Guilherme Bryan
A união entre duas grandes paixões dos brasileiros – a música e a teledramaturgia – tornou-se uma influência constante na formação da cultura popular brasileira nas últimas décadas. Essa relação é retratada em Teletema – a história da música popular através da teledramaturgia brasileira, livro escrito pelo jornalista Guilherme Bryan (à direita) e o dramaturgo Vincent Villari. Também professor da Belas Artes, Bryan contou ao Pedaço da Vila o processo de escrita do livro, destacou a natureza democrática das trilhas de novelas e revelou alguns nomes fundamentais nessa história
Pedaço da Vila: Você acaba de lançar Teletema – A História da Música Popular Através da Dramaturgia Brasileira, livro escrito em conjunto com o dramaturgo Vincent Villari. Como surgiu a ideia de escrever essa obra?
Guilherme Bryan: Eu estava escrevendo um livro sobre a cultura jovem dos anos 80, o qual teve início com meu Trabalho de Conclusão de Curso, na Cásper Líbero. Aí eu precisava checar alguns temas de algumas trilhas de novelas e uma amiga me apresentou ao Vincent Villari, dizendo que ele era uma pessoa que trabalhava com dramaturgia e colecionava discos. Eu entrei em contato com ele e foi então que descobri o quanto a música dos anos 80 havia se destacado em função de sua presença na teledramaturgia. A partir de então, pensei em escrever um livro sobre a história da música popular através da teledramaturgia brasileira. Apresentei a ideia para o Villari, que adorou, até porque ele tem um grande domínio sobre o tema. Isso aconteceu em 2000, e desde então estávamos trabalhando nesse projeto.
Pedaço da Vila: O livro faz um inventário de todas as trilhas musicais de produções teledramatúrgicas comercializadas no país. De que forma se deu o processo de apuração desse material e como foi dividido o trabalho?
Guilherme Bryan: Procuramos fazer isso da maneira mais criativa e prazerosa possível. Antes de sairmos para fazer pesquisas e entrevistas com pessoas ligadas ao assunto, combinamos de ouvir, juntos, todos os discos, enquanto fazíamos anotações — o Villari tinha quase todos em seu acervo. Depois disso, começamos a selecionar algumas pessoas para entrevistarmos, chegando a um total de 140 entrevistados. Eu fiquei responsável por fazer as entrevistas enquanto o Villari escrevia. Foi quase um caça ao tesouro para encontrar algumas pessoas, que haviam trabalhado lá no início da história da televisão no Brasil, em meados da década de 1950, sendo que a teledramaturgia tenha se firmado na década seguinte. Esses entrevistados eram sonoplastas da TV Tupi que já não estavam tão acessíveis no mercado, como Salatiel Coelho, que é o autor do primeiro disco de trilhas de novelas lançado no Brasil. Muitas das pessoas entrevistadas tinham uma agenda muito apertada, como Paulinho da Viola, Gal Costa, Rita Lee; fomos conseguindo aos poucos.
Pedaço da Vila: Primeiro de dois volumes, este livro cobre o período que vai de 1964 a 1989. Em que circunstância aconteceu a inserção das trilhas e o que marca esse período?
Guilherme Bryan: Num primeiro momento, a grande sacada do Salatiel Coelho, na verdade, foi fugir do modelo que havia no cinema e no teatro, e adotar o leitmotiv, que vinha da ópera de Wagner e que consistia em dar um tema musical para um personagem. Então, de certo modo, a telenovela brasileira inaugura, depois da ópera, claro, essa prática de associar uma canção a um personagem. Isso quem fez foi o Salatiel Coelho, que lançou um disco com temas instrumentais compostos para várias novelas da Tupi. Ainda havia muito receio por parte de artistas brasileiros em ceder suas músicas para as novelas. Nesses discos havia clássicos internacionais e algumas músicas compostas especialmente para as novelas. Isso mudou quando Nelson Motta, inspirado num modelo mexicano, resolveu fazer a trilha da novela Véu de Noiva, num acordo entre a TV Globo e a Philips. Aí teve início uma telenovela mais moderna; e o cotidiano do país começou a ser retratado nela. Nesse quesito, também, Véu de Noiva é um marco. O importante era que as canções não se sobrepusessem à novela. A ideia de ter canções que servissem para os personagens e para as tramas continuou ao longo do tempo, aprimorando-se cada vez mais. Então, mais importante do que ter uma música de sucesso era ter uma música que servisse bem à novela. Talvez a melhor trilha de todas, nesse aspecto, seja a do Roque Santeiro, que provavelmente não teria os impactos radiofônicos que alcançou se não fizesse parte da novela.
