Para que serve mesmo, o Plano Diretor de uma cidade?

O cidadão que não participa muito da vida política talvez não saiba direito para que serve um plano diretor de uma cidade e fica meio perplexo quando a imprensa começa a entrevistar governantes e especialistas sobre o assunto, entendendo pouco os termos técnicos e não sabendo muito bem o que aquele monte de siglas, que acompanham as reportagens significam e o que aquilo tudo tem a ver com seu cotidiano.

Ao contrário dos que estão no dia-a-dia lutando para sobreviver, percorrendo grandes distâncias, enfrentando congestionamentos, a poluição do ar, a falta de água, o desmatamento e a destruição do seu bairro, alguns setores de empresários acompanham, se preparam e interferem nesse debate com grande habilidade e grande poder de influir nos rumos das nossas cidades. Esses empresários são aqueles ligados a especulação imobiliária e construção civil. Do outro lado estão os cidadãos comuns que querem apenas ter qualidade de vida para cuidar da sua família.

A Constituição de 1988 garantiu um novo patamar para o desenvolvimento urbano no Brasil, introduzindo este tema nos seus capítulos, fruto de muita luta dos movimentos populares que buscavam moradia digna nas grandes cidades e dos setores progressistas da sociedade, incluindo arquitetos e urbanistas, engenheiros e outros profissionais ligados ao planejamento urbano e que se posicionavam em favor da construção de uma sociedade urbana, mas com qualidade de vida.

A urbanização da sociedade brasileira já se consolidava na década de 80, mas com um grande acúmulo de problemas – fruto da falta de planejamento. Assim, em 2001, foi aprovado pelo Congresso Nacional, a Lei do Estatuto da Cidade, cujo conteúdo vem sendo elaborado desde 1963, quando o primeiro projeto de Lei sobre o assunto foi apresentado. Portanto, pode se afirmar com tranqüilidade que não foi uma Lei prematura, sem debate pela sociedade civil. Quatro conquistas se destacam em seu conteúdo: a primeira obriga que todas as cidades com mais de 20 mil habitantes são obrigadas a elaborar seu Plano Diretor; a segunda que este plano tem de ser elaborado com participação da sociedade como um todo. A terceira, que o plano diretor vai definir se as propriedades urbanas estão cumprindo sua função social ou estão ociosas, não servindo a nenhuma função urbana – morar, trabalhar, estudar etc. E a quarta trata da regularização de áreas já ocupadas por populações de baixa renda e garantindo seu direito à moradia através da ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social.

O Plano Diretor Estratégico, Lei 13430 em vigor em São Paulo, foi aprovado em 2002, depois de mais de três décadas do Plano anterior. Dois anos depois, foram aprovadas mais duas leis: a Lei dos planos regionais, pela qual foram definidos os limites de todas as zonas da cidade, incluindo as ZEIS e a Zonas Mistas ou de uso exclusivamente residenciais e a Lei de uso e ocupação do solo. Portanto, um espaço de tempo muito pequeno para a confirmação de que os instrumentos aprovados em 2004 deram certo e para se verificar se a qualidade de vida da cidade melhorou ou não. Pouco tempo , também, para garantir maior publicidade à Lei em vigor e com isto envolver mais a sociedade na sua aplicação.

A Prefeitura de São Paulo iniciou este ano um processo de revisão do Plano Diretor Estratégico que já estava prevista, mas a surpresa de todos foi grande quando se incluiu no mesmo processo a revisão dos planos regionais, que mal foram divulgados para a população.

Claro, a Lei está na internet, mas é preciso um certo conhecimento técnico não só para dominar a linguagem dos computadores, mas também dos mapas e quadros técnicos cheios de índices e siglas que o cidadão comum pouca chance terá de compreender. O mais adequado seria que a Prefeitura elaborasse uma cartilha popular que trouxessem as informações traduzidas de maneira simples e clara e demonstrasse uma comparação com as mudanças propostas. E que tal ter uma comunicação visual indicando a zona de uso do bairro para que as pessoas comecem a se familiarizar com os conceitos da Lei e possam ajudar a fiscalizar as irregularidades urbanísticas praticadas por aqueles que atuam sob o lema “construo depois legalizo”, tão comum na cidade?

Sem informação é difícil opinar sobre qualquer tema e este talvez não seja tão fácil de se entender… Muitos pensam que é um assunto dos urbanistas, mas é uma questão muito séria e que interessa a todos que vivemos nas cidades. Simplificando e desmistificando os pontos que um Plano Diretor trata, ele serve para organizar a cidade. Como mais ou menos organizamos os espaços na nossa casa, com cada coisa em seu lugar e preocupados com a segurança, com a economia de energia, com amontoamento, limpeza, com a luz e o ar, com os lugares destinados a realizar cada uma das tarefas, com a circulação e o conforto, alimentação, lazer, descanso… Uma casa para a abrigar com dignidade todos os membros da família, com suas memórias, suas lembranças e suas referências de paisagem e vizinhança. Um lugar onde todos são bem recebidos, para promover o entrosamento das gerações com respeito às diferenças. A cidade também deveria cumprir este papel, acrescentado a atividade do trabalho e cultura que é muito importante para o bem-estar dos cidadãos. Então, parece fácil não?

