CÍCERA VIEIRA E CREUZA DE SOUZA

Elas são presidente e vice-presidente da Associação Mãos Unidas, entidade comunitária fundada para defender e dar dignidade aos moradores da favela da rua Mário Cardim. Com projetos educacionais e sociais, trabalham para promover melhorias e geração de renda à comunidade. A seguir, nossas entrevistadas contam como foi o início da ocupação do terreno, qual o perfil dos moradores e o que elas fazem para conquistar um melhor relacionamento com a vizinhança.

Pedaço da Vila: O que era o terreno da rua Mário Cardim antes de ser ocupado?

Cícera Vieira: Era uma fábrica de velas que, depois de um incêndio, foi abandonada. No local, sobraram cinco casarões, que ficavam nos cantos do terreno.

Creuza de Souza: O terreno começou a ser ocupado há mais ou menos 50 anos. A primeira família foi a de Dona Maria, que mora na comunidade até hoje! Ela ocupou um casarão; e aí começaram a chegar pessoas que construíram os barracos no meio do terreno. Quando cheguei, já havia quatro ou cinco famílias instaladas.

P.daVila: Havia infraestrutura na época?

C.S.: Apenas três famílias tinham água encanada, mas existia no terreno uma mina d’água potável, usada, inclusive, pela vizinhança dos prédios quando faltava água.

A partir de 1970, a favela começou a crescer, pois moradores começaram a chamar seus parentes para morar lá.

P.davila: E nunca ninguém foi reclamar o terreno?

C.V.: Não, até hoje nunca ninguém reclamou. O terreno pertence ao INSS e, depois do Plano Diretor Regional, tornou-se uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social do Tipo 1 – ocupada por favela que futuramente será legalizada e urbanizada). Sempre explico aos moradores da comunidade que não existe o perigo de nos tirarem de lá. Muitos morrem de medo de perderem suas casas. Estamos lutando para que cada morador tenha sua escritura.

Uma vez apareceu um anúncio no jornal dizendo que o terreno estava à venda — nem imagino quem foi o responsável por isso. Uma pessoa do Grupo Pão de Açúcar foi lá, muito interessada em comprá-lo, mas, quando viu a quantidade de barracos, desistiu. Ela disse que aquilo era uma tremenda dor de cabeça!

P.daVila: Quando o local deixou de ser uma favela para tornar-se a comunidade da Associação Mãos Unidas?

C.V.: Foi em 1990 que resolvemos fundar uma associação, com diretoria, estatuto, ata e CNPJ— temos tudo documentado! O objetivo foi dar maior segurança aos moradores e, também, ganhar mais respeito do poder público e dos moradores do bairro.

C.S.: Com a associação tudo melhorou: ganhamos reconhecimento dentro e fora da comunidade e, ainda, conquistamos um melhor relacionamento com todo mundo.

P.daVila: Como surgiu o nome Mãos Unidas?

De uma foto que tiramos de um aperto de mão — com uma mão branca e outra negra. Da imagem surgiu o nome e o logotipo da associação de moradores.

P.davila: A associação tem sede?

C.V.: Sim, ela é no nosso Centro Comunitário, destinado a reuniões da diretoria — ao todo temos nove diretores. As reuniões são reali-zadas a cada dois meses ou em caráter de emergência. A sede também é usada para aulas de reforço escolar para as nossas crianças e adolescentes, de manhã e à tarde, e para as missas aos domingos, ambas oferecidas pelo padre da Igreja Santo Inácio de Loyola.

C.S.: O espaço também é utilizado para cursos e oficinas de geração de renda. Atualmente, os moradores interessados estão recebendo, todas as quintas-feiras, às 16h, aulas de bijuterias com a designer Renata da Silva Pereira, da grife “Renata & Ciça”. Ela é famosa, tem loja em Moema, e suas peças aparecem nas novelas da Rede Globo. Ela está empregando as pessoas que se destacam no curso.

C.V.: A partir deste mês, teremos também os cursos de teatro e dança, ministrados por Bianca Aires, do Projeto Arrepio.

P.daVila: Que tipo de trabalho a Associação Mãos Unidas presta à comunidade?

C.V.: A gente tenta organizar o local da melhor forma possível. Instalamos placas em todas as vielas, que são oito, informando dia e hora para colocarem o lixo. Se algo quebra dentro da comunidade, mandamos arrumar. Informamos sobre vacina, doação de sangue… Além, claro, sobre os cursos e lazer, que buscamos e promovemos para os moradores: por exemplo, a Rua de Lazer, aos domingos e feriados, e a Rua de Brincar, com ao apoio da Secretaria de Esportes. Eu e a dona Creuza vamos atrás de coisas para a comunidade, mas, muitas vezes, as pessoas não comparecem…. Tentamos trazer teatro, dança, mas, se não estamos à frente desses projetos, mais ninguém se compromete! E é muito complicado arranjarmos tempo, pois temos que trabalhar para sustentar nossas famílias. Além disso, há outro problema: as instituições, vizinhos e subprefeitura chegam com projetos mara-vilhosos que prometem muitas coisas para nossas crianças e adolescentes. Só que, depois que a gente agita todo mundo, eles somem.

P.daVila: Quem são realmente as instituições e pessoas que ajudam?

C.S.: O Projeto Quixote dá a maior força à comu-nidade: oferece cursos para as crianças e emprega nossos adolescentes, além de disponibilizar psicólogos e até ajudar as famílias mais necessitadas. O CPOS (Companhia Paulista de Obras e Serviços), na rua Tangará, todo ano doa agasalhos novos para as crianças. E há a Pia Sociedade de São Paulo, que, por meio da Igreja Santo Inácio de Loyola, sempre ajudou muito a comunidade, inclusive dando cestas básicas.

P.daVila: Quantas pessoas moram na comunidade?

C.S.: São 450 famílias, cerca de 2300 pessoas, mais de 500 crianças.

P.daVila: Esse pedaço da Vila Mariana está com o metro quadrado muito valorizado. Essa valorização também chegou às casas da comunidade?

C.S.: Muito! Para se ter uma ideia, uma boa casa custa 60 mil reais! A mais barata sai por 20 mil reais. Não há mais espaço no terreno para outras casas serem construídas.

P.daVila: Há muito desemprego entre os moradores?

C.V.: Atualmente não mais. A maioria dos moradores trabalha na região — como eu e dona Creuza. Eles estão nas portarias dos prédios, na equipe de limpeza das faculdades e hospitais, e como seguranças nas escolas e no comércio da região. O bairro aproveita nossa mão de obra!

P.daVila: E as crianças e os jovens da comunidade?

As crianças estudam nas escolas da região e muitos de nossos jovens estão se formando em cursos superiores: temos advogados, enfermeiros, nutricionistas, administradores…

P.daVila: Como é a relação entre os mora-dores da comunidade e a vizinhança?

C.V.: Antes de responder, quero destacar uma pessoa muito especial, que é o tio Fernando. Ele mora na rua Uruana e há 35 anos ajuda muito os moradores da Mãos Unidas. Agora, com relação ao resto da vizinhança, nós não incomodamos eles e eles não nos incomodam…

P.daVila: Mas a redação do jornal recebe reclamações sobre o lixo reciclado na rua…

C.V.: Esse lixo não é nosso! Não pertence à comunidade, mas a uma pessoa que morou na rua Mário Cardim. O lixo só está ali porque o dono, segundo ele mesmo nos informou, rece-beu autorização dos moradores da vila ao lado. Aquele lixo todo atrapalha muito, e fica pior ainda às sextas-feiras, dia de feira, quando o trânsito, de ônibus e carros, é desviado da rua Gandavo para a Mário Cardim, uma via de duas mãos.

P.daVila: Normalmente, os moradores do bairro culpam a comunidade pelos crimes que ocorrem na região. Como as senhoras veem essa questão?

Posso garantir que lá não é um lugar perigoso, a vizinhança pode entrar a qualquer hora e será bem recebida. A Polícia Militar do 12.º Batalhão conhece todo mundo que mora na comunidade e sabe muito bem que lá não é esse bicho de sete cabeças que muita gente do bairro pensa que é… Na comunidade não existe ladrão e, quanto às drogas, usuários e traficantes existem em qualquer lugar. O 12.º Batalhão me ajuda muito nos eventos que organizo, sempre dá o maior apoio. É uma besteira pensar que as drogas existem por culpa do pessoal de baixa renda, enquanto os chefões dos traficantes moram em mansões! Convido a todos a nos fazer uma visita, nossas portas estão abertas!