Tour de curiosidades da Vila Mariana

Manoel Botelho vive na Vila Mariana desde que nasceu. É um apaixonado pelo bairro. Historiador amador nas horas vagas, conhece muitos segredos e mistérios da cidade. “E como a Vila Mariana é um dos bairros mais tradicionais de São Paulo, esconde fatos inacreditáveis!”, afirma o vizinho, que sempre é procurado pela imprensa para contar suas descobertas. 

Nosso leitor, engenheiro aposentado que já publicou doze livros relacionados à área de engenharia, entre eles “Código de Obras e Edificações do Município de São Paulo”, procurou a redação do jornal para compartilhar com a vizinhança curiosidades que fazem parte da história do bairro. “Tenho muito carinho pelo Pedaço da Vila, que há mais de uma década resgata o passado da Vila Mariana. Nossa região passou por muitas transformações e meu maior desejo é zelar pelo passado e preservá-lo; tão rico que é para as gerações futuras!” Então, vamos começar nosso passeio?

Raspador de barro

Manoel Botelho nasceu em  1942, época em que as ruas da Vila Mariana eram, em sua maioria, de terra. “No colégio a gente aprendia a fazer um tapete com tampinhas de cerveja viradas para cima, para tirar a lama antes de entrar nas casas. Ele se chamava raspador de barro.” Manoel nos levou até a igreja de Santa Rita, na Rua Inácio Uchôa, para mostrar que a entrada ainda preserva um raspador de barro.

Santo Protetor

A Vila Mariana tem um santo que faz milagres, o que já é uma grande vantagem para o bairro rs. Chama-se Antoninho Rocha Marmo, e morava na Rua Afonso Celso”, conta o vizinho. Ele nasceu em 1918, no final da I Grande Guerra e em plena “gripe espanhola”, e faleceu em 1930, tornando-se conhecido como “santinho de São Paulo”.

Desde pequeno, Antoninho era fascinado por assuntos religiosos; seu passatempo predileto era “celebrar missas” no quintal. Aos 5 anos, começou a ter premonições. Contraiu  tuberculose e foi se tratar em Campos do Jordão e, depois em São José dos Campos, onde pediu a seus pais que comprassem um terreno para a construção de um sanatório, que abrigasse crianças carentes. O pedido de Antoninho foi cumprido por seus pais logo após sua morte, aos 12 anos. Até hoje ele é adorado por muitos fiéis, que frequentemente pedem sua canonização. O túmulo de Antoninho, no Cemitério da Consolação, recebe devotos e romarias até hoje.

Ventilação do tunel

Vou contar a história da torre de ventilação situada na Rua Humberto I. A Sabesp teve vários nomes, mas inicialmente era a RAE – Repartição de Águas e Esgoto, que, por sua vez, em 1927, decidiu fazer uma linha condutora de água potável ligando o Ibirapuera ao Cambuci.” As tubulações eram importadas da metalúrgica Brait Wait. “Nesse tempo não se fabricava muita coisa no Brasil”, afirma Botelho.

Era um dos mais ousados empreendimentos da cidade de São Paulo para a época. Trata-se do projeto para levar a água do Sistema Rio Claro, em Salesópolis, município da Zona Leste à Zona Sul da Capital. Iniciado a partir da altura do n.° 800 da atual Rua França Pinto, com destino à antiga estação de tratamento de água Deodoro, no bairro do Ipiranga, o percurso previa que o tubulações, de 2 km, enterradas a 40 metros de profundidade, cruzaria a Rua Vergueiro (altura da Carlos Petit), o espigão da Avenida Paulista e a Avenida Bernardino de Campos.

Orçado em aproximadamente 7 bilhões de libras esterlinas, o empreendimento parou pela metade e nunca chegou a ser usado, pois a RAE decidiu pela captação de abastecimento na represa de Guarapiranga.Algumas informações técnicas: a construção é feita por sequências de 2 mil aduelas (seções), com dimensões de 1 metro cada uma, emendadas com chumbo derretido. Tanto na parte interna quanto na externa do túnel, o revestimento é feito com argamassa, mantendo um diâmetro constante de 1,58 metro. Quando chega na Rua Carlos Petit o túnel alcança 1.370 metros e se mantém vedado com tijolos.

A obra foi tão bem feita que nem a ação do tempo foi capaz de comprometê-la: ainda mantém em perfeito estado a cor branca da tinta que reveste o cobre e toda a fiação elétrica e os soquetes do sistema de iluminação do túnel. A infiltração de água não ultrapassa uma camada de 20 centímetros, no entanto sempre que os operários da Sabesp precisam entrar no túnel, é necessário realizar uma drenagem da água acumulada no interior da estrutura.

Para liberar o gás sulfídrico e o monóxido de carbono, concentrados na tubulação que, dentro da qual a temperatura ultrapassa 35 graus, a velha torre de respiro, localizada na Rua Humberto I e as três bocas dos postos de visita das ruas Áurea, França Pinto e Carlos Petit são abertas. 

Após sofrer as ações da natureza por tantos anos, o calcário do subsolo, pela ação das infiltrações de água, originou estalactites nas emendas da tubulação, criando uma paisagem característica de caverna no túnel.“O mais curioso é que a região da Vila Mariana nunca parou de crescer e, mesmo sofrendo dezenas de perfurações para a construção de galerias de águas pluviais, redes de esgoto, encanamentos de gás, instalações telefônicas – e até mesmo a do metrô! -, o túnel permanece oculto.

