Querida Tataia
Muitos leitores já haviam sugerido uma matéria sobre uma senhora de 85 anos, exímia tricoteira, proprietária de um armarinho na rua Tangará, 319. Eu já conhecia o antigo armarinho e esperei o inverno chegar para ir ao seu encontro, a fim de uma conversa. Qual surpresa foi, ao chegar à loja, encontrar uma leitora que, ouvindo minha conversa com dona Tataia, disse: “Nossa, ontem mesmo falamos sobre o Pedaço da Vila, no almoço de domingo com a família!
Meu marido escreveu uma crônica em homenagem a Tataia e íamos entregá-la para o jornal!”.
Marcamos para receber o material no dia seguinte, em nossa redação. E li a homenagem de Bento Dacal Seguin (conheça-o na seção Umas e Outras): “um tributo ao exemplo de vida da corajosa senhora que criou os filhos com seu trabalho, e continua diariamente a receber novas clientes em sua loja”. Questões mais jornalísticas — informações sobre datas, a vida e o trabalho na Vila Mariana e passagens que surgiram naturalmente e que ela contou emocionada durante nossa entrevista —, estão entremeadas com a bela crônica do sr. Bento, vizinho de Tataia, ambos moradores da rua Dr. Mário Cardim.
Nouhad Neme Arkuie — Tataia, como é conhecida no bairro — nasceu em Anfe, uma pequena aldeia ao Norte do Líbano. Filha mais velha de agricultor, teve uma vida tranquila, ajudando o pai na plantação de azeitonas e figos. Como era costume entre as moças do começo do século passado, era obrigada a aprender com a avó a costurar, tricotar e a ser uma mulher prendada: “Aprendia contrariada, até chorava. Nem imaginava que um dia isso iria me ajudar tanto…”. Com a morte do pai, aos 15 anos, tomou conta dos negócios da família e, aos 17, ficou noiva de Elias Arkuie. “Tirei o luto no dia de meu noivado”.
Casada, veio para o Brasil com destino à Vila Mariana. “Como não sabia o que me esperava, trouxe de Anfe minha máquina de costura”, conta Tataia. Sempre com muito trabalho, dedicação, responsabilidade e amor, a mulher lutadora, corajosa, deixou sua cidade natal, o belo Líbano, nos anos 1950, aos vinte e sete anos de idade, casada com o sr. Elias Arkuie, e mãe de três filhos: Michel, com sete anos; Navel, com 5; e Toni, com 3. O quarto veio a nascer no Brasil e recebeu o nome de Neme. Aportaram no nosso país, terra desconhecida, e costumes muito diferentes de suas origens, foram se adaptando ao nosso tipo de vida, e assim se tornaram tão brasileiros como os filhos natos de nossa terra.
A primeira rua em que morou foi a Humberto I, no andar de baixo da casa de um primo do marido. Mas, sem falar nada de português, Tataia não se deu bem na vida nova: “Na minha terra conhecia toda a vizinhança, aqui ninguém fazia amizade comigo. Meus vizinhos não me aceitaram”. Não demorou muito, mudou-se com a família para a av. Conselheiro Rodrigues Alves. O marido, que no início fazia móveis na fábrica do primo, depois de um desentendimento resolveu montar uma barraca na feira para vender roupas de crianças moldadas, cortadas e costuradas por Tataia: “Costurei durante 10 anos”.
Ela e seu companheiro enfrentaram alguns sérios dissabores em suas vidas. Perderam o filho, nascido aqui no Brasil, Neme, aos seis anos de idade. A conselho do primo, financiaram uma casa na rua Dr. Mário Cardim (onde Tataia mora até hoje). Ela cuidava do marido, da casa, dos filhos, e ainda costurava: “Sempre ajudei meu marido, nunca pedi dinheiro para ele”.