O Plano Diretor trata do espaço urbano, sua organização, sua paisagem, sua história… Cuida da circulação, dos transportes, da localização da moradia, do trabalho, da escola, do teatro, do hospital, dos parques e do meio ambiente. Determina a largura das vias, o tamanho dos lotes, a distância que o vizinho deve construir e a altura dos prédios para não incomodar, o uso e a ocupação do solo. É o Plano Diretor que decide se uma fábrica deve ficar perto de uma escola ou não e prevê a urbanização de favelas para garantir moradia digna à população de baixa renda. É a Lei que protege os prédios e bairros históricos – parte da memória da cidade – e as áreas verdes que devem ser preservadas. O instrumento que regulamenta onde, como e por que a cidade pode ou deve crescer.

Curitiba sempre é lembrada pelos urbanistas e por aqueles que a conhecem como uma cidade com grande qualidade de vida. O planejamento é a principal ferramenta que garante essa qualidade há muitas gestões municipais. São Paulo precisa conquistar este patamar e certamente esta é a vontade da maioria da população, cansada da rotina estafante nos congestionamentos, da paisagem limitada a prédios e viadutos, da violência urbana e da poluição.

Há quanto tempo já deixamos de ver os limites da paisagem natural da cidade, como a Serra da Cantareira? Perceber a geografia do “Espigão” da Paulista e da várzea dos três mais importantes rios da cidade, o Tietê, o Pinheiros e o Tamanduateí, que nos remetem à fundação da cidade e a tantas histórias? Memórias escondidas dos viajantes que daqui saíram ou passaram para ampliar a ocupação do território nacional?

Recentemente a imprensa noticiou o tombamento do bairro do Ipiranga e o processo de tombamento de parte do bairro da Mooca e grande foi a chiadeira do SECOVI – Sindicato dos Empresários do Setor Imobiliário, que alegou que o instrumento do tombamento estava se sobrepondo sobre a Lei de uso e ocupação do solo, que só o Plano Diretor pode mexer! Para o SECOVI a história da cidade não tem importância, apenas os seus negócios, e pouco se importa se São Paulo continuar perdendo sua memória e seus cidadãos, sua identidade com a construção desenfreada de prédios altos sem nenhuma relação com a paisagem na qual se inserem. Não está nem aí com o aumento das ilhas de calor na cidade, a sobrecarga na infra-estrutura urbana e expulsão de setores consideráveis da população para áreas periféricas, devido a valorização mercantil do solo urbano. Para ele, a sociedade e a Prefeitura que arquem com as perdas pelos resultados de uma urbanização sem humanização.

A criação da ZEIS em áreas ocupadas já consolidadas tem como objetivo, além de garantir o direito à moradia, economizar os poucos recursos públicos para a realização de obras de infra-estrutura em áreas longínquas do centro principal da cidade. Defender estas zonas para a requalificação das moradias populares em áreas centrais também será um elemeto importante para a preservação da história dos bairros.

É hora de o planejamento urbano incluir nos seus critérios técnicos e urbanísticos o conceito de memória, paisagem e valorização dos bens culturais inseridos no cotidiano da população. Nos países ricos, tão admirados pela beleza de sua arquitetura preservada, existem regras claras quanto à altura das edificações, padrão arquitetônico e até cor de suas fachadas para preservar sua ambientação. São Paulo que está buscando através da Lei Cidade Limpa valorizar a paisagem construída, está em um momento favorável para introduzir estes conceitos no processo de planejamento.

Há um movimento em curso das diversas entidades que lidam com a moradia e a qualidade de vida urbana no sentido de garantir uma revisão do plano com caráter realmente participativo. É preciso fortalecer essa idéia e participar desse processo junto com o Fórum Popular em Defesa do Plano Diretor, que já conquistou através de liminar a paralisação do processo que a prefeitura vinha desenvolvendo sem a participação da sociedade. E que deseja uma cidade “democrática, pacífica, includente e sustentável”, sendo contrário ao aprofundamento da barbárie social em São Paulo e ao atual processo de revisão do Plano Diretor.”

O pedaço da Vila ameaçado

O bairro da Vila Mariana conquistou no Plano Regional um certo controle sobre o crescimento desordenado que vinha descaracterizando o pedaço com a excessiva verticalização em áreas antigas. Locais que deram origem à Vila Mariana e que guardam um ambiente caloroso de vizinhança, e que tem como referência edifícios históricos como o Instituto Biológico, o antigo Matadouro (hoje Cinemateca Brasileira), e casario e vias que mantêm viva a história de uma parte de São Paulo que possui grande vocação cultural.

Foi com este conteúdo e muita luta, que envolveu abaixo-assinados, a conquista do tombamento do Instituto Biológico, festas, debates e conversas com vereadores, que a população unida a entidades do bairro conseguiu sensibilizar os vereadores da necessidade de não se destruir nossas referências históricas cotidianas e preservar as características principais e mais antigas da Vila Mariana, particularmente próximo aos bens históricos.

A versão do Plano Diretor Estratégico, recentemente apresentado pela prefeitura, retirou dos mapas e quadros o controle de gabarito das áreas do entorno do Biológico e manteve a alta densidade sob uma zona de preservação, o que no mínimo é contraditório, pois há um processo de tombamento do bairro em andamento no Conpresp, por vontade dos atuais moradores.

Felizmente graças a mobilização da sociedade, o prazo para elaboração da nova versão do Plano foi adiado pela lei 14457, publicada no dia 29 de junho de 2007 que estabelece a data de 2/10/2007 como prazo para a revisão. Parece bastante, mas é muito pouco tempo e a população deverá estar mobilizada e atenta para

participar dos debates e das audiências públicas obrigatórios pela Lei, garantidos pelo Estatuto da Cidade.