Outros Carnavais

Em comemoração de 90 anos da Semana de Arte Moderna, vale relembrar a importância da Villa Kyrial e de seu proprietário, José Freitas Valle, figura inestimável — e infelizmente pouco lembrada – para a arte e cultura brasileira

Em 1904, uma chácara de sete metros quadrados — localizada na rua Domingos de Morais, 10 (hoje n.º 300), com fundos para a rua Cubatão — foi adquirida pelo político e mecenas José Freitas Valle, nascido em Alegrete (RS), em 20 de agosto de 1870. 

Conhecida no bairro como Vila Gerda, a bela propriedade foi rebatizada com o nome de Villa Kyrial — o nome tem raiz no vocabulário grego: kyrios (deus) — por Alphonsus Guimarães.

Ao mudar de mãos, a propriedade tornou-se o salão da “Belle Époque” paulistana, termo francês para o florescimento artístico cultural urbano, surgido para subverter a arte na Europa, principalmente na França.

A vida cultural na Villa Kyrial tornou-se efervescente: o lindo jardim e os ambientes luxuosos — repletos de livros e obras de arte — abrigavam saraus, almoços, concertos, exposições, conferências, festas, entre muitos outros eventos, que reuniam diariamente a nata da intelectualidade e aristocracia paulistana. Influenciados pelas novidades da França – para os membros da elite brasileira era inconcebível não ir a Paris ao menos uma vez por ano — o Modernismo tornara-se discussão permanente da nata da sociedade, que frequentava a casa de Freitas Valle. Por lá passaram Lasar Segall, Anita Malfatti, Victor Brecheret, Francisco Mignone, Heitor Villa-Lobos, além de personalidades como Olívia Guedes Penteado, Oswald e Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e políticos como Washington Luís e Osvaldo Aranha — entre outros notáveis, como o tenor italiano Enrico Caruso e Sarah Bernhardt.

Freitas Valle veio para São Paulo estudar Direito na Faculdade São Francisco e, aos 18 anos, casou-se com a herdeira de um dos barões do café na região de Campinas. Como já era rico, juntadas as fortunas, tornou-se milionário. Além de advogado, educador, político (foi deputado e senador), era mecenas dos talentos então descobertos e por ele protegidos. Foi ainda perfumista, escritor, maître e excelente “gourmet” — sabia como ninguém misturar a alta gastronomia francesa à culinária brasileira. Dedicou-se por toda a vida ao ensino das artes, razão pela qual tornou-se um dos principais dirigentes do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, ajudando artistas a estudarem no exterior e corroborando com o movimento modernista no Brasil.

No seu centro cultural, os intelectuais e artistas se encontravam para criar uma arte essencialmente brasileira, um movimento que teve seu marco simbólico na Semana de Arte Moderna, realizada na terceira semana de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo.

Nessa época, o Carnaval na capital inspirava-se nas festas dos europeus de Veneza e Nice, com arlequins, pierrôs e colombinas. Os paulistanos também copiavam o corso: carros conversíveis e caminhões-baú que, depois de receberem roupagem especial de floriculturas especializadas, saíam em desfile — a princípio, pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento. A partir de 1911, depois que a Av. Paulista ganhou melhorias para se tornar a via mais elegante da cidade, os carnavalescos, em seus carros conversíveis, trocaram o Centro pelo trecho que ia da Praça Oswaldo Cruz ao final da av. Paulista. 

E se tudo era motivo de festa, no Carnaval, Freitas Valle não media esforços para promover as suas: no domingo recebia convidados para o evento “almoço à fantasia”, onde as pessoas chegavam mascaradas e só podiam mostrar a identidade na hora de sentar à mesa para iniciar a refeição. Em seguida, continuavam a brincadeira na Av. Paulista: do alto de seus carrões enfeitados, jogavam confete, serpentina e lança-perfume para todo lado, inclusive na multidão, que seguia pela calçada acompanhando os foliões. O desfile acontecia, lentamente em dupla direção, às quatro horas da tarde e às dez da noite. 

Em um desses carnavais, Freitas Valle viu um de seus projetos realizado. O florista, contratado para decorar os carros do desfile, construiu sobre um caminhão uma cesta toda enfeitada de flores, onde cerca de trinta pessoas, entre artistas e amigos do senador, vestidos de pierrô branco com botões vermelhos, se acomodaram (nossa capa). 

Freitas Valle faleceu no dia 14 de fevereiro de 1958, sábado de Carnaval. Em vez do domingo de folia, gerações de amigos, escritores, políticos e artistas seguiram-no pela mesma Paulista do corso, em cortejo até o Cemitério da Consolação. 

Três anos depois, a Villa Kyrial foi demolida, para dar lugar a um edifício e supermercado. Ao invés de ser tombada como patrimônio nacional, a casa principal foi demolida e seu rico acervo dilapidado. Talvez, se continuasse de pé, José Freitas Valle não teria sido esquecido pelos livros de História, e nas salas de aula, seria ensinada a importância de sua pessoa no movimento que fez o Brasil mostrar sua expressão original não só na arte, literatura, arquitetura e música, mas, sobretudo, na mudança de costume e mentalidade da sociedade brasileira.