Beto Bruno

Nascido na cidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e radicado em São Paulo há dez anos, o vocalista da banda Cachorro Grande se tornou uma das principais vozes do rock brasileiro nos últimos anos. Morador da Vila Mariana há quatro meses, Beto Bruno abriu a porta de sua simpática residência para conversar com o Pedaço da Vila sobre a trajetória nos palcos, a paixão que tem pelo rock 

Pedaço da Vila: Em que momento a música entrou em sua vida? 

Beto Bruno: Foi bem cedo. Quando eu tinha 8 anos de idade, estava em Camboriú, Santa Catarina, com meus pais e meu irmão, assistindo ao filme dos Beatles, A Hard Day’s Night. Meu irmão e eu ficamos loucos com aquilo. Quando voltamos para casa, pergun-tamos ao pai se ele tinha os discos, e ele nos deu justamente o Os reis do iê, iê, iê!. Tudo começou aí. Montei com meu irmão uma banda de raquete de tênis, dublando o que tínhamos visto no filme. Um amigo tocava a bateria, que era a máquina de costura da minha avó! Quando eu ouvi os Beatles, decidi que queria fazer música. Comecei a conhecer toda a coleção de discos de rock do meu pai, e isso me abriu um universo, o mundo do rock! Meu pai era jornalista e morou em Londres no final dos anos 60 e começo dos 70, podendo acompanhar de perto o crescimento dessas bandas. Eu cresci com essa bagagem em casa, que foi importante para a minha formação musical. Hoje eu faço exatamente o que eu sempre sonhei fazer em minha vida, que é estar em cima de um palco com uma banda de rock. 

Pedaço da Vila: Antes de nascer a Cachorro Grande, você integrou a banda Malvados Azuis fazendo muitos covers. Como foi esse período? 

Beto Bruno: Isso foi no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Passo Fundo. Era um barato, percorríamos o interior todo do Sul tocando Beatles, Stones e The Who, material de 1966 até 1968; éramos rigorosos. Era uma furada para aqueles que iam nos ver achando que íamos fazer um bailão. Entre um Beatles e um Stones, enfiávamos uma música nossa… tipo quando a galera ia comprar uma cerveja e tal [risos]. A intenção desde o início foi colocar música própria, mas não vendia show. Já que tinha que fazer cover, que fosse então de Beatles, Stones e The Who, que a gente sempre amou. O cover é uma escola importante para aprender a tocar. 

Pedaço da Vila: Como nasceu a banda Cachorro Grande? 

Beto Bruno: Eu vivia em Passo Fundo e queria muito ir a Porto Alegre para montar uma banda com Marcelo Gross (baterista), que morava lá. Nós já tínhamos conversado, pois eu tocava na Malvados Azuis, e o Gross na Júpiter Maçã; duas bandas que já estavam encalhadas… Depois que me encontrei com ele em Porto Alegre, tudo aconteceu muito rápido. Em menos de um ano eu já estava morando lá e escrevendo músicas com o Gross; isso em 1999. Em 2001 já estávamos com o primeiro disco, Cachorro Grande, e tocando nas principais capitais do país. 

Pedaço da Vila: Desde cedo você já tinha a consciência de que queria viver de música? 

Beto Bruno: Eu nunca imaginei um emprego melhor, em que eu fosse tão apaixonado pela coisa como sou pela música e pelo rock’ n’roll. Mas até sair o primeiro disco, eu tive que segurar a onda, né?! Uma semana antes de lançar o disco, eu parei de trabalhar no lugar onde trabalhei a vida inteira, em lojas de discos. 

Pedaço da Vila: A Cachorro Grande nasceu inspirada nesses três pilares: The Beatles, The Rolling Stones e The Who? 

Beto Bruno: Era bem anos 1960. Queríamos soar como uma banda mod inglesa, só que no Rio Grande do Sul, em 1999 [risos]. Era uma loucura, bem diferente de tudo o que estava rolando. Mas o que fez a gente ser especial na época foi o trabalho autoral, pois quando nós juntamos 12 músicas, mesmo influenciadas por isso tudo, surgiu uma coisa nova ali, que era a Cachorro Grande. Tinha uma pegada de rock garageira, até mesmo um pouco punk, que fazia os shows serem incendiários. E nós conseguimos passar essa energia toda para o disco, o que é muito difícil de fazer logo de cara, pois não se tem muita experiência. 

Pedaço da Vila: Após dois discos, todos os integrantes vieram morar em São Paulo, onde lançaram o terceiro disco, Pista Livre. O que motivou a mudança? 

