questão muito presente nos debates. Quando ocorreu, por exemplo, a Reforma Protestante, há 500 anos, a briga de Lutero era por conta das indulgências; de alguma forma a reforma protestante se dá por conta de uma crítica a essa prática de pedir dinheiro. O que eu vejo é que, na verdade, isso é uma estratégia, uma linguagem muito forte nos cultos, mas que não é exercida por todas as religiões. Como no Brasil elas estão desenhadas constitucionalmente como associações civis, elas podem arrecadar mensalidades ou donativos como qualquer associação civil. Assim, qualquer religião que arrecade dinheiro com seus fiéis, não está sendo inconstitucional. Essa é uma relação extremamente delicada. No caso da Igreja Universal, as pessoas veem o dízimo como um investimento, doam em nome de sua prosperidade, pois são pessoas pobres, muito endividadas. A igreja oferece uma série de cursos para que essas pessoas arrumem as suas condições financeiras, como cursos de economia para que possam controlar seu dinheiro. Se essa prática é positiva ou negativa, vem a questão: para quem? Para nós, que estamos olhando de fora, é bastante negativo, mas para as pessoas que estão nessa relação é positivo, pois elas acham que, dentro de uma relação com o Estado falido, a religião é a salvação, então vale a pena contribuir.

Pedaço da Vila: A religião, então, passou a ser responsável por uma parcela da população que o Estado não consegue suprir?

Jacqueline Moraes Teixeira: O que constitui um Estado-Nação? A primeira coisa a ser feita é criar instituições que irão promover a saúde e a educação. Os nossos órgãos não davam conta de uma extensão territorial tão imensa. Então, quem foi o agente convidado pelo Estado para apoiar nesse sentido? Num primeiro momento foi a Igreja Católica. Até a primeira metade do século 20, a grande maioria de colégios e hospitais era mantida por instituições religiosas, em parceria com o Estado. Essas instituições faziam uma parte da política pública que o Estado não dava conta de atender. Com isso estabelecemos uma linguagem religiosa segundo a qual as nossas religiões precisam oferecer serviços de que o Estado não dá conta. O crescimento das igrejas pentecostais e neopentecostais acontece nas regiões periféricas, territórios vistos como desprovidos de assistência do Estado.

Pedaço da Vila: O Brasil abriga uma grande diversidade de religiões. De que maneira tem se encaminhado o diálogo entre elas hoje, com as facilidades de comunicação? 

Jacqueline Moraes Teixeira: O Brasil começou como um país católico; e isso fez com que todas as religiões ou todas as pessoas que não professassem o catolicismo fossem perseguidas e expulsas do país. Mesmo os protestantes históricos, quando chegaram ao país, tiveram que negociar o seu pertencimento e seus direitos à cidadania de pessoas não cristãs, o que foi um processo muito difícil. O espiritismo, por exemplo, só foi reconhecido e deixou de ser perseguido como religião em 1915. É a partir do século 20 que se começa a ter um desenho no Estado em que outras religiões são reconhecidas e protegidas. Com relação às denominações Afro-brasileiras, como Candomblé e Umbanda, essa perseguição ocorreu por muito mais tempo, tanto é que a forma de legitimidade dessas religiões foi sempre se pensar como cultura; então, a defesa dessas práticas religiosas era sempre relacioná-las à cultura africana. Com o Islamismo e com Judaísmo isso também aconteceu, e essa abertura se deu no século 20. Esse reconhecimento progressivo de outras formas de religiosidade fez com que o Brasil tivesse suas crises intrarreligiosas, e desenhou uma relação entre classes e determinados pertencimentos religiosos. Criou-se, por exemplo, uma ideia de que “Candomblé” é coisa de preto, “Evangélico” é coisa de pobre, “Islamismo” é coisa de terrorista… Então, esse cenário de intolerância que temos hoje vem embasado por toda essa prática que tínhamos no Brasil e que não estava muito descrita, muito clara na mídia, ou que não tinha muita forma de divulgação. Aumentou a quantidade de canais e vozes e essa tensão, esse preconceito de como determinada religião pensa e assedia a outra com suas questões e defesa de parâmetros morais, vai tomando outras formas de visibilidade, porque implode um pouco essa gramática que estava pautada pela grande mídia e programas televisivos. As redes sociais colocam para fora os preconceitos, as suas tensões, em nome da religião.

Pedaço da Vila: O Papa Francisco deu um fôlego à Igreja Católica, aproximando-se das minorias. Como você analisa este momento ?

Jacqueline Moraes Teixeira: O Papa Francisco, na verdade, veio exatamente dentro de um momento em que a Igreja Católica se viu acuada e sem tanta visibilidade política e pública. Mesmo no Brasil, que é o país mais católico no mundo, a igreja acabou se tornando secundária no debate de muitas questões, como no caso do aborto e do casamento gay. Mesmo a Igreja Católica sendo um agente importante, o que a gente vê no cenário político é que sempre a posição de políticos ou pessoas de outras denominações vai mobilizar essa discussão; a Igreja Católica se tornou secundária em questões em que sempre teve posição majoritária. Num cenário em que a Igreja Católica está perdendo seu espaço de visibilidade, era preciso um Papa, como Francisco, que fosse mais aberto às questões modernas e estreitasse o diálogo com a população. A formação do Papa Francisco é muito mais pastoral do que teológica, diferentemente do Papa anterior. Francisco é um Papa que consegue acolher aquelas pessoas que a igreja sempre discriminou. Num momento como este, de muitos debates, a posição da Igreja é fundamental. 

Pedaço da Vila: Hoje, todas essas discussões morais na política e nos debates sociais não se tornam um entrave para o avanço do pensamento?

Jacqueline Moraes Teixeira: Eu acho que, na verdade, não estamos lidando com o crescimento religioso no país; o fenômeno social é outro, pois sempre houve um índice muito grande de pertencimento religioso na população brasileira; inclusive, foi somente neste Censo de 2010 que apareceu o número de pessoas que se dizem sem religião, 8% da população — o que não aparecia anteriormente, pois esse número era muito pequeno. O que vem acontecendo nos últimos anos é uma mudança no jogo; as posições que antes eram ocupadas por religiosos de tradição católica passam a ser ocupadas por religiosos de segmentos evangélicos; então, temos uma mudança nas peças do tabuleiro. Quando há outra formação religiosa, as questões que são colocadas no jogo também se modificam. Em nenhum momento senão hoje, discutimos o que é um Estado laico; se um crucifixo pode ou não permanecer dentro da sala do Supremo Tribunal Federal. Hoje isso é debatido nas redes sociais. Com essas mudanças nessas peças do tabuleiro, as pessoas começam a aprender a questionar se o Estado é laico ou não; e essa discussão promove, de certa forma, uma pedagogia sobre a questão. Então, a emergência desses atores e de seus pertencimentos religiosos, e o endurecimento que isso vai produzir em determinados debates, acaba de alguma forma fazendo com que exista e se desenvolva uma pedagogia sobre o Estado laico. Cada vez mais iremos nos perguntar até onde a religião poderá influenciar o Estado, e isso se torna positivo, porque disseminamos o policiamento dos agentes religiosos dentro do Estado laico. O Estado vai aprendendo a se proteger da religião à medida que esse pertencimento religioso se comunica com o Estado de maneira consciente.