Pedaço da Vila: As trilhas sonoras também promoveram a carreira profissional de muitos atores…
Guilherme Bryan: Quando a música se associa muito bem a um personagem, ela obtém sucesso não somente na rádio, mas na própria TV, e é quase impossível não entrar no imaginário popular. Um exemplo é o tema da Jocasta: “Amor e o Poder”. A cantora Rosana foi chamada de Deusa por quem se lembra da música por causa do tema da novela. Ou o tema do Oswaldo Montenegro, “Lua e Flor”, é associado ao Sassá Mutema e à Professora Clotilde, da novela O Salvador da Pátria, assim como o tema “Modinha”, para Gabriela. Existem muitos temas que ficaram associados aos personagens e se desta-caram por isso.
Pedaço da Vila: Em que momento as trilhas de novelas se inseriram no mercado e na cultura brasileira?
Guilherme Bryan: No momento em que Nelson Motta convenceu os grandes artistas da música brasileira a terem suas músicas associadas aos personagens das novelas. A música “Irene”, de Caetano Veloso, é um exemplo: o Nelson Motta convenceu o Caetano de que essa música era ótima para a novela, para a personagem interpretada pela Beth Faria, que tinha, a princípio, outro nome. Aí o Nelson Motta convenceu a Janete Claire a mudar o nome da personagem para Irene, por conta da música. Música e dramaturgia, sem dúvida, são duas das grandes paixões do brasileiro e faz parte de nosso imaginário essa relação, pois pautamos muito a nossa música em função das novelas, e associamos as novelas às trilhas, principalmente no período nas décadas 1970 e 1980, momento em que não havia tantas mídias competindo com a televisão.
Pedaço da Vila: As novelas se tornaram uma poderosa vitrine para a música brasileira. Que estilos musicais mais se beneficiaram disso?
Guilherme Bryan: Todos os estilos. A discoteca no Brasil só pegou de fato por conta das Frenéticas na abertura da novela Dancing Days. A música sertaneja no Brasil ganha uma enorme repercussão com a trilha da novela O Rei do Gado. O rock se faz muito presente nas trilhas dos anos 80, em novelas como Um Sol de Verão. Um exemplo é a música Pelado, do Ultraje a Rigor, na abertura da novela Brega & Chique; ou o grupo Ira!, na abertura da novela O Outro; ou ainda Fausto Fawcett, que era um artista underground, e que, de repente, chega ao horário nobre, na novela O Outro, cantando Kátia Flávia e se transforma num dos artistas mais tocados do ano. Tem a Marisa Monte, que era uma cantora em início de carreira quando teve a sua canção “Bem Que Se Quis”. A versão do Nelson Motta para uma canção italiana, incluída na novela O Salvador da Pátria, que se tornou a música mais tocada naquele ano. Outras trilhas foram a de Fafá de Belém e do Djavan, em Gabriela, entre outros artistas que se destacaram e alcançaram sucesso popular graças a elas.
Pedaço da Vila: Além de destacar músicas recentes, as trilhas também resgataram composições clássicas, em novelas de épocas, não?