Essa força de vontade e tudo o que aprendeu, contrariada com a avó, em Anfer, foram fundamentais quando o sr. Elias, vítima de enfarte, ficou impossibilitado de trabalhar. Abriram, então, um armarinho na rua Tangará: “Resolvi vender lãs Pinguin e ensinar a tricotar”— o que sabia fazer muito bem graças à avó. Para ganhar clientela, passava um café fresquinho e convidava a vizinhança para entrar: “Assim fiz amizade e clientela”. Aos poucos foi ganhando alunas, e o negócio dando certo: “Sempre fui rigorosa, as alunas têm que fazer as coisas perfeitas. Se erram, eu mando desmanchar. Já teve chiadeira, mas é para fazer bonito!”.
Há 39 anos, Tataia ensina alunas de todas as gerações a fazer tricô e crochê: “Senhoras, moças e até crianças”. Chegou a ter 70 alunas por mês: “Além das pessoas do bairro, vinha gente de todo lugar de São Paulo”. As encomendas foram aumentando e ela passou para as alunas confeccionar, sob sua supervisão: “Aí eu vendia e repassava o dinheiro para elas”. Até hoje suas alunas, com filhos, netos e bisnetos, vão lhe visitar e tomar o tradicional cafezinho. “Com a loja fiz muitas amizades!” O marido morreu há 20 anos: “Não aguentou a morte de minha filha, aos 48 anos”. Ela continuou seu trabalho, e com ele bem educou os filhos, que hoje não querem que ela tenha a mínima preocupação com dinheiro: “Dormia 3 horas por noite para não faltar nada para eles. Hoje, para compensar, eles dizem que querem cuidar de mim!”.
À frente, foram dona Tataia e os filhos a sofrer as agruras do destino. A perda do sr. Elias e da filha Navel, deixando 3 filhos que a avó passou a ajudar a criar. Quantos momentos difíceis passou esta mulher. É preciso ser muito valente para sobreviver a tanta tristeza e tanta dor.
Mas Tataia ama o que faz, e, embora emocionada com tantas lembranças, trata de ir explicando como funciona o armarinho: “Quem quer aprender vem até a loja, olha as revistas e catálogos que tenho aqui, compra lã, e, gratuitamente, ensino e acompanho o feitio até o fim. Se precisar, também costuro a peça para a aluna”.
Vou falar agora de seus predicados. Ela é uma excelente costureira, e ainda hoje presta seus serviços a muita gente que a procura. Porém, um de seus maiores conhecimentos é o tricô. Tataia não guardou para si o que também um dia veio por aprender. Um tipo de trabalho que pode ser considerado uma espécie de arte, que ela disseminou entre centenas de alunas, chegando a atingir a terceira geração de famílias.
As alunas — atualmente em número bem menor —, aprendem do mesmo jeitinho que Tataia sempre ensinou: sentam em cadeiras dispostas em meia-lua, atrás do balcão, e passam o tempo a tricotar, assessoradas pela professora. Com a lã que sobra, Tataia faz lindos puloveres infantis, além das roupas de bebê, cachecóis etc., que vende no local. Faz também pequenos consertos e barras, e o que não lhe falta é companhia para uma boa conversa: “Algumas trazem lanche; minhas vizinhas me agradam muito! Do alto de seus 85 anos, afirma que tricotar é uma terapia “Já tive aluna que chegou aqui deprimida e a cada aula foi melhorando. Até aconselho que, antes de procurar um psicólogo, venham aqui fazer tricô!” E, como mestre das lãs e linhas, arremata: “Adoro meu bairro! A Vila Mariana é diferente!”.
Por isso, ela faz parte da história da vida dos moradores da Vila Mariana. É uma pessoa muito querida por todas as suas aprendizes de hoje, ontem e de outrora. Uma cidadã que devemos respeitar e agradecer pela oportunidade e o prazer de desfrutar de sua amizade, bondade, sabedoria. Ao escrever este texto, tive o intuito de lhe fazer uma pequena homenagem, e acredito, que todos os moradores de nosso bairro, que desfrutam de sua amizade, concordarão com meu propósito. Tataia fez por merecer a alcunha de ser uma lenda em nossa Vila Mariana!