Gonçalo M. Tavares

Ele é um dos mais prestigiados escritores da literatura contemporânea. Aos 43 anos, já conquistou importantes prêmios e , em 2005, do Nobel de literatura, José Saramago, a crítica: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem com apenas 35 anos: dá vontade de lhe bater!”. No dia em que participou do Sempre Um Papo, no Sesc VM, o  escritor português falou ao Pedaço da Vila sobre seu processo criativo, defendeu a separação entre literatura e mercado e destacou os escritores brasileiros que marcaram sua trajetória

Pedaço da Vila: O senhor nasceu em Luanda, mas sempre viveu em Portugal?

Gonçalo M. Tavares: Meus pais são portugueses e estiveram por quatro anos em Angola, e eu nasci nesse momento. Fui para Portugal com 4 anos. Por minha formação e cultura portuguesa, eu sou português.

P.daVila: Em que circunstância os livros entraram em sua vida?

Gonçalo: Eu tenho, como todos os leitores, um fascínio pela ideia de biblioteca, de estar em um espaço com muitos livros para escolher e ler. Prefiro as bibliotecas pessoais. Eu lembro que li os primeiros clássicos na biblioteca do meu pai. No meu caso, quanto mais leio mais vontade eu tenho de escrever. Tanto a viagem quanto a leitura são estímulos para a escrita.

P.daVila: Costuma frequentar bibliotecas públicas e sebos?

Gonçalo: Não consigo frequentar bibliotecas públicas porque eu acabo estragando os livros, pois minha leitura consiste em anotar nas páginas; eu sublinho o que me interessa. Gosto bastante de sebos e, também, trabalhar em cafeterias. Eu só escrevo aquilo que tenho a necessidade de escrever, é uma necessidade orgânica. Ter liberdade para escrever é essencial na escrita. Nunca penso no leitor; é algo que faço como e quando eu quero.

P.daVila: Em suas obras já experimentou os mais diversos gêneros literários: poesia, conto, teatro e romance. No entanto, considera-os limita-dores. De que maneira estrutura sua linguagem?

Gonçalo: Eu não costumo pensar previamente em gêneros, eu penso muito no alfabeto. Eu gosto muito da ideia de que eu escrevo a partir do alfabeto, das letras, e o alfabeto não pertence a nenhum gênero literário. Não existe um “a” ou “b” que pertencem ao romance e outros que pertencem ao conto. Portanto, eu escrevo com as letras e sem saber exatamente o que vai acontecer. Posteriormente tento entender o que é aquilo, e, quase sempre, o que eu escrevo não entra nos gêneros literários clássicos, por isso tento dar novas definições, como canções ao invés de contos. Os gêneros literários são muito limitadores.

P.daVila: Então sua arte consiste em pegar uma palavra e desdobrá-la em significados?

Gonçalo: Sim. Canções, aqui no Brasil, têm a ver com ritmo e têm uma ideia não narrativa: não precisam ser uma história com uma personagem. É como se fosse um fragmento com ritmos, por isso canções. Mas as palavras são muito ricas, e gosto muito de olhar para a etimologia delas. As palavras são muito inteligentes e resguardam uma história que devemos respeitar.

P.daVila: E estabelece um planejamento para escrever?

Gonçalo: Eu escrevo muito instintivamente; não planejo. Tento escrever sem saber exatamente o que estou fazendo. Tanto o nome quanto a própria história vão nascendo naquele momento, sem forçar. Às vezes, parto de algum tópico já definido ou uma imagem, mas isso é apenas o começo; depois o mais importante acontece sem eu planejar. Meus livros são muito diferentes. Meus quatro romances são mais narrativos, mas eu gosto tanto de escrever em fragmento como de forma mais narrativa. O frag-mento tem muita força porque tem que ter uma energia mais concentrada.

P.daVila: Tem uma rotina?

Gonçalo: Sim. Eu tento escrever todas as manhãs, me concentrar bastante, e com-pletamente isolado, cada vez mais em meu esconderijo, não gosto de interromper minha escrita atendendo um telefone ou lendo um e-mail. Às vezes, tento escrever em uma cafeteria, mas muitas pessoas acabam indo também, e, assim, fica complicado. Eu também associo muito a escrita em café à escrita à mão. Eu escrevia muito em cafeterias quando era mais jovem… Agora escrevo mais no computador.