Beto Bruno: A gravadora era aqui e o estúdio era no Rio. O coração do rock é o centro. As bandas de rock procuram o centro. Na Inglaterra, por exemplo, os caras que moram em Liverpool ou Manchester vão para Londres. Nós viemos para São Paulo. Quando eu era pequeno, eu vinha assistir shows aqui. Costumava ir ao bairro Pompeia somente para andar na rua em que os Mutantes moravam. A Rita Lee morava aqui atrás de casa, na Vila Mariana, e agora eu estou aqui, pertinho, e isso é demais. Sempre foi um sonho morar em São Paulo. Até me mudar para a Vila Mariana eu morei na região da Rua Augusta. Lá, eu via uma banda diferente de segunda a segunda, e bandas do Brasil inteiro, pois a Augusta tem essa efervescência. Essa mudança me deixou próximo disso tudo, dos grandes shows internacionais que acontecem na cidade. Nesse período eu aprendi muito no underground de São Paulo e nos festivais. 

Pedaço da Vila: Quando a Cachorro Grande transitava mais no universo underground, os críticos a elogiavam. Você disse que isso mudou depois que chegaram a uma gravadora maior. 

Beto Bruno: Isso na época em que a crítica de um disco ainda era valorizada. Hoje não é assim. Eu acho que isso acontece com todas as bandas. Um exemplo mundial é Oasis. O primeiro disco do Oasis era amado por todos os críticos brasileiros; quando eles estouraram com um segundo disco, bem melhor do que o anterior, vieram dizer que o Oasis se vendeu, perdeu aquela coisa garageira. Eu sempre achei isso a maior besteira, pois, se for uma banda verdadeira, só vai evoluir. Eu me preocupo com a opinião do público que vai ao show. 

Pedaço da Vila: São muitos shows… 

Beto Bruno: Poder ficar o final de semana na estrada e gravar um disco a cada um ano e meio, para mim, já é uma grande realização. Se pudesse ficar mais rico, seria melhor, para poder comer nesses restaurantes aqui da Vila Mariana [risos]. 

Pedaço da Vila: A questão de fazer sucesso é algo que lhe preocupa? 

Beto Bruno: Nós trabalhamos com três gravadoras e, hoje, até que enfim, conseguimos nos tornar independentes. Poder sobreviver e bancar toda a parada já é algo que nos deixa muito felizes. Nessas três gravadoras, apesar de serem grandes, nunca nos pediram para mudar qualquer coisa em nosso som. Sempre respeitaram muito a nossa integridade e, mesmo que pedissem, não iríamos abrir mão. Tudo decorreu muito naturalmente. A banda cresce disco após disco e vem conquistando um público cada vez maior. Ainda hoje não tivemos um estouro comercial de ficarmos em uma grande evidência. Veja que não tem ninguém, graças a Deus, no meu portão enchendo o meu saco [risos]. Eu dou muita graça por essa atitude nossa de se preocupar com a música, não com sucesso. Se um dia acontecer alguma coisa, estaremos com os pés no chão. A nossa única preocupação é continuar tocando. 

Pedaço da Vila: Você costuma dizer que a última geração de rock no país foi uma geração perdida. Por quê? 

Beto Bruno: Eu acho mesmo. Pois voltou aquela coisa de Menudos, só que desta vez com uma guitarrinha na mão. O que houve é que uma banda deu certo, fez sucesso, e um monte delas foi atrás. Isso envergonhou um pouco a classe roqueira. Aquelas coisinhas coloridinhas, para quem o apelo visual era mais importante do que a música, hoje nem estão mais aí. Eles, Cine, Restart, não sabiam nem tocar. 

Pedaço da Vila: E atualmente? 

Beto Bruno: Melhorou. Vamos começar pelos velhos [risos]: Os Titãs lançaram um baita disco de rock; o Skank vem numa linhagem de cinco discos mais ligados no britpop, que vem evoluindo pra caramba; os baianos da Pitty lançaram um disco pesado, muito bom, estão ficando cada vez mais originais; eu acredito que a Cachorro Grande lançou seu melhor disco, o Costa do Marfim; o Erasmo está numa sequência sensacional, é o quarto disco pauleira. Houve um impulso no rock, sem dúvida. Mas somente isso não adianta, é preciso vir uma coisa nova para dar o verdadeiro impulso. Eu acredito muito no trabalho da Terno, uma banda nova de São Paulo que está no segundo disco; essa banda é fantástica. É preciso que apareçam mais bandas assim e, com essas bandas mais antigas, dar uma crescida. É preciso algo novo para acontecer uma coisa grande pelo rock. Tem uma banda em Curitiba, a Trem Fantasma, que está para gravar o primeiro disco; me amarro nessa banda. Outra banda nova muito boa é a baiana Vivendo do Ócio. Essa dificuldade não pode existir. 

Pedaço da Vila: Nos seis primeiros discos da Cachorro Grande, prevaleceu um rock retrô. Já no Costa do Marfim, houve uma mudança… 

Beto Bruno: Nós sempre lançamos álbum atrás de álbum, e sempre fizemos uma turnê em cima de cada um deles. Chegamos num ponto em que surgiu a proposta de gravarmos um DVD no Circo Voador, no Rio de Janeiro, algo como um Best of. Foi a primeira vez em que olhamos para trás e fizemos uma coletânea e uma turnê dedicada a ela. Quando chegou no meio dessa turnê, pensamos: estamos fazendo mais do mesmo, e antes de terminá-la já estávamos de saco cheio. Era um cover de nós mesmos, pensamos. O público estava amando o repertório, só que nós não estávamos mais amarrados na parada como antes. Então resolvemos nos salvar e partir para uma coisa nova, que trouxesse aquele prazer de sempre. Precisávamos reciclar o som para nós mesmos. Sentimos a necessidade de trocar a casca, sentir aquela coisa de acordar e ir feliz para o palco. 