Guilherme Bryan: Sem dúvida. A trilha de Estúpido Cupido, por exemplo, dos anos 1970, é inteira formada por canções dos anos 50, do rock ao samba-canção. A novela Bambolê, nos anos 80, também destaca canções da Bossa Nova, jazz e o surgimento do rock. Há novelas que vão mais longe ainda, como é o caso de Vida Nova, que revisitou os anos 30 e 40 para resgatar muitas canções daquele período. Outro caso é a novela Os Imigrantes, que faz um grande painel musical a partir da presença dos imigrantes em São Paulo.
Pedaço da Vila: As trilhas internacionais eram as mais vendidas. A que se deve isso?
Guilherme Bryan: Elas vendiam muito, porque já vinham com o sucesso internacional, principalmente o pop rock internacional. O disco de novela que mais vendeu foi o Salvador da Pátria Internacional, que tinha alguns ícones como Pet Shop Boys, Bon Jovi, Rick Astley e Phil Collins. Juntava as duas coisas: o sucesso internacional e o sucesso da novela. As trilhas de novelas não só abriram muitos espaços para a música brasileira como também para a música internacional: muitos artistas só fizeram sucesso no Brasil por conta das novelas. Um caso disso é B. J. Thomas, que tocou “Rock And Roll Lullaby”, na primeira versão da novela Selva de Pedra, e se tornou um sucesso nacional a ponto de o trazerem para fazer show no Brasil.
Pedaço da Vila: A diversidade de estilos sempre esteve presente na teledramaturgia brasileira?
Guilherme Bryan: O interessante nas trilhas de teledramaturgia, de maneira geral, é que elas são muito democráticas. Você tem ali o que há de mais refinado, como um Tom Jobim, até música mais popular, de cantores como Wando, Roupa Nova,Fábio Junior. Então, tem-se, de fato, um grande painel da música brasileira. As trilhas são marcadas pela diversidade. A Bossa Nova tem até hoje muito de sua presença no imaginário popular, também, em função das novelas. Nas novelas do Manoel Carlos, por exemplo, tem Bossa Nova, assim como nas de Gilberto Braga, que é um autor que sempre se preocupou com as trilhas e que sempre procurou levar os grandes nomes da música brasileira para dentro das novelas que escrevia. Silvio de Abreu sempre fez questão de prezar o universo paulistano, inclusive em termos musicais.
Pedaço da Vila: Quais compositores deram maior contribuição às trilhas?
Guilherme Bryan: Esse período que está presente neste primeiro livro destaca, pelo menos, os nomes de cinco pessoas fundamentais. Num primeiro momento, Salathiel Coelho, na TV Tupi; em seguida a entrada de Nelson Motta, nesse acordo da Globo com a Philips. Depois você tem trilhas encomendadas especialmente para duplas de compositores, como Roberto e Erasmo Carlos, Toquinho e Vinicius de Moraes, Antonio Carlos e Jocafi, Paulo Sérgio e Marcos Valle, e Paulo Coelho e Raul Seixas. Aí você tem a a entrada de Guto Graça Melo, que segue o modelo das trilhas internacionais que já estavam dominando as vendagens naquele momento e ele adota o mesmo padrão e emplaca um modelo que dura até hoje. E, em 1985, temos a chegada de Mariozinho Rocha, cuidando da trilha do Roque Santeiro, quando alguns produtores musicais vinculados a gravadoras foram convidados para cuidar de trilhas específicas. Essas pessoas foram fundamentais na história das trilhas.
P.daVila: Como anda o processo de preparação do segundo volume? Já tem previsão de lançamento?
Guilherme Bryan: Estamos escrevendo. Já temos muito material apurado, muitas entrevistas inéditas, com Maria Gadú, Luiz Caldas, Lenine, Samuel Rosa, Toni Garrido… Já estamos com a coisa andando. Esse segundo volume deve cobrir o período que vai de 1990 a 2014, a não ser que a gente ache que tem muita coisa e resolva dividi-lo em mais dois volumes. Existe essa possibilidade também. O segundo volume sairá, provavelmente, daqui uns dois ou três anos, quando acharmos que já temos um material de qualidade.