P.daVila: Embora o senhor não submeta sua escrita ao tempo exigido pelo mercado editorial, nos últimos dez anos publicou mais de 30 livros. De onde vem tanta inspiração?

Gonçalo: Eu escrevi muito antes de editar. A maior parte dos livros que estão ainda para sair foi escrita antes mesmo de publicar o meu primeiro livro. Eu comecei a editar aos 31 anos e eu escrevi muito entre os 20 e os 30; alguns livros desse período ainda não saíram. Ao mesmo tempo eu escrevo muito rápido, eu levo mais tempo para rever e editar a obra – até vários anos, às vezes. Para mim, escrever é algo natural. Gosto de fazer muitas alterações e nunca publico antes de deixar passar dois ou três anos depois do momento da escrita. A literatura é um mundo que não se pode confundir com o mundo do comércio. Nunca misturo essas duas coisas.

P.daVila: O senhor se diz fascinado pelas pequenas cenas do cotidiano da cidade. É sua fonte de inspiração?

Gonçalo: Uma das coisas que eu mais gosto é andar pela cidade e observar as pessoas. Isso me dá muito prazer, e também vejo esse ato como um trabalho da observação; portanto, eu não conseguiria escrever no campo. Ver as paisa-gens e as vacas é uma coisa que me entedia muito. Eu preciso de pessoas. O que me interessa muito é o comportamento humano, e não descrever um edifício. Trata-se de uma busca por desvendar a alma humana.

P.daVila: Em suas obras há muito o limite entre a sobriedade e o delírio. Suas personagens, de certa forma, dialogam sempre com esse universo?

Gonçalo: Além daquelas questões básicas do amor e da violência, acho que a questão da loucura e da perda da razão é uma coisa central para mim, e muitos dos meus livros estão centrados nessas questões. Enquanto, por um lado, há livros muito racionais, lógicos, por outro há livros em que predomina o fascínio pela loucura.

P.daVila: Sua obra mais recente publicada no Brasil é Canções Mexicanas (Casa da Palavra). Como se deu o trabalho de escrita desse livro de contos?

Gonçalo: Esse livro nasceu como uma resposta aos estímulos em uma viagem que fiz ao México, onde fiquei por quase duas semanas. Foi uma viagem extraordinária em uma cidade que é uma máquina de estímulos. O México é uma cidade extremamente literária e muito estimulante para escrever.

P.daVila: O livro Canções Mexicanas foi lançado

no Sesc VM, recentemente, mas Animalescos foi publicado pela editora Relógio D’Água somente em Portugal. Há previsão de lançamento?

Gonçalo: Os últimos livros lançados em Portugal foram Short Movies e Animalescos, que foram compostos por uma escrita mais selvagem. Ainda não há previsão para serem lançados no Brasil, mas acho que sairão em breve.

P.daVila: Além do senhor, desembarcaram no país, recentemente, grandes autores portu-gueses contemporâneos, como Valter Hugo Mãe e José Luís Peixoto. A que se deve essa força?

Gonçalo: Não sei. Fico muito contente em saber que a literatura portuguesa é bem conhecida aqui, no Brasil. Não vejo isso como uma questão de geração, eu acho que cada pessoa faz o seu próprio percurso e que as circunstâncias fizeram com que fossem bem lidos. Somos escritores bem diferentes e isso é muito bom, não se trata de uma escola.

P.daVila: Qual autor da literatura brasileira foi marcante em suas leituras?

Gonçalo: Muitos. Pensando nos clássicos, Machado de Assis, João Guimarães Rosa; na poesia, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira… Mas quem mais me marcou foi a Clarice Lispector. Ela é a autora que eu mais li com admiração e prazer de ler frase a frase.

P.daVila: Tem uma frase cuja autoria é atribuída ao poeta Carlos Drummond de Andrade que diz: “Escrever é cortar palavras”. Sua escrita baseia-se na síntese, no essencial?

Gonçalo: Sem dúvida. Eu escrevo muito rápido e depois corto. Tem a ver com isso, tentar ficar apenas com o essencial, e uma questão de não perder tempo colocando palavras a mais. Contar a história somente por contar, apenas na questão verbal, não me satisfaz. Iniciar uma frase é uma tremenda responsabilidade e, se não tiver conteúdo para dizer, ela não existe. Enquanto escritor, eu não gosto de muitas descrições, algo como: “O homem levantou-se, caminhou até a janela”. Não gosto disso…

Edição 131 – Set/2013

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