Prédio-Navio

“Há um edifício na Rua Caramuru, no início da Av. Jabaquara, nº 65, que foi construído em 1940, inspirado em um convés de navio, e que se tornou um ponto turístico na época”, indica o vizinho.  No primeiro e segundo andares ainda podemos ver no prédio-navio as escotilhas circulares. “Os demais andares não foram preservados.” No primeiro andar há barras de aço cinza, iguais às de um convés de navio: “Elas serviam para evitar que as pessoas caíssem no mar”.

“O prédio-navio funcionava como residência e comércio, um esquema muito usual na época. Hoje ele é só comercial.”As escotilhas eram redondas, mas, devido à dificuldade de encontrá-las no mercado, muitas foram substituídas por vidros retangulares.  Outra curiosidade é que nesse convés havia grandes correntes. “Esse era o layout básico: com  atenção podemos ver que as janelas da direita ainda são todas circulares”, observa.

Do lixo ao luxo

“Eu publiquei um artigo que deu uma enorme repercussão. É a história do caquinho de cerâmica da fábrica Cerâmica São Caetano, da família Simonsen. Essa cerâmica São Caetano fazia placas retangulares que eram colocadas uma a uma em cima de uma base de cimento. Eram feitas com corante nas cores vermelha (em sua maioria), preta, amarela ou branca. Durante o processo de fabricação, algumas cerâmicas quebravam e eram consideradas pela empresa como refugo e dispensadas em algum lugar. 

Certa vez, um funcionário muito simples precisava pavimentar a entrada e os fundos de sua casa, e pediu autorização à empresa para pegar um pouco da cerâmica quebrada. A fábrica respondeu que ele fazia um grande favor retirando aquela cerâmica que ela não tinha mais onde depositar. Ele contratou um pedreiro que usou os caquinhos de cerâmica quebrada para fazer a casa dele: a história da reforma se espalhou entre os empregados da fábrica e todos também decidiram reformar suas casas com os restos de cerâmica. ”Eu me lembro que até o meu pai, quando morávamos na Rua Jorge Tibiriçá, reformou a nossa casa com caquinhos de cerâmica. A cidade toda aderiu, pois era um charme!”

O caquinho de cerâmica virou sucesso, e começou a faltar no mercado. “E aconteceu o inacreditável: na falta de caco, as peças inteiras começaram a ser quebradas pela própria empresa. E é claro que os caquinhos subiram de preço, ou seja, o metro quadrado do refugo ficou mais caro que o metro quadrado da peça inteira…. A desculpa para o irracional era o custo industrial da operação de quebra, embora ninguém tenha descontado desse custo a perda industrial que gerara o problema, ou melhor, que gerara a febre do caquinho cerâmico!”

O bonde da rua Cunha

Esta é a história de um acidente de bonde que ganhou as manchetes dos principais jornais no começo de 1950. “Eu nasci em uma casa na Rua Loefgreen. Minha família, como todas de classe média na época, era preconceituosa e usava só o bonde nº 21, o da Vila Mariana, para se locomover. Até no bonde havia preconceito!” Botelho conta que a classe média jamais  entrava no Bonde nº 23, que ia para São Judas Tadeu, nem no bonde nº 30, que era mais popular ainda e ia para o Bosque da Saúde.

“No Liceu Pasteur,  havia um funcionário exemplar, do departamento administrativo, com deficiência visual, chamado Sr. Eduardo, cujo filho Eduardinho era da minha classe.” Era uma família muito humilde, e a escola deu uma casa para eles morarem, construída dentro do colégio. Logo no primeiro ano da casa, havia uma bela passageira no bonde, que passava pela Rua Cunha. Reza a lenda que nessa noite, encantado pela morena, o motorneiro perguntou ao cobrador se ele gostaria de assumir seu lugar no controle do bonde – sonho de todo cobrador na época— e ele prontamente respondeu que sim.

Acontece que o bonde tinha como característica um breque muito precário e, se faltasse ar comprimido para ajudar no freio, o breque tinha que ser acionado a mão. “Creio que os bondes foram concebidos para andar em lugares planos e não para descer rampas, uma vez que a descida aumenta muito sua velocidade”, explica. Por isso, o bonde não podia correr nas rampas, e era conduzido devagar para andar nos trilhos e ser obediente. Mas o cobrador,  inexperiente, perdeu o controle do bonde que saiu do trilho e entrou na casa do Sr. Eduardo, invadindo o quarto do Eduardinho, que, por sorte, não estava lá. “O trilho continua aqui, coberto pelo asfalto, mas só em alguns lugares pode ser visto.”  De acordo com Manoel Botelho, uma maldição perpetuou-se nesse terreno do colégio. “Nada mais foi construído lá”, garante.

Tira-Teima

“Você sabe qual é o teste linguístico que se deve fazer na Vila Mariana para saber se um morador é antigo ou novo? Basta levá-lo à Rua Humberto I e perguntar qual é o nome dessa rua. Se ele responder ‘Humberto Primo’ é morador antigo, da gema, mas se ele disser “Humberto Primeiro” é morador novo, arrivista; ou então não é do bairro. Esse teste também pode ser feito no coração da Mooca. Ao perguntar como se chama o nome do bairro a alguém e ele responder que se chama ‘Mooca’, a pessoa não é do bairro, mas se ele disser “Móoca” certamente é do bairro! (e-mail: manoelbotelho@terra.com.br)