Pedaço da Vila: Essa coisa nova partiu de quem? 

Beto Bruno: Partiu da banda, foi uma ruptura musical para começar uma segunda fase. Conversamos entre nós e decidimos que precisávamos dar uma repaginada. Não queríamos virar uma banda tocando apenas antigos sucessos. Uma das atitudes foi trazer o produtor Edu K, que já era um cara que eu queria muito que trabalhasse conosco, e agora eu consegui. Admiro muito o trabalho dele desde a época do DeFalla, no início dos anos 1980. 

Pedaço da Vila: E vocês entraram no estúdio já com as músicas fechadas? 

Beto Bruno: Não, pela primeira vez não. Até então a gente fazia algo que se faz muito, e que considero hoje um grande erro: ensaiar antes e entrar no estúdio com tudo estabelecido, arranjo por arranjo. Apenas executávamos no estúdio o que já estava preconcebido. Não nos dávamos conta de como isso era careta, pois limitava. Resolvemos então que não iríamos ensaiar antes de pisar no estúdio. Tínhamos as músicas e havíamos gravado algumas demos caseiras, cada um na sua casa, e mostramos para o produtor. Ouvimos todos juntos e começamos a arranjá-las dentro do estúdio. Deixamos tudo acontecer dentro do dele, por isso algumas músicas têm 10 minutos.

Pedaço da Vila: Costa do Marfim tem forte presença da música eletrônica. Como foi a recepção do público? 

Beto Bruno: Disponibilizamos o disco uns vinte dias antes de fazer o primeiro show, para que todos já vissem o que viria pela frente. Então, a galera já estava mais preparada para os shows. Mais do que todos os discos, Costa do Marfim teve uma ótima recepção, tanto pelo público quanto pela crítica. Primeiro queríamos agradar a nós mesmos, fazer um disco que nós gostaríamos de ouvir. Depois a gente viu o resultado e percebeu que o público quer ouvir o que a gente quer ouvir. Por isso está aí esse disco tão louco. O legal de Costa do Marfim foi que ele trouxe um novo público. Então, temos a chance de tocar para uma galera que neces-sariamente não iria ao nosso show — não é só a roqueira que vai aos shows da Cachorro Grande, mas quem se amarra num som mais moderno.

Pedaço da Vila: Os compositores eram apenas você e o Marcelo Gross; hoje todos da banda escrevem as músicas. O que mudou com isso? 

Beto Bruno: Esse foi o grande lance, a melhor coisa que aconteceu de uns três discos para cá. Em Costa do Marfim, o Rodolfo (baixista) veio com uma carga musical bem forte; o batera também sempre aparece com um som; então, quem vier com música boa está dentro. A banda Cachorro Grande nunca foi uma banda como é agora. É onde queríamos chegar! 

Pedaço da Vila: O próximo disco seguirá no mesmo caminho de Costa do Marfim? 

Beto Bruno: Ele já está a caminho. Já temos bastante material para entrar no estúdio e fazer o próximo disco. Já estamos reunindo as composições de cada um e fazendo umas demos caseiras. Esse novo disco não tem nada a ver com o Costa do Marfim, a não ser a decisão de deixar para arranjar tudo dentro do estúdio. 

Pedaço da Vila: Nas horas distantes da música, o que gosta de fazer? 

Beto Bruno: Eu gosto muito de cinema. Quando eu não estou na estrada ou ensaiando, eu vejo três filmes por dia, fico a madrugada assistindo. Eu assisto de tudo um pouco. Já tive aquela fase de ver filmes de arte, mas hoje estou vendo umas porcarias aí para dar umas risadas. 

Pedaço da Vila: Quando marcamos essa entrevista, você disse que vai morar a vida toda no bairro… 

Beto Bruno: Na Vila Mariana? Eu não quero sair daqui tão cedo, não quero mesmo! Já tenho a minha adega de vinho preferida, os meus restaurantes preferidos, meus vizinhos são fantásticos. Minha mulher e eu estamos cuidando de nossas plantinhas aqui, que está sendo um barato. E recebo os amigos aqui em casa. Os vizinhos fazem churrasco e me mandam uma carne. Todo mundo é parceiro aqui. Hoje eu estou bem mais tranquilo, e isso tem a ver com eu ter mudado para cá. Quando eu morei perto da Augusta, eu ia comprar um leite e encontrava os amigos bebendo no bar da esquina, então eu… [risos]. Não tenho do que reclamar na Vila Mariana, ainda mais porque esses amigos estão sempre me visitando. Todos aqui são gente boa, todo mundo é muito simples. Está sendo um barato. Nem parece que eu estou em São Paulo, parece que estou